… e dele não fizemos caso (Is 53.3) – Para alguns de nós não será fácil recordar a primeira vez em que ouvimos o nome de Jesus. Na tenra infância esse doce som era-nos tão familiar aos ouvidos quanto suaves as canções de ninar. Nossas recordações mais remotas associam-se à casa de Deus, ao altar da família, à Bíblia Sagrada, aos hinos sacros e à oração fervorosa.
Como pequenos Samuéis, éramos iluminados em nosso repouso pelas lâmpadas do santuário e despertados pelo som de um hino matinal. Muitas vezes um homem de Deus, recebido pela hospitalidade dos nossos pais, implorou uma bênção sobre nossas cabeças, desejando com toda sinceridade que pudéssemos cedo chamar o Redentor de bendito; e a essa petição ouvia-se um ardente “amém” de uma mãe. A nós pertencia uma feliz porção e uma herança boa; mesmo assim, “nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu minha mãe”, e esses privilégios não foram suficientes para nos dar o amor Jesus e o perdão pelo seu sangue.
Frequentemente somos levados a lamentar por pecados agravados pela luz clara como a do meio-dia – ordenanças subestimadas por sua própria frequência – avisos desprezados, embora acompanhados de lágrimas paternais, e aversões sentidas no coração, se não expressas pelos lábios, para com as ricas bênçãos celestiais. Somos testemunhas, em pessoa, do fato de haver uma depravação inata, a praga de nascença deixada ao homem; e podemos testificar a doutrina de que a graça, e tão somente ela, pode mudar o coração. São nossas as palavras de Isaías com ênfase, apesar das influências santificadas que nos cercam; ao proferirmos a confissão: “…e dele não fizemos caso“, os esconderijos de nossa infância, as companhias de nossa juventude e os pecados de nossa vida adulta unanimemente confirmam que falamos a verdade.
Iniciando, pois, com nossa própria experiência, somos levados a deduzir que aqueles a quem foram negadas nossas vantagens certamente serão compelidos a adotar a mesma linguagem humilde. Se o filho de pais consagrados, que pelo poder divino foi levado a conhecer o Senhor na juventude, se sente constrangido a reconhecer que houve um tempo em que não fez caso do Salvador, será que o homem que teve uma educação irreligiosa, uma infância tumultuada, uma juventude permissiva e uma maturidade criminosa poderá adotar uma linguagem menos humilhante? Não; acreditamos que todo homem nessas condições, que agora se encontra redimido das mãos do inimigo, reconhece prontamente que outrora negligenciou cegamente as belezas do nosso glorioso Emanuel. E mais: nos aventuramos a desafiar a “igreja do primogênito” a apresentar um único santo que não tenha passado diante da cruz com indiferença, ou até com desdém.
Não importa se revistamos o “nobre exército de mártires”, “a devota comunhão dos profetas”, “o glorioso grupo dos apóstolos”, ou “a santa igreja espalhada pelo mundo”, não descobriremos sequer um amante do adorável Redentor que não participe da confissão coletiva: “…e dele não fizemos caso“.
A você eu peço que faça uma pausa para se perguntar se você faz caso dele agora; pois pode suceder que até o presente você não tenha visto nele “nenhuma beleza que o agradasse”, ou não tenha tomado para si a exclamação da esposa: “Sim, ele é totalmente desejável”. Se você se encontra neste estado infeliz, uma meditação sobre isso, sob a influência do Espírito Santo, será de grande valia; e rogo-lhe que, enquanto revelamos os segredos do que outrora era nossa prisão, você anseie intensamente a libertação da escravidão que o priva de viver alegremente aqui e o afasta da felicidade no futuro.
Primeiramente, proponho que nos esforcemos por trazer vividamente diante de nossos olhos o fato de termos outrora feito pouco caso da pessoa de Jesus; em segundo lugar, veremos as causas dessa insensatez; e em terceiro, tentaremos despertar emoções próprias a essa contemplação contrita.
I. Vamos à casa do oleiro ver como éramos antes barro sem forma; lembremo-nos da “rocha de que fomos cortados” e da “caverna do poço de que fomos cavados”, para repetirmos com profundo pesar as palavras do profeta: “… e dele não fizemos caso“. Examinemos seriamente o diário da memória, pois nele estão fielmente registrados os nomes das testemunhas da nossa culpa.
Façamos uma pausa para considerar primeiro nossos atos pecaminosos visíveis, pois são como imensas voçorocas margeando a montanha da vida, comprovando a existência da rocha por baixo.
Poucos homens se arriscariam a ler sua própria biografia, se todos os seus feitos estivessem ali registrados. Poucos podem olhar seu passado sem corar de vergonha. “Todos pecamos e carecemos da glória de Deus”. Nenhum de nós pode alegar per feição. E verdade que, muitas vezes, uma descuidada auto complacência nos faz exultar na virtude das nossas vidas, mas assim que a fiel memória desperta, instantaneamente ela dissipa essa ilusão! A memória agita sua varinha mágica e centenas de sapos surgem no palácio do rei; os rios límpidos tornam-se em sangue ao seu olhar; toda a terra fervilha de coisas nojentas. Onde imaginávamos pureza, surge a imperfeição. A grinalda de neve da satisfação derrete diante do sol da verdade; a tigela açucarada dos aplausos torna-se amarga com lembranças tristes; sob a lupa da honestidade, as deformidades e irregularidades de uma vida aparentemente correta tornam-se desgraçadamente visíveis.
Deixemos que o cristão cujos cabelos estão branqueados pela luz do céu conte a história da sua vida. Ele pode ter sido uma das pessoas mais corretas e moralistas, mas haverá uma mancha escura em sua história, pela qual ele derramará lágrimas de arrependimento, pois naquela época ele não conhecia o temor do Senhor. Ou chamemos um heroico guerreiro de Jesus para relatar seus feitos; até ele também apresentará cicatrizes profundas, sequelas dos ferimentos recebidos a serviço do Inimigo. Alguns entre os escolhidos, antes de sua regeneração, eram notórios pela culpa e poderiam escrever com Bunyan em “Grace Abounding” [Graça Abundante]): “A minha vida natural, no tempo em que eu estava sem Deus no mundo, em verdade era segundo o curso deste mundo e o espírito que agora atua nos filhos da desobediência. Era meu prazer estar cativo nos laços de Satanás, cheio de injustiça, que operava tão intensamente, tanto em meu coração quanto em minha vida, que havia poucos que amaldiçoavam, praguejavam, mentiam e blasfemavam contra o santo nome de Deus tão bem como eu”. E suficiente, porém, dizer que cada um de nós cometeu pecados que provam que “dele não fizemos caso“.
Será que teríamos nos rebelado contra o Pai com tanta ousadia, se o seu Filho fosse o objeto do nosso amor? Será que teríamos passado por cima dos mandamentos de um Jesus venerado? Seríamos capazes de desrespeitar sua autoridade se nossos corações estivessem ligados à sua adorável pessoa? Teríamos pecado tão terrivelmente se o Calvário nos fosse precioso? Não, sem dúvida nossas nuvens de transgressões testificam nossa anterior falta de amor por ele. Se fizéssemos caso do Deus-Homem, será que teríamos negligenciado tão completamente suas reivindicações? Esquecido totalmente suas palavras amáveis de comando? Será possível insultar a quem se admira; trair um rei amado; desrespeitar a quem se estima ou zombar intencionalmente de quem se venera? Todavia, fizemos tudo isso e mais um pouco; pelo que a menor palavra de lisonja alegando amor natural por Cristo fica evidente aos nossos corações, agora honestos, como sendo tão odiosa quanto o silvo da serpente. Essas iniquidades não constituiriam uma prova tão séria de que desprezamos nosso Senhor, caso fossem seguidas de pequenos serviços para ele. Mesmo agora, quando amamos seu nome, muitas vezes somos infiéis, só que agora nossa afeição nos ajuda a “nos arrastarmos em serviço para onde não podemos andar”. Antes, porém, entre nossos atos passados não havia nenhum que fosse temperado com o sal do amor sincero; eram todos embebidos no fel da amargura. Ó amado, não nos esquivemos do peso dessa evidência, mas reconheçamos que nosso gracioso Senhor tem muito de que nos acusar, já que escolhemos obedecer a Satanás em vez de ao Capitão da salvação e preferimos o pecado à santidade.
Deixemos o fariseu presunçoso gabar-se por ter nascido livre – nós vemos em nossos pulsos as marcas vermelhas dos ferros; que ele se glorie nunca ter sido cego – nossos olhos ainda conseguem lembrar a escuridão do Egito, em que não conseguíamos ver a estrela da manhã. Outros podem almejar a honra de uma salvação merecida – nós sabemos que nossa maior ambição pode ser apenas desejar o perdão e a aceitação tão somente pela graça; lembramos bem o tempo em que o único canal da graça foi desprezado ou negligenciado por nós.
O Livro da Verdade ainda tem mais para testemunhar contra nós. Ainda não se apagou da memória a época em que não bebíamos desta sagrada fonte de água viva, nossos vis corações tinham colocado uma pedra sobre a boca do poço que nem a consciência podia remover. A poeira acumulada na Bíblia sujava os dedos; o abençoado volume era o menos procurado de todos os livros da biblioteca.
Embora hoje possamos dizer que a Palavra de Deus é “um templo incomparável onde temos prazer em estar, para contemplar a beleza, a simetria e a magnificência da estrutura, para aumentar nossa reverência e estimular nossa adoração à Divindade ali pregada e venerada” (Boyle), houve um período triste em nossas vidas em que recusamos pisar o chão precioso do templo, ou quando apenas por costume entrávamos nele, com passos apressados, inconscientes de sua santidade, desapercebidos de sua beleza, ignorantes de suas glórias e não reverentes à sua majestade.
Agora podemos apreciar a afeição em êxtase de Herbert expressa em seu poema:
O livro infinitamente doce! Que eu coma cada letra, como mel; E bom para curar que quer que fosse, Aliviar a dor, tirar o fel.
Naquele tempo um poema efêmero ou romance fútil podia comover nossos corações milhares de vezes mais facilmente do que este “livro de estrelas”, este “deus dos livros”. Ah, essa Bíblia negligenciada prova muito bem que estimamos Cristo muito pouco. Na verdade, se estivéssemos cheios de afeto por ele, teríamos procurado por ele em sua Palavra. Nela, ele se despe, mostrando íntimo de seu coração. Nela, cada página está manchada com gotas do seu sangue ou ornada com raios da sua glória. A cada momento o vemos, divino e humano, morrendo e mesmo assim vivo, sepultado e agora ressurreto, Vítima e Sacerdote, Príncipe e Salvador, e todos esses diferentes papéis, relações e condições o tornam valioso para seu povo e precioso para seus santos. Ah, ajoelhemo-nos diante do Senhor e reconheçamos que “dele não fizemos caso“, ou teríamos andado com ele nos campos das Escrituras e tido comunhão com ele nos canteiros da inspiração.
O Trono da Graça, que por tanto tempo não visitamos, igualmente proclama nossa culpa anterior. Raramente nossas súplicas eram ouvidas no céu; nossas petições eram formais e sem vida e morriam nos lábios desatentos que as pronunciavam. Ah, que crime quando não nos consagrávamos à adoração, o incensário do louvor não levava um aroma aceitável ao Senhor, nem os frascos da oração exalavam um perfume precioso!
Sem serem branqueados pela devoção, os dias do calendário ficavam sujos pelo pecado; não sendo impedido por nossas súplicas, o anjo do julgamento acelerava sua vinda para a nossa destruição. A lembrança daqueles dias de silêncio pecaminoso nossas mentes humilham-se no pó; não podemos nos achegar ao trono de misericórdia sem adorar a graça que recebe com boas-vindas aqueles que o desprezaram.
Todavia, por que “nosso coração não esteve em peregrinação”? Por que não cantamos a “melodia que todos ouvem e temem”? Por que não nos alimentamos do “banquete da igreja”, do “maná precioso”? Que resposta podemos dar mais completa e plena do que esta: “dele não fizemos caso“? Nossa pouca consideração de Jesus afastou-nos de seu trono. A afeição verdadeira teria conseguido o pronto acesso que a oração dá ao aposento secreto de Jesus recebendo abundância de amor. Podemos abandonar agora o trono? Não; nossos momentos mais felizes são quando nos ajoelhamos, pois assim é que Jesus se manifesta a nós. Apreciamos a companhia deste que é o melhor amigo, pois sua presença divina “traz tal beleza interior para a casa onde ele habita, que os palácios mais suntuosos invejam seu esplendor”. Com prazer procuramos o lugar secreto, pois ali nosso Salvador nos permite desabafar nossas alegrias e tristezas, passando-as para ele.
Ó, Cordeiro de Deus! Nossa negligência na oração nos leva a confessar que houve um tempo em que não víamos em ti aparência nem formosura.
Ademais, o fato de evitarmos o povo de Deus, confirma a verdade humilhante. Nós que agora fazemos parte do “exército sagrado dos eleitos de Deus, nos alegrando na amizade dos justos, éramos outrora “estrangeiros e peregrinos”. A língua de Canaã era aos nossos ouvidos um gaguejar sem significado, do qual escarnecíamos, uma gíria grosseira que não tentávamos imitar, ou uma “língua estranha” além da nossa capacidade de interpretação. Os herdeiros da vida eram ou desprezados por nós como “objetos de barro, obra das mãos de oleiro”, ou nos retirávamos da companhia deles cientes de que não éramos companheiros dignos dos “nobres filhos de Sião, comparáveis a ouro puro”.
Muitas vezes olhamos cansados para o relógio quando, em companhia de alguém, o tema era espiritual demais para nossa compreensão fraca; tantas vezes preferimos a amizade de mundanos risonhos à de crentes mais sérios.
Será preciso indagar qual a origem desta antipatia? O rio amargo não se compara ao rio do Egito, silencioso quanto à sua nascente: ele proclama sua origem abertamente, e o ouvido da auto preferência não pode ser surdo à voz da verdade – “Não amastes os servos, porque não fizestes caso de seu mestre; nem convivestes entre os irmãos, pois não estabelecestes amizade com o primogênito da família”.Uma das evidências mais claras da alienação de Deus é a falta de vínculo com seu povo. Num grau maior ou menor cada um de nós já passou por isso. E verdade que há certos cristãos com quem gostávamos de estar; contudo, havemos de convir que esse prazer em sua companhia devia-se mais à amabilidade de suas maneiras ou ao estilo cativante de falarem, do que à sua excelência intrínseca. Avaliamos a joia pelo seu engaste, mas um seixo comum no mesmo anel teria igualmente nos chamado à atenção. Os santos, como santos, não eram nossos amigos diletos, nem podíamos dizer: “Sou amigo de todos os que temem a Deus”.
Tais sentimentos são produto da mais elevada estima pelo Redentor, e sua ausência anterior constitui uma prova conclusiva de que nesse tempo “dele não fizemos caso“. Não temos mais necessidade de ajuda nesta autocondenação.
Domingos profanados partem como guerreiros de um clã selvagem da mata fechada do tempo desperdiçado; eles investem contra o santuário deserto, ameaçando-o com uma vingança terrível, se o escudo de Jesus não nos protegesse; as cordas de seus arcos são ordenanças negligenciadas, e suas flechas são mensagens de misericórdia desprezadas.
Todavia, para que esses acusadores? A consciência, guarda da alma, já viu o suficiente. Ela afirmará que viu nossos ouvidos fechados para a voz convidativa do amigo dos pecadores; e que por diversas vezes desviamos os olhos da cruz, quando Jesus estava bem visível.
II. Iniciaremos agora um exame das causas ocultas deste pecado. Uma vez curada a doença, pode ser útil saber sua origem, para servir a outros e beneficiar a si mesmo.
Nossa frieza em relação ao Salvador resultou primeiramente do mal natural de nossos corações. Podemos discernir claramente por que o dissoluto e o perverso têm pouco apreço por pureza e excelência: a mesma razão pode ser dada do nosso desprezo pela encarnação da virtude na pessoa de nosso Senhor Jesus. O pecado é loucura que desqualifica a mente para o julgamento sóbrio, cegueira que torna a alma incapaz de apreciar a beleza moral; é de fato uma perversão de todas as capacidades em tal escala que, sob sua terrível influência, os homens “ao mal chamam bem e ao bem, mal; fazem da escuridade luz e da luz, escuridade; põem o amargo por doce e o doce por amargo”. Para nós, em nossa condição caída, demônios muitas vezes parecem ser mais justos do que anjos; confundimos os portões do inferno com os portais da glória e preferimos as mentiras camufladas de Satanás às verdades eternas do Altíssimo. Vingança, luxúria, ambição, orgulho e vontade-própria são mui frequentemente exaltados como os deuses da idolatria dos homens, enquanto santidade, paz, contentamento e humildade são vistos como indignos de uma consideração mais séria. Ah, pecado, o que foi que fizeste! ou melhor, o que desfizeste! Não te contentaste em roubar à humanidade a coroa, desviá-la de seu reino feliz, estragar suas vestes reais e saquear seu tesouro; tens feito muito mais do que isto! Não basta degradar e desonrar; feres tuas vítimas, cegas-lhes os olhos, fechas seus ouvidos, confundes seu julgamento e amordaças sua consciência; sim, o veneno de tua flecha malévola contamina a fonte com morte. Tua malícia penetrou o coração da humanidade e, por conseguinte, encheu suas artérias com corrupção e seus ossos com depravação. Sim, monstro, te tornaste um assassino, pois nos deixaste mortos em transgressões e pecados!
Este último termo desvenda todo o mistério, pois se estamos espiritualmente mortos, naturalmente é impossível conhecer e reverenciar o Príncipe da glória. Acaso um morto pode ser levado ao êxtase ou pode seu corpo ser motivado a contemplação sublime? Tente estimular um corpo sem vida, enquanto ele ainda não virou banquete para os vermes e a moldura ainda está completa, embora sem vida. Traga para perto dele o alaúde e a harpa, deixe que melodias suaves e harmonias lindas tentem induzir esse homem ao prazer: ele não vai sorrir com a melodia harmoniosa, nem se comoverá com a cadência melancólica; sim, ainda que a orquestra do redentor extravasasse com fulgor sua música, ele se manteria surdo ao encanto celestial.
Você quer assaltar a cidade por outro portão? Então, coloque perante os olhos desse ser as mais lindas flores colhidas desde que as plantas do Éden foram criadas. Será que ele atentará para a delicadeza da rosa ou a brancura do lírio? Não, esse homem não reconhece a ternura delas mais do que as águas do Nilo percebem a flor-de-lótus que sustenta em seu leito. Venham, ainda, as tâmaras da Arábia e os ventos impregnados de odores aromáticos do Ceilão, e que o incenso de substâncias fragrantes, de o “olíbano” e “mirra”, exale diante dele; eis que suas narinas permanecem tão imóveis quanto uma estátua, e seus lábios não manifestam nenhum prazer. Sim, você pode trazer auxílios mais poderosos, como o estrondo de uma avalanche, o bramido de cataratas, a fúria do oceano, o uivo dos ventos, o ribombar de um terremoto e o reboo de um trovão: ainda que todos esses sons unidos de uma só vez ressoassem, não levantariam o dormente de seu divã fatal. Está morto, e este fato desvenda todo o mistério. Assim também nós, agora avivados pelo Espírito Santo, estivemos um dia mortos no pecado e “dele não fizemos caso“. Eis aí a raiz de todos os nossos delitos, a origem de toda a nossa iniquidade.
As causas secundárias da loucura que cometemos estão logo abaixo da superfície e requerem apenas um momento de observação. O amor próprio contribuiu em muito para que maltratássemos o “amigo dos pecadores”. A presunção com nossos méritos próprios fez-nos indiferentes às reivindicações daquele que buscava para nós uma justiça perfeita. “Os sãos não precisam de médico”: nos sentíamos insultados pela linguagem de um Evangelho que nos falava como se fôssemos seres indignos. A cruz pode exercer pouco poder onde o orgulho oculta a necessidade de perdão; um sacrifício é pouco valorizado quando não estamos conscientes de que precisamos dele. Em nossa opinião, éramos as criaturas mais nobres; a oração do fariseu poderia sinceramente provir de nós. Ganhamos algumas ninharias aqui e ali desonestamente mas, no geral, pensávamos que estávamos nos tornando “ricos e abastados”; e mesmo quando sob a poderosa voz da lei éramos defrontados com nossa pobreza, ainda esperávamos, através da obediência futura, reverter a sentença, e estávamos totalmente relutantes em aceitar a salvação que exigia uma renúncia de todos os méritos e uma confiança simples no Redentor crucificado. Jamais deixaríamos a nossa lida nem abandonaríamos a “teia de aranha” do esforço próprio, até que todo o trabalho nos fosse tirado das mãos e nossos dedos se tornassem incapazes; somente então nos vestiríamos com a justificação pela graça. Ninguém pode pensar muito de Cristo até que pense pouco de si mesmo. Quanto mais baixa for a visão de nós mesmos, tanto mais elevados serão os pensamentos sobre Jesus; somente quando o aniquilamento próprio for completo, o Filho de Deus poderá ser “tudo em to dos”.
A vangloria e o amor-próprio são férteis progenitores do mal. Crisóstomo chama o amor-próprio de uma das três grandes armadilhas do maligno; e Bernardo o denomina “uma flecha que perfura a alma e a mata; um inimigo insensível e astuto, não percebido”. Sob a má influência deste poder nós comumente amamos mais quem nos causa mais danos, pois o adulador que ali menta nossa vaidade com clamores agradáveis de “paz, paz”, é muito mais considerado do que o bendito Jesus, que com seriedade nos adverte de nosso estado doentio. Mas, quando a autoconfiança é retirada – quando a alma é despida pela convicção de pecado, quando a luz do espírito revela o estado repugnante do coração, quando o poder da criatura fracassa, quão precioso é Jesus! Como o marujo prestes a naufragar agarra-se à tábua flutuante, o moribundo olha para o médico, e o criminoso valoriza a clemência – assim estimamos o libertador das nossas almas como Príncipe dos reis da terra. A repugnância de si mesmo proporciona uma paixão ardente pelo “amante de nossas almas” cheio de graça; a auto complacência esconde de nós sua glória.
O amor ao mundo também tem sua participação no mau uso deste querido amigo. Quando ele bateu na porta, nós lhe recusamos a entrada porque outro já havia entrado. Já tínhamos escolhido outro esposo a quem basicamente entregamos o coração. “Dá-me riquezas”, diz alguém. Jesus responde: “Eis-me aqui; eu sou melhor que as riquezas do Egito, e vale mais a pena passar vergonha por mim do que desejar tesouros escondidos”. Mas o outro replica: “Tu não és a riqueza que procuro; não busco uma riqueza assim sem substância, ó Jesus! Não me importa uma riqueza para o futuro – desejo uma riqueza para o presente; quero um tesouro em que posso pôr a mão agora; quero ouro para comprar uma casa, uma fazenda, bens; anseio por joias brilhantes que adornem meus dedos; não te peço aquilo que está por vir; pensarei nisto depois que os anos passarem”.
Um outro de nós suplica: “Eu peço por saúde, pois estou doente”. O melhor dos médicos aparece e gentilmente promete: “Vou curar a sua alma, tirarei a lepra e o tornarei são”. “Não, não”, respondemos, “não foi isso o que pedi, ó Jesus! Peço um corpo forte, para que eu possa correr como Asael ou lutar como Hércules; quero me livrar da dor física, mas não te peço saúde espiritual, porque não é isso que quero”. Um terceiro implora por felicidade. “Ouve-me”, disse Jesus, “meus caminhos são agradáveis e minhas veredas, tranquilas”. “Não é essa alegria que procuro”, replicamos precipitadamente. “Quero um cálice transbordante, para saboreá-lo deliciosamente; tenho paixão por noitadas festivas e dias alegres; quero danças, festanças e outros prazeres comuns deste mundo; reserve o seu porvir para os fanáticos – que eles vivam de esperança; eu prefiro este mundo e o presente”.
Assim cada um de nós, a seu modo, dirigiu seu amor para coisas terrenas e desprezou as do alto. Certamente não foi um pintor malvado que rascunhou nossas vidas com seu lápis de desenho: “O intérprete levou-os novamente, e os colocou numa sala onde havia um homem que não podia olhar para outro lado senão para baixo e segurava na mão um escovão; acima dele ha via outro com uma coroa celestial na mão; este lhe ofereceu a coroa em troca do escovão; o homem, porém, sem olhar para cima nem prestar a menor atenção, varreu para junto de si a palha e o pó.
Enquanto amamos o mundo, “o amor do Pai não está em nós,” nem o do Filho Jesus. Não se pode servir a dois senhores. O mundo e Jesus jamais estarão de acordo. Precisamos poder cantar a primeira parte da estrofe de Madame Guion, antes de podermos concordar com sinceridade com a segunda:
Adeus! prazeres vãos daqui,
Esportes e alegrias mil,
Pra mim não têm sabor.
Felicidade, só na cruz,
O resto, vi com meu Jesus,
É lixo sem valor.
Seria uma grande omissão não observarmos que nossa ignorância sobre Cristo foi a principal causa de nossa falta de amor por ele. Agora compreendemos que conhecer a Cristo significa amá-lo. É impossível ter uma visão de sua face, contemplar sua pessoa ou entender sua missão, sem sentir nossas almas aquecidas por ele. Tal é a beleza de nosso bendito Senhor, que todo homem, exceto o espiritualmente cego, presta uma pronta homenagem a ele.
Não é preciso eloquência para apresentar Cristo àqueles que o veem pela fé, porque ele é seu próprio Orador. Sua glória fala, sua boa vontade fala, sua vida fala e, acima de tudo, sua morte fala. O que estes falam sem emitir sons o coração aceita com boa disposição.
Jesus “está oculto da visão do mundo em geral” pela incredulidade intencional da humanidade; sem isso, a visão dele teria causado profunda veneração. A humanidade desconhece a jazida de ouro escondida na mina de Jesus Cristo, do contrário certamente a explorariam dia e noite. Tampouco descobriram a pérola de grande valor, de outra forma teriam vendido tudo o que possuem para comprar o campo onde ela se encontra. A pessoa de Cristo cala toda eloquência que quer descrevê-lo; as mãos do artista ficam paralisadas ao escolher as cores adequadas para pintá-lo; e o escultor não saberia por onde começar a talhar a imagem dele nem que fosse possível em uma pedra maciça de diamante. Nada existe na natureza comparável a ele. Diante de seu resplendor o brilho do sol escurece; sim, nada pode competir com ele, e o próprio céu enrubesce com a simplicidade do seu semblante, ao contemplar este “totalmente desejável”. Ah, vocês que passam por ele sem considerá-lo, bem disse Rutherford: “Se o conhecêssemos e víssemos sua beleza, nosso amor, nosso coração, nossos desejos convergiriam nele. O amor, por natureza, lança sobre o objeto amado seu espírito e força, bem como tudo o que é bom e digno de amor; e o que existe mais belo do que Cristo?” O mundo judeu crucificou-o porque não reconheceram seu rei, e nós o rejeitamos porque não tínhamos visto que ele preenche nossos anseios nem acreditávamos no seu amor por nossas almas. Todos podemos proferir este monólogo de Agostinho: “Existia uma grande nuvem escura de vaidade diante dos meus olhos, de modo que eu não podia ver o sol da justiça e a luz da verdade; sendo filho das trevas, eu estava envolto em escuridão; eu amava as minhas trevas por que não conhecia a tua luz; eu era cego e amava minha cegueira, e andava de escuridão em escuridão; mas tu, Senhor és meu Deus, que me tiraste das trevas e da sombra da morte; tu me chamaste para essa gloriosa luz, e eis que agora vejo!”.
III. Chegamos agora à parte prática desta meditação e consideraremos as emoções despertadas por dela.Primeiro, vemos que a profunda tristeza penitente nos fica bem. Tal qual a lágrima é a melhor rega para o túmulo, e as cinzas são a coroa certa para a cabeça de luto, assim os sentimentos de penitência são a maneira certa de lembrar uma conduta que abandonamos agora e repugnamos. Não conseguimos entender o cristianismo daqueles que são capazes de narrar a história de seu passado com satisfação. Já vimos pessoas recontarem seus crimes com tanto prazer quanto um velho soldado descreve suas façanhas na guerra. Tais pessoas chegam a exagerar seu mal para tornar seus casos mais dignos de admiração, e a gloriar-se de seus pecados do passado como se fossem ornamentos de sua nova vida. Para estes, repetimos as palavras de Paulo aos romanos: “Agora vos envergonhais”. Há ocasiões em que é próprio, benéfico e louvável que o convertido descreva a triste história de sua vida anterior; assim a graça é glorificada e o poder divino exaltado, e a história de sua experiência pode servir para despertar fé em outras pessoas que se julgam abomináveis demais; é necessário, porém, que isto seja feito num espírito correto, que expresse um sincero arrependimento e pesar. Não objetamos a que se narre os feitos do estado anterior à regeneração mas, sim, o modo como isso geralmente ocorre. Se o pecado tem o seu monumento, que seja num monte de pedras arremessadas pelas mãos da excomunhão – não um mausoléu erigido por mãos de ternura. Vamos dar-lhe o enterro de Absalão – não permitindo que descanse no sepulcro real.
A libação de lágrimas não deve ser a única oferta no santuário de Jesus; vamos também exultar com alegria indizível. Se temos de lamentar pelos pecados cometidos, quanto mais havemos de nos alegrar pelo seu perdão! Se o nosso estado anterior enche-nos os olhos de lágrimas, será que o novo estado em que nos encontramos não fará nossos corações pularem de alegria? Sim, precisamos e iremos louvar o Senhor pela sua graça soberana e incomparável. A nós cabe entoar-lhe um canto eterno pela mudança de nosso estado; ele nos deu discernimento, e fê-lo por mera e imerecida misericórdia, uma vez que, assim como outros, “dele não fizemos caso“. Certamente Jesus não nos elegeu para a alta honra de sermos um com ele por causa de nosso amor por ele, pois de fato confessamos exatamente o oposto. Dizem que, ao perguntarem ao santificado antepassado deste escritor, o Dr. Rippon, por que Deus escolheu seu povo, ele respondeu: “Porque o escolheu”, e quando repetiu-se a pergunta, ele novamente respondeu: “Porque o escolheu, e se me perguntarem isso mais cem vezes, não poderei dar-lhes outra razão”. “Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado”. Que a nossa gratidão pela graça divina redunde em louvores; que todo o nosso ser entoe honras a ele, o qual nos elegeu de modo soberano, nos redimiu por sangue e nos chamou pela graça.
Não haveríamos também de prostrarmos profundamente o espírito com a lembrança da nossa culpa? O objeto da presente contemplação não deveria ser uma punhalada no coração do orgulho? Chegue mais perto, cristão, embora agora revestido da armadura da salvação, e veja como andava outrora nu. Não se gabe de suas riquezas, lembre-se de como era um simples mendigo; nem se glorie em suas virtudes, elas são estranhas ao seu coração; lembre-se das plantas mortíferas – a vegetação nativa daquele solo mau. Incline-se com o rosto no chão e, apesar de não poder ocultar-se sob as asas como os anjos, permita que o arrependimento e auto repugnância cubram-no. Não pense que humildade é fraqueza; ela prove o tutano que é a força dos ossos. Incline-se para vencer; prostre-se e torne-se invencível.
Se tivéssemos uma visão correta de nós mesmos, a ninguém julgaríamos vil demais para ser regenerado e não consideraríamos uma desonra carregar nos ombros o mais errante do rebanho. Entre nós há muito do espírito: “Espere-me passar, porque sou mais santo do que você”. Aqueles que Jesus teria de agarrar pela mão nós não arrastaríamos nem com uma tenaz; tal o orgulho de certos professores, que deveriam ser reconhecidos como legítimos sucessores dos antigos fariseus. Se fôssemos mais parecidos com Cristo, estaríamos mais prontos a ter esperança pelos desesperados, valorizar os indignos e amar os que estão atolados em pecado.
A seguinte história, que o autor ouviu de um estimado ministro da Igreja da Inglaterra, talvez possa, como um fato, ser mais eficaz que as palavras. Certo pastor de uma paróquia na Irlanda havia visitado todas as pessoas abrangidas por seu rebanho, exceto uma. Tratava-se de uma mulher com uma vida depravada; ele temia que o fato de entrar na casa dela desse motivo de ofensa aos maldizentes, trazendo desonra para o seu ofício. Num domingo, percebeu a mulher entre os presentes ao culto, e durante semanas notou como ela dava atenção à Palavra da Vida. Pensou, também, ouvir, entre o som das respostas, uma voz doce e sincera, confessando solenemente seu pecado e implorando misericórdia. Compadeceu-se daquela filha de Eva decaída; ele ansiava por perguntar-lhe se de fato seu coração havia sido quebrantado e desejava intensamente falar-lhe sobre a graça abundante, na esperança de que ela tivesse sido salva do fogo. Mesmo assim, a mesma atitude sensível o impediu de entrar na casa; vez após vez ele passou por sua porta com um olhar compassivo, ansioso pela salvação dela, porém zeloso de sua própria honra. Isso durou um bom tempo, mas um dia ela o chamou e, em prantos que revelavam um coração quebrantado, disse-lhe: “Ah, senhor! Se o seu Mestre tivesse estado nesta aldeia metade do tempo do senhor, ele já teria vindo falar comigo há muito, pois sou a pior das pecadoras e preciso mais do que ninguém da sua misericórdia”. Podemos até imaginar o coração daquele pastor derretendo ao ver sua atitude ser condenada de modo tão cuidadoso na comparação com seu Mestre amoroso. A partir desse dia, ele decidiu não negligenciar ninguém, mas sim reunir todos os “marginalizados em Israel”. Meditando nisso, que possamos, para nosso próprio proveito, ser constrangidos a fazer o mesmo, possibilitando que alguma alma tenha motivo para bendizer o nome de Deus porque os nossos pensamentos foram dirigidos para ela. Que o Espírito da graça, que prometeu nos “guiar a toda a verdade” por meio de sua santa influência, santifique para o nosso bem essa visita à casa onde nascemos, despertando em nós todas as emoções convenientes e guiando-nos para ações compatíveis com este grato retrospecto.
Charles Haddon Spurgeon | Projeto Spurgeon – Proclamando a Cristo Crucificado.