Estas linhas são dirigidas a cristãos em cujo coração há o expresso desejo de obedecer à Palavra, e para os quais a questão da comunhão entre os irmãos constitui, de certa forma, uma preocupação. De antemão considero que estes têm estima pela reunião ao nome do Senhor à Sua Mesa. Desejam amar a todos os filhos de Deus e demonstrar isso a eles. Mas, agora, têm dificuldade em entender que aos crentes não é concedida a liberdade de “acolher alguém, sem restrições, à esta Mesa” e “participar da Ceia em todos os lugares em que é celebrada“. Tais restrições lhes parecem exageradas.
Essa questão, já bastante discutida, é muito séria. Muitos daqueles, que levianamente são classificados pelo título de “exclusivistas”, somente tomaram esta postura (que em certos meios lhes é atribuída com censura) após dolorosas experiências. Sentem profunda tristeza pelo estado das coisas, mas também são gratos a Deus por ter-lhes indicado o caminho segundo os Seus pensamentos. A Escritura nos apresenta dois ensinos fundamentais a esse respeito.
O Primeiro Ensinamento
A participação em alguma “Mesa” em que se presta culto significa estar em comunhão com todos os que nela participam (1 Cor 10:14-22). Isto não quer dizer que todos, que ali participam, tenham os mesmos pontos de vista em todas as questões; é certo, porém, que são unânimes quanto àquilo que os une à dita “Mesa” e quanto ao que estão expressando ali. Não supomos que algum dos leitores esteja envolvido com alguma “mesa de demônios”; mesmo assim, o ensino do apóstolo aqui nesse exemplo continua sendo aplicável: “não quero que vos torneis associados aos demônios”. Esta admoestação foi dada a cristãos que certamente não criam ser um ídolo alguma coisa real, e que tampouco anelavam por comunhão com os demônios, mas que, no entanto, se assentavam com aqueles que sacrificavam aos demônios, visto que ofertavam aos ídolos. Estes cristãos teriam prontamente recusado pensar como aqueles idólatras, ainda assim, porém, estavam em comunhão com os demônios, pois se assentavam com essa gente à Mesa deles.
O Segundo Ensinamento
A Mesa, na qual o Senhor se unifica com os Seus, não é a mesa de um determinado grupo de crentes que estejam em acordo quando a algumas verdades; porém é a Mesa do Senhor, e todos os que LHE pertencem têm o seu lugar ali, pois é a expressão da unidade do Corpo (1 Cor 10:16-17). Reunir-se e participar da ceia na condição de assembleiano, batista, evangélico, protestante etc., contradiz este conceito. E caso nós viéssemos a nos reunir como “darbystas”, ou até como “os irmãos”, como se nós fossemos os únicos filhos de Deus, ao passo que ainda há tantos outros, espalhados por todo lugar, também nós entraríamos nessa contradição e não poderíamos dizer que estamos à Mesa do Senhor. Do mesmo modo seria, caso nos reuníssemos com a pretensão de sermos mais piedosos que outros, pois estaríamos perdendo de vista o significado dessa Mesa; estaríamos até mentindo, pois os fatos comprovam que a carne está operante em todas as áreas, e que entre nós há muitas fraquezas, dentre outras, na área de evangelização, na qual outros crentes estão por vezes mais empenhados. Não nos arroguemos, portanto, de títulos ou qualificações que não nos cabem.
Quando, porém, é Deus quem passa a agir, fazendo com que os seus saiam das diversas igrejas ou denominações para a reunião ao Nome do Senhor Jesus somente (Mt 18:20), então deveríamos atentar para aquilo que Ele espera daqueles que conduz a este lugar. A Palavra nos diz que precisam ser nascidos de novo (1 Cor 12:13; 2 Cor6:14-15), reconhecer tanto o senhorio de Cristo sobre a Assembleia como a operação do Espírito Santo – que a cada um distribui dons e ministérios “como Lhe apraz” (1 Cor 12:11) – e que também devem se sujeitar à autoridade do Senhor na Assembleia, quer seja para a manutenção da paz entre os irmãos (Mt 18:17-20) ou para a remoção do mal do meio deles (1 Cor 5). A Palavra ainda nos apresenta a Unidade da Assembleia (Igreja); que quando alguém por ela tiver sido “ligado” em alguma localidade, está automaticamente “ligado” em todo lugar – do contrário, a autoridade do Senhor seria válida aqui, mas não lá. Agrupamentos “independentes”, portanto, negam tanto a Unidade do Corpo de Cristo como a autoridade do Senhor, que está presente no meio dos “dois ou três”. A seriedade disso tudo não pode ser sublinhada o suficiente. Uma Assembleia local não seria a expressão de toda a Assembleia (Igreja) – pois é isto, justamente, que se está testemunhando à Mesa do Senhor – caso aquilo que fizer em nome do Senhor não fosse obrigatoriamente reconhecido pelas outras assembleias. Negar-se a reconhecer isso significa negar a unidade do Corpo de Cristo.
Cada cristão que tem uma certa noção do que significa sair fora do “arraial” (Hb 13:13) estará de acordo com a maioria desses princípios. A dificuldade surge quanto à prática destes últimos pontos citados, ou seja, da responsabilidade e autoridade da Assembleia local. Vamos considerá-los mais de perto. Não é possível – sem violar os direitos de Cristo – expressar comunhão na Mesa do Senhor com uma pessoa que vive em pecado manifesto. Se, por infortúnio, essa pessoa já participa na Mesa do Senhor, então a Assembleia é instada a remover o “fermento”, que leveda a massa toda (1 Cor 5:6-8). Isto é obrigatório, segundo a Unidade testemunhada na Ceia. A Assembleia é coletivamente responsável. Naturalmente a responsabilidade de cada um continua valendo, porém está incluída na da Assembleia (compare em 1 Cor 11:28-30). Caso alguém, que se tornou culpado, não tenha julgado a si mesmo em oculto diante do Senhor, e o pecado agora se tornou conhecido, “espalhou-se”, como no caso da lepra em uma casa (Lv 14:39-40), então o mal que se manifestou na Assembleia é pecado de todos; todos precisam confessá-lo e humilhar-se devido a ele. O procedimento da Assembleia não é semelhante a um tribunal, mas faz-se necessário disciplinar a este indivíduo com amor e assistência. Caso não reagir a isto, precisa ser excluído visando:
- Seu próprio restabelecimento;
- A purificação da Assembleia.
Uma Assembleia perde o seu caráter de Assembleia divina quando recusa purificar-se dessa maneira, quando demonstra tolerância para com o mal ao permitir que esta responsabilidade repouse única e exclusivamente no indivíduo.
A Palavra é explícita e clara ao inculcar que alguém que “não persevera na doutrina de Cristo” não deve ser recebido (2 Jo 9). Não deveríamos esperar que todos tenham a mesma acepção quanto a todos os pontos, por exemplo, quanto à profecia ou aos significados das figuras bíblicas, ou até mesmo quanto à Assembleia. Mas quanto a esta doutrina de Cristo, ou seja “Jesus Cristo vindo em carne”, morto, ressuscitado e glorificado, quanto a isso não poderá haver dúvidas ou pontos obscuros. Quando se trata dos fundamentos do cristianismo, não se pode empregar o mesmo critério de tolerância aplicável (com cautela) à ignorância ou então às diferenças quanto aos demais pontos.
Portanto, para que alguém seja recebido à Mesa do Senhor, é necessário que a Assembleia naquela localidade não tenha dúvidas sobre o caminhar daquele que deseja participar (pois ela tem que guardar-se do mal moral), e que examine as convicções dele (pois o mal doutrinário requer tanto mais precaução).Tomemos um exemplo: um cristão está “de passagem” e deseja “partir o pão” numa localidade. Ele é desconhecido ali, neste caso, é da ordem mais elementar que seja recomendado por irmãos conhecidos ou então por uma assembleia conhecida. Não se trata de acolher um “darbysta” (somente para retomar aquela repetida censura), ou então acolher um membro de uma “denominação sem nome” – já a simples menção destas ideias merece veemente repúdio –, trata-se, porém, de acolher um sacerdote, depois que este apresentar o seu “registro genealógico” (Ed 2:62). Um procedimento diferente seria negar o senhorio de Cristo sobre a Assembleia.
Ao contrário, agora, como é que cristãos, que reconhecem esta soberania de Cristo, teriam a liberdade de partir o pão em uma assembleia em que se tolera o mal, seja ele moral ou doutrinário? A própria consciência e o amor ao Senhor tem a resposta a esta questão. Mas… você poderia argumentar, trata-se de uma Assembleia de crentes que está posicionada fora das organizações humanas, e onde não é ensinado nada conflitante com a “doutrina de Cristo”. Isso é possível, e nos alegramos sobre isso, mas persiste ainda o fato que ali, devido ao desejo de estender os braços a todos, quase todos são acolhidos para partir o pão sob a sua própria responsabilidade. No entanto, este procedimento significa permitir que a Mesa, na qual expressamos a comunhão, seja introduzida em ligação com o mal em alguma de suas formas. Esta orientação certamente permitirá ocasião em que seja acolhido alguém que tenha sido excluído em outra localidade, o que é negar a Unidade do Corpo, a única realidade que é segura dentre o caos dos sempre mutantes pontos de vista religiosos.
Seja longe de nós considerar que aquele, que se considera livre para tomar a ceia onde quiser, não possa ser um cristão verdadeiro; talvez este até seja mais fiel e dedicado ao Senhor que outros. Mas ao tomar a ceia hoje entre um grupo, e na próxima vez entre outro, ele está se ligando justamente com aquilo do qual o Senhor quer que saiamos fora; busca a mescla onde o Senhor ordena a separação (2 Cor 6:17). É impossível, ainda que isso doa a nossos corações, acolher tal crente para partir o pão sem negar (não os ditos “princípios dos irmãos” – expressão, aliás, que deve ser repudiada, porém) o ensinamento da Palavra. Não é por não aceitar as ideias de J. N. Darby ou outros que não lhe franqueamos a participação, mas porque sob o pretexto de unidade está justamente anulando a unidade e, talvez até sem dar-se conta, favorecendo a confusão.
Vamos nos perguntar bem sinceramente: Quem é que deve ser censurado por semear divisões entre os filhos de Deus? Aqueles que querem seguir articulados com todos, aprovando justamente assim o esfacelamento, ou aqueles que consideram que há somente uma base para a reunião, a qual consiste em considerar e proclamar a unidade do Corpo de Cristo? Caso este procedimento ocasione tristeza no coração de algum irmão ao qual não foi permitido participar da Mesa do Senhor, pode-se perguntar-lhe a razão de sua mágoa: “Será que sua tristeza não se deve à concepção errada que tem de uma assembleia que se reúne na base bíblica? Será que não considera os irmãos uma seita dentre outras, enquanto que a razão pela qual não lhe é franqueada a participação é justamente a de que estes irmãos não querem ser uma seita entre outras?”.
Que Deus nos guarde de qualquer regulamentação. Cada caso deve ser considerado por si. Rejeitar algum cristão cujos passos e fé manifestam serem sadios, e que nunca se ocupou com esse aspecto, e que em toda sinceridade deseja participar na Mesa do Senhor, seria sectarismo. Mas vocês hão de concordar que tais casos hoje são raros, e que há também aquelas pessoas (talvez até conheçamos algumas) que conhecem muito bem esta posição que expusemos, e dos quais não podemos conter a impressão de que querem pôr seus irmãos à prova, criando ocasião para que se contradigam, enquanto elas próprias não querem abrir mão da “liberdade” de ir a todos os lugares que bem lhes parecer; procurando lançar em descrédito aquilo que chamam de “coração estreito” em seus irmãos, ferem-nos mais do que se dão conta.
Não, nós não somos a Assembleia, não somos os irmãos, a Mesa do Senhor não nos pertence, mas todos os cristãos são responsáveis por reter aquilo que a Palavra ensina acerca da Assembleia de Deus, e de caminhar como irmãos em Cristo e tomar o seu lugar à Mesa do Senhor, honrando-O conforme LHE compete.
Guardemo-nos, pois, constantemente, de um espírito sectário. Exortemos uns aos outros para caminhar pessoalmente de maneira que o inimigo não possa nos fazer mal algum. Seus ataques não hão de cessar, mas a nossa parte é vestir-nos de toda a armadura de Deus (não a nossa). Uma separação exterior, formal, nada seria sem a santificação, e esta se desenvolve em um coração que, em pureza e em toda a humildade, ama a Cristo e aos que LHE pertencem.
Não construamos nem um outro muro do que aquele que a Palavra nos exorta a edificar. Mas também não sejamos negligentes em considerar a “planta” deste muro enquanto o construímos: cada um individualmente diante de sua casa, e todos juntos (não ao redor de nosso “bairro”, mas) ao redor da (única) “cidade”. A Assembleia é uma unidade. Mesmo que aqui na Terra ela tenha se tornado uma “grande casa” (2 Tm 2), não devemos sair dela. Não podemos fazê-lo pois somos parte dela. Temos que suportar suas dores, lamentar sua vergonha, humilhar-nos por suas contaminações, sentir-nos despedaçados ante sua desunião, mas também – e não nos esqueçamos disso – reconhecer, agradecidos, a fidelidade do Senhor para com Sua Assembleia, e anunciar aquela Unidade que continua existindo e sendo maravilhosa a Seus olhos; alegremo-nos também pelos dons que Ele dá à Assembleia toda, (e não somente a este ou aquele grupo de cristãos). Até ao fim estará empenhado em santificá-los, não se cansando, jamais, de aconselhar aquela que, cá embaixo, leva o Seu nome, e, em amor, advertindo-a do perigo.
Porém, no interior desta casa, à qual sempre pertenceremos, habita o Espírito de Deus, não um homem, e este nos diz: “Aparte-se da injustiça todo aquele que professa o nome do Senhor” (2 Tm 2:19-23). “Paz seja com os irmãos, e amor com fé, da parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo!” (Ef 6:23).
André Gilbert – Publicado sob o título “Einheit oder Verwirrung”, Ernst Paulus Verlag, Alemanha.