“Uma coisa te falta… uma só coisa é necessária… uma coisa faço” (Mc 10:21; Lc 10:42; Fp 3:13).
As Escrituras em que essas três afirmações ocorrem trazem diante de nós personagens muito diferentes. Na primeira passagem, aprendemos que “uma coisa” estava faltando ao jovem rico. No segundo, aprendemos na história de Marta e Maria que a “única coisa” que falta é a “uma coisa” necessária. Na terceira, descobrimos que a “única coisa” necessária é “uma coisa” que marcou o apóstolo Paulo. Vendo que nosso Senhor coloca ênfase sobre esta “uma coisa”, certamente convém sondar nossos corações, à luz dessas Escrituras, com o desejo sincero de sermos marcados por essa “coisa única”.
1. ” Uma coisa te falta” (Mc 10:17-22)
Na história do jovem rico, duas verdades são destacadas diante de nós. Primeira, aprendemos que em diversas maneiras nossas vidas podem ser honrosas e, no entanto, faltar “uma coisa”. Segunda, descobrimos que essa “uma coisa” é devoção fiel a Cristo (N.T.: um coração todo em e para Cristo, não um coração dobre, dividido entre as coisas ao redor e Cristo. Esse é o significado de “devoção fiel” ao longo deste texto).
De todos os diferentes personagens que entraram em contato com nosso Senhor em Sua passagem aqui, talvez nenhum outro apresente um fim mais doloroso do que o desse jovem rico. Houve tanto no início de sua história que prometia um futuro brilhante como discípulo de Cristo; no entanto, no final, lemos que ele “retirou-se triste”. Até onde temos algum registro nas Escrituras, ele nunca mais é encontrado na companhia de Cristo e dos Seus. Portanto, mesmo que fosse um crente em seu coração, ele perdeu a bênção da companhia de Cristo no meio do Seu povo e falhou como uma testemunha de Cristo no mundo.
Este jovem tinha sinais de ter muitas qualidades e muita beleza moral. Ele era um jovem sincero, pois lemos que ele veio “correndo” para o Senhor. Ele era reverente porque “se ajoelhou” em Sua presença. Ele tinha um desejo além das bênçãos espirituais, como a vida eterna. Sua vida exterior era irrepreensível, pois ele observara a lei desde a juventude. Todas essas qualidades, em seu devido lugar, são belas e atraentes, e o Senhor não se esqueceu delas pois lemos que “Jesus, olhando para ele, o amou”. No entanto, com todas essas qualidades, o Senhor discerne que faltava “uma coisa”.
Para tornar manifesta a única coisa que falta em sua vida, o Senhor aplica três testes. Assim como com o jovem, serve para nós também, podemos estar vivendo vidas aparentemente decentes e irrepreensíveis, e ainda assim, nosso testemunho para Cristo é marcado pela falta de “uma coisa”. Portanto, será bom provar a nós mesmos pelas três provas que o Senhor coloca diante do jovem rico.
- Primeiro, ele foi testado por suas posses terrenas;
- Segundo, ele foi testado pela cruz;
- Terceiro, ele foi testado por uma Pessoa, o Cristo rejeitado.
Havia algo que ele foi convidado a renunciar; algo para pegar e Alguém para seguir.
O primeiro teste é sobre posses terrenas. Levando-os no sentido mais amplo como todas aquelas coisas que seriam uma vantagem para nós como vivendo no mundo, podemos perguntar: “Temos pesado todas estas coisas à luz de Cristo, e contado, mas perdemos a Cristo?” Já calculamos as vantagens que “nosso berço” pode conferir; a facilidade e os prazeres mundanos que as riquezas podem assegurar; a posição, a honra e as dignidades que o intelecto, ou genialidade, ou realizações, podem controlar? Então, sem minimizar essas coisas, olhamos com todo nosso ser para a face de Jesus – Aquele que é totalmente amável – e, visto que Ele é incomparavelmente maior do que todas essas coisas, temos, no poder da afeição por Cristo, deliberadamente feito a escolha de que Cristo será nosso grande objetivo e não essas coisas?
O segundo teste é a cruz. O Senhor diz ao jovem “pegue a cruz”. Estamos preparados para aceitar o lugar em relação ao mundo em que a cruz nos colocou diante de Deus? O apóstolo poderia dizer: “longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu, para o mundo” (Gl 6:14). A cruz se interpõe entre nós e nossos pecados, o velho homem e o juízo: mas também vimos que está entre nós e o mundo? Se tomarmos a cruz, não só o mundo é condenado por nós, mas seremos totalmente recusados pelo mundo.
O terceiro teste é um Cristo rejeitado; porque o Senhor diz ao jovem: “segue-me”. Estamos preparados para nos identificar com Aquele que é odiado e rejeitado pelo mundo? Aquele que nasceu em um estábulo e aninhado em uma manjedoura; que, em sua passagem por este mundo, não tinha onde reclinar a cabeça; que morreu uma morte desonrosa em uma cruz de vergonha e foi enterrado em uma sepultura emprestada; Um, que em ressurreição ainda era encontrado em companhia de alguns pobres pescadores; Um que estava e ainda está em um lugar exterior de reprovação? Estamos preparados para segui-lo sem que o arraial suporte Seu opróbrio?
Assim, os testes naquele dia, assim como hoje, foram: Podemos desistir das vantagens terrenas, tomar um lugar fora do mundo e seguir a Cristo, Aquele que está em reprovação? Esses testes se aplicam a nós assim como ao jovem rico, e a pergunta para cada um dos testes, que resposta damos?
Podemos responder a esses testes de duas maneiras. Primeiro, como o jovem de quem lemos ele “retirou-se triste”, podemos voltar às coisas terrenas. Ele não se afastou com raiva ou ódio de Cristo. Ele não teve culpa de encontrar com Cristo; mas o mundo era forte demais para ele. Como Demas, de um dia posterior, ele amava o presente mundo. Em segundo, podemos dar uma resposta como Pedro e os discípulos, dos quais aprendemos que deixaram tudo e seguiram a Cristo (Mc 10:28).
A única coisa que o jovem não possuía era devoção fiel a Cristo. Então ele “foi embora”. Os discípulos, com toda a sua ignorância, sua fraqueza e seus muitos fracassos, foram atraídos a Cristo em afeição e assim deixaram tudo para segui-Lo.
Quantas vezes, desde aquele dia, a história desse jovem se repetiu. Há algo mais triste do que olhar para trás e lembrar quantos jovens tiveram um bom começo, pareciam promissores, mas onde eles estão hoje? Apesar das qualidades, como seriedade, sinceridade e zelo, voltaram, se não ao mundo, ao corrupto mundo religioso; e a razão é clara, eles não tinham a “única coisa” – aquela devoção fiel a Cristo, devoção que coloca Cristo diante da alma como o primeiro e supremo Objetivo da vida. Pode ser que se coloquem antes de Cristo, ou a necessidade das almas antes de Cristo, ou o bem dos santos antes de Cristo, ou o serviço antes de Cristo, como resultado, no final, eles voltaram às coisas do mundo. Não há poder suficiente no amor das almas, no amor dos santos ou no desejo de servir, de manter nossos pés no caminho estreito. Somente Cristo, Ele mesmo, pode nos manter no lugar exterior de reprovação, seguindo após Ele.
2. ” uma só coisa é necessária” (Lc 10: 38-42)
Passando para a tocante cena em Betânia, encontramos duas mulheres dedicadas, das quais uma carecia da “única coisa” necessária, enquanto a outra escolheu “a boa parte”.
Marta, como o jovem rico de Marcos 10, foi caracterizada como muito honrosa. Aparentemente, a casa em Betânia era sua e ela prontamente abriu sua casa para receber o Senhor da glória. Então, não só ela era hospitaleira, como também era uma serva ocupada no serviço do Senhor. Há “muitas coisas” a serem feitas para o Senhor neste mundo e Marta estava ocupada com essas “muitas coisas”. No entanto, com todas essas qualidades, ela havia deixado de lado “uma coisa” e precisa aprender que a “única coisa” que ignorou é a “coisa necessária”. Como resultado, ela ficou sobrecarregada com o serviço, irritada com a irmã e reclamando com o Senhor. Quão verdadeiramente Marta representa aquela grande classe de cristãos que, inconscientemente para si mesmos, fazem do seu serviço seu grande objetivo, em vez do próprio Senhor. Sendo assim, eles envolveriam todos os outros como ajudantes em seu serviço especial, e ficariam irritados se fossem deixados “para servirem sozinhos”. Sem a “única coisa”, eles são cuidadosos e preocupados com “muitas coisas”.
Quão correto e feliz colocar nossas casas e meios à disposição do Senhor e ocupar-nos em Seu serviço abençoado; e, no entanto, essa cena nos adverte que é possível que essas atividades sejam as primeiras em nossos pensamentos e afetos, e não o próprio Senhor. Se for assim, nos falta a “uma coisa” necessária – a devoção fiel que coloca Cristo antes de todo serviço.
De Maria lemos que, ela escolheu a “parte boa” e que a “boa parte” era a parte com Cristo. Para ela, Cristo era o Objeto supremo antes de tudo, seja posse ou serviço, ou sua irmã. Tendo Cristo como seu único Objeto, ela escapou da inquietação, dos cuidados e problemas que marcaram sua zelosa irmã. Enquanto Marta estava “sobrecarregada com muito serviço”, Maria estava calmamente sentada aos pés de Jesus. Quando Marta chegou ao Senhor com sua palavra de queixa, Maria estava assentada “aos pés de Jesus ouvindo a Sua palavra”.
Não somos deixados para formar nosso julgamento espiritual quanto às diferenças entre essas duas irmãs, pois nos é dito claramente que o Senhor reprovou Marta e expressou aprovação a Maria.
Ao fazer do Senhor seu Objetivo, Maria escolheu a “boa parte” que não será tirada dela. Muito em breve deixaremos todas as posses terrenas; e nosso pequeno serviço e esforço serão passados, mas para sempre e sempre Cristo será a parte e objeto de nossas almas. Maria escolheu a porção eterna no hora certa; ela fez Dele um grande Objeto e escolheu acima de tudo para se sentar em Sua companhia. Outras coisas podem ser tiradas, mas isso não será tirado. Pois como ela escolheu estar com Ele no momento oportuno, ela também estará com Ele por toda a eternidade.
Então, essa melhor escolha, essa “uma só coisa necessária” – significa que Maria negligenciou o serviço ao Senhor? As Escrituras não apenas repreendem tal ideia como mostram claramente que ela não apenas serviu ao Senhor, mas seu serviço teve a aprovação do Senhor de uma maneira que é única acima de todos os outros serviços antes ou depois. Aqui o Senhor diz: “Maria escolheu essa parte boa”. Na bela cena de Mateus 26, o Senhor diz que ela “praticou uma boa ação para comigo”. Aquela que escolheu a “boa parte”, no devido tempo, faz o “bom trabalho”.
A aprovação do Senhor a essa boa obra é tão grande que Ele diz: “onde quer que este Evangelho for pregado, em todo o mundo, também será referido o que ela fez para memória sua” (Mt 26:10-13).
Lembremo-nos então de que a “boa parte” deve preceder o “bom trabalho”. Somente quando Cristo é nosso único Objeto, o serviço e tudo mais estará em seu devido lugar.
3. “uma coisa faço” (Fp 3:13)
Voltando agora ao terceiro capítulo da Epístola aos Filipenses, encontramos no Apóstolo alguém que, acima de todos os outros, respondeu às três provas que o Senhor pôs diante do jovem rico. Paulo desistiu das posses terrenas, pegou a cruz e seguiu a Cristo.
Primeiro, quais foram as posses que ele desistiu? Como o jovem rico, Paulo foi marcado por qualidades e vantagens mundanas. Ele era “bem-nascido”, era um homem livre célebre, altamente educado, zeloso em sua religião e, no tocante a lei, irrepreensível.
Todas essas circunstâncias e qualidades combinadas dariam a ele um bom lugar neste mundo. Mas chegou o dia em que ele, assim como o jovem rico, entrou em contato com Cristo. Então veio o teste. Ele desistiria de tudo o que era uma vantagem para ele como um homem neste mundo – todas aquelas coisas que “fizeram” algo de Paulo – para que ele pudesse fazer tudo de Cristo? Lembremo-nos de que nem o jovem rico nem o “jovem chamado Saulo” foram convidados a desistir das coisas da vergonha. Todos entendem que não podemos seguir a Cristo e continuar com as coisas da vergonha ocultas. Tais coisas que ficamos contentes o suficiente em deixar para trás. O teste foi, e continua sendo o mesmo. Pode as vantagens do mundo, zelo humano, caráter irrepreensível, nascer em berço de ouro, reputação religiosa serem deixados para trás como um objeto tal que daqui em diante, em vez de si mesmo, Cristo se torne o único Objeto da vida?
Em vez de afastar-se triste de Cristo e voltar para suas grandes posses, como o jovem rico, Paulo esqueceu “das coisas que atrás ficam” e seguiu adiante para Cristo. Ele viu a glória de Cristo e viu Cristo em glória. O jovem rico entrou em contato com Cristo, mas aparentemente, apesar de todos os maravilhosos milagres, ele só viu em Cristo um bom homem; ele não viu a glória de Cristo. Isso fez a grande diferença entre esses dois jovens. Paulo viu a glória de Cristo com o resultado imediato de que toda a glória deste mundo – todas aquelas coisas que foram ganhas como homem na carne – foram contadas como perda para Cristo. Ele não menosprezou essas qualidades naturais, pelo contrário, ele as considerou e, tendo feito isso, contou-as como perda em comparação com a glória de Cristo. Todas as qualidades naturais foram eclipsadas “pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus”, seu Senhor.
Em segundo lugar, não havia apenas o que ele desistiu, mas o que ele pegou. Verdadeiramente ele pegou a cruz. Seu único desejo, ao passar por este mundo, deveria ser “feito conforme a Sua morte”, a morte de Cristo. Se Cristo tinha morrido para o mundo, então Paulo morreria para o mundo. Para Paulo, a cruz não somente encerrou a ele mesmo como homem na carne, mas encerrou para ele para sempre o presente mundo mal.
Em terceiro lugar, tendo desistido de todas as suas vantagens naturais como objeto de sua vida; tendo tomado a cruz que encerrou o mundo, ele seguiu a Cristo como o único Objeto de sua vida. Ele deu as costas a toda religião terrena; ele foi para fora do arraial para Cristo, suportando Seu opróbrio. Tendo agora Cristo como seu único objetivo, ele pode dizer:
“Para mim o viver é Cristo” (Fp 1:21);
“Para que eu possa ganhar a Cristo” (Fp 3:8);
“Seja encontrado nele” (Fp 3:9);
“Para que eu possa conhecê-lo” (Fp 3:10).
Aqui, então, havia um homem que podia verdadeiramente dizer, a única coisa que faltava ao jovem rico, a “única coisa” necessária que Marta tinha para aprender, é “UMA COISA FAÇO”. Daí em diante, sua vida foi uma vida de devoção fiel a Cristo. Para ele, Cristo era o único Objeto supremo – não pecadores, santos ou serviço – mas Cristo. Ninguém nunca foi mais zeloso em pregar o Evangelho da graça de Deus aos pecadores, ninguém nunca se importou com todas as Igrejas como o Apóstolo, ninguém foi mais incansável no serviço; mas acima de tudo, e antes de tudo, Cristo era seu único Objeto. Não lhe faltou a “única coisa” como o jovem rico: ele não se distraiu com “muitas coisas” como Marta. Ele tinha uma coisa antes dele – seguir a Cristo. Assim ele esqueceu “das coisas que atrás ficam… avançando para as que estão diante” dele.
Além disso, ele nos permite saber quais são essas coisas. Ele nos mostra muito claramente que todas elas colocam Cristo no centro.
- Primeiro, Cristo em glória (Fp 2:9-10);
- Segundo, a soberana vocação de Deus em Cristo Jesus (Fp 3:14);
- Terceiro, a vinda do Salvador, o Senhor Jesus Cristo (Fp 3:20);
- Quarto, sendo “conforme o seu corpo glorioso” (Fp 3:21).
Quão bom então tornar Cristo nosso único Objeto. Se fizermos do serviço nosso objeto, acabaremos buscando nossa exaltação. Se fizermos dos pecadores nosso objeto, seremos, com muita probabilidade, atraídos de volta ao mundo. Se fizermos dos santos nosso objetivo, eles quebrarão nossos corações. Mas se Cristo é o nosso primeiro e supremo Objetivo, nós, assim como o Apóstolo, combateremos o bom combate, terminaremos a carreira e guardaremos a Fé, pois somente Cristo pode manter nossos pés no caminho estreito, nos guiar através de toda dificuldade e nos sustentar na presença de toda oposição. Que possamos então, em nossa pequena medida, poder dizer com o Apóstolo: “Uma coisa faço… prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus” (Fp 3:13-14).
Manhã, meio-dia e noite,
Através dos dias e brilhante,
Meu propósito ainda é único;
Eu tenho um fim repleto,
Apenas uma coisa faço,
Até a vinda do meu Objeto.
Hamilton Smith