Sobre o Pecado Nos Crentes
“Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura” (2 Cor 5.17).
Há, porventura, pecado naquele que está em Cristo? Permanece o pecado no que crê em Cristo? Subsiste qualquer pecado nos que foram nascidos de Deus, ou estão inteiramente libertados do pecado? Que ninguém julgue seja isto assunto de mera curiosidade, ou que seja de pequena importância responder-se de uma ou de outra forma. Ao contrário, esta questão é da maior importância para todo cristão honesto, e sua solução interessa mui de perto à felicidade presente e à felicidade eterna.
Não se sabe de controvérsia que sobre isto se houvesse levantado na Igreja primitiva. Na verdade, não havia lugar para disputa acerca desse assunto, visto constituir matéria dobre que todos estavam concordes. Na medida de minha constante observação, todas as comunidades de cristãos antigos, que algo nos deixaram escrito, declaram a uma voz que, mesmo os crentes em Cristo, mesmo os que são “fortes no Senhor e na força do seu poder”, tem necessidade de “lutar contra a carne e o sangue”, contra uma natureza depravada, assim como contra “principados e potestades”.
E nisto Igreja (como, na verdade, acontece em muitos pontos), segue exatamente a primitiva, declarando em seu Artigo Nono: “O pecado original é a corrupção da natureza de todo homem, pela qual esta é por sua própria natureza inclinado para o mal, de modo que a carne cobiça contra o Espírito. Esta infecção da natureza permanece mesmo naqueles que são regenerados, visto que a cobiça da carne, chamada em grego “phrônema sarkós”, não está sujeita à lei de Deus. E embora não haja condenação para os que creem, essa cobiça participa da natureza do pecado”.
O mesmo testemunho dão todas as outras Igrejas – não só a grega e a romana, mas todas as comunidades reformadas da Europa, de não importa que denominação. Algumas, na verdade, parece terem levado a questão demasiadamente longe, apresentando a corrupção do coração, mesmo no crente, de intensidade tal, que ele se mostra incapaz de a dominar, sendo, ao revés, escravo dela; e, nesse sentido, não estabelecem sensível diferença entre o crente e o incrédulo.
Para fugir a esse extremo, muitos homens bem intencionados, principalmente os que seguiram a orientação do finado “Conde Zinzendorf”, correram para o lado oposto, afirmando que “todos os verdadeiros crentes são não somente salvos do domínio do pecado, mas do pecado interno e externo, de modo que o pecado não mais permanece neles”. Dos seguidores de “Zinzendorf”, nestes vinte anos, muitos de nossos compatriotas herdaram a mesma opinião, afirmando que a corrupção da natureza não mais existe no que crê em Cristo.
É verdade que, quando os alemães eram arguidos sobre este capítulo, logo reconheciam (pelo menos muitos dentre eles), que “o pecado ainda permanece na carne, mas não no coração” do crente; e, algum tempo depois, quando se mostrou o absurdo de tal afirmativa, eles de pronto mudaram de tom, confessando que o pecado ainda permanece no que é nascido de Deus, embora não o domine.
Mas os ingleses, que receberam dos morávios essa doutrina (alguns diretamente, outros de segunda ou terceira mão), não se mostraram prontos em romper com ela; e, mesmo quando muitos deles foram convencidos de que semelhante posição teológica seria insustentável, não se deixaram persuadir, mas, ao contrário, mantêm-na até hoje.
Por amor dos que realmente temem a Deus e desejam conhecer a “verdade que há em Jesus”, não se pode levar a mal a consideração calma e imparcial do assunto. Fazendo isto, uso indiferentemente as palavras regenerado, justificado ou crente, uma vez que, embora não tenham rigorosamente o mesmo significado (a primeira implicando em mudança interna, atual; a segunda em mudança relativa; e a terceira no meio pelo qual ambas as mudanças operam), todavia elas vêm a ser uma e a mesma coisa, visto que aquele que crê é ao mesmo tempo justificado e nascido de Deus.
Por pecado, aqui emprego a palavra no sentido de pecado interior; toda tendência pecaminosa, paixão ou afeição, tais como orgulho, obstinação, amor ao mundo, de qualquer espécie ou grau; cobiça, ira, impertinência; qualquer disposição contrária à mente que havia em Cristo.
A questão não se refere ao pecado exterior – se o filho de Deus o comete ou não. Todos concordamos e ardorosamente sustentamos que “o que comete pecado é do diabo”. Concordamos em que “qualquer que é nascido de Deus não comete pecado”. Também não perguntamos se o pecado interior permanecerá sempre nos filhos de Deus; se o pecado continuará na alma enquanto permanecer no corpo; nem ainda inquirimos se uma pessoa justificada pode recair, seja no pecado interior, seja no pecado externo; mas simplesmente queremos fixar esta questão: o homem justificado ou regenerado fica livre de todo pecado logo que se dá a justificação? Não há, pois, nenhum pecado em seu coração – nem haverá depois, a não ser que ele decaia da graça?
Afirmamos que o estado do homem justificado é indizivelmente grande e glorioso. Ele é renascido, não “do sangue, nem da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus”. É filho de Deus, membro de Cristo e herdeiro do Reino dos céus. “A paz de Deus, que excede a toda compreensão, guarda seu coração e mente em Cristo Jesus”. Seu corpo é “templo do Espírito Santo” e “habitação de Deus, pelo Espírito”. Ele é “criado de novo em Cristo Jesus”: é lavado, santificado. Seu coração é purificado pela fé; é lavado “de toda a corrupção que há no mundo”; “o amor de Deus é derramado em seu coração pelo Espírito Santo que lhe é dado”. E enquanto “anda em amor” (o que deve sempre fazer), presta culto a Deus em espírito e verdade. Guarda os mandamentos de Deus e faz as coisas que são agradáveis à sua vista, esforçando-se por “ter uma consciência livre de ofensa para com Deus e para com os homens”: e ele tem poder tanto sobre o pecado interior como sobre o pecado externo, desde o momento em que é justificado.
“Mas não foi libertado de todo pecado, deixando este de existir em seu coração?”. Não posso dizer isto; não posso crê-lo, porque São Paulo diz o contrário. Falava ele aos cristãos e, descrevendo o estado dos crentes em geral, diz: “A carne cobiça contra o espírito e o espírito contra a carne: estes são contrários um ao outro” (Gl 5.17). Nada pode ser mais claro. O apóstolo aí diretamente afirma que a carne, a natureza má opõe-se ao espírito, mesmo no caso dos crentes; que mesmo regenerados, há dois princípios “contrários um ao outro”.
Ainda mais: quando escreve aos crentes de Corinto, aos que eram santificados em Cristo Jesus (1 Cor 1.2), diz: “E, irmãos, não vos pude falar como a espirituais, mas como a carnais, como a criancinhas em Cristo. Vós sois ainda carnais: porque, desde que há em vós inveja e contenda, não sois carnais?” (3.1-3). Agora, nesta passagem, o apóstolo fala aqueles que eram incontestavelmente crentes, aos quais ele, no mesmo instante, qualifica como seus irmãos em Cristo, sendo, todavia, em certa medida, carnais. Afirma que havia inveja (uma inclinação má), ocasionando lutas entre eles; e, apesar disto, não pronuncia sentença final, quanto a terem perdido a fé, nem manifestamente o apóstolo declara que eles não tivessem, porque então já não seriam “criancinhas em Cristo”. E, criancinhas em Cristo, como uma e a mesma coisa, plenamente mostrando que todo crente é (em certo grau), carnal, enquanto permanece na condição de – criancinha em Cristo.
Na verdade, este grande ponto – a existência nos crentes de dois princípios contrários, a natureza e a graça, a carne e o Espírito – mostra-se através de todas as epístolas de São Paulo e mesmo através de todas as Santas Escrituras. Quase todas as direções e instruções nelas contidas fundam-se nesse pressuposto, apontando tendências más ou práticas errôneas na vida daqueles que, não obstante isto, são reconhecidos como crentes pelos escritores inspirados. E são constantemente exortados a lutarem contra aqueles males, vencendo-os pelo poder da fé que neles há.
E quem pode duvidar de que houvesse fé no Anjo da Igreja de Éfeso, quando nosso Senhor lhe disse: “Conheço as tuas obras, e teu trabalho, e tua paciência, e que por amor de meu nome tens trabalhado e não tens desanimado”? (Ap 2.2-4). Mas não havia, apesar disto, pecado em seu coração? Certamente; senão Cristo não teria acrescentado: “Entretanto, tenho alguma coisa contra ti, porque deixaste teu primeiro amor”. Este era um pecado real que Deus viu em seu coração, pecado de que, consequentemente, é exortado a arrepender-se; e, depois de tudo isso, não temos autoridade para dizer que ele, o Anjo da Igreja, não tivesse fé.
Também o Anjo da Igreja de Pérgamo é exortado a arrepender-se, o que implica em pecado, embora nosso Senhor expressamente diga: “Tu não negaste a minha fé” (versículos 13 e 16). E ao Anjo da Igreja de Sárdis ele diz: “Sê vigilante, e confirma o resto que estava para morrer”. O bem restante estava para morrer, mas ainda não estava morto (3.2). Assim, nele havia ainda uma centelha de fé, o que torna compreensível o mandamento dado no sentido de resistir (versículo 3).
Ainda mais: quando o apóstolo exorta os crentes a “purificar-se, ipso facto, de toda impureza?”. De modo nenhum. Por exemplo: um homem me repreende asperamente: sinto ressentimento, que é uma nódoa do espírito; ainda que eu não pronuncie uma palavra denunciadora. Neste ponto, “eu me abstenho de toda aparência do mal”, mas isto não me purifica daquela mancha de espírito, como verifico, para minha confusão.
E como a proposição segundo a qual “Não há pecado no crente, nem mente carnal, sem pendor para a apostasia” é contrária a Palavra de Deus, do mesmo modo se opõe à experiência de seus filhos. Estes continuamente sentem um coração tendendo para a rebeldia, uma inclinação para o mal, um forte pendor para se apartar de Deus e apegar-se às coisas da terra. Sentem diariamente o pecado que permanece em seu coração: orgulho, obstinação, incredulidade, e do pecado que se apega a tudo quanto dizem e fazem, mesmo a suas melhores ações e a seus deveres mais santos. Todavia, ao mesmo tempo “conhecem que são de Deus”: nem podem, por um momento sequer, duvidar disso. Sentem que o Espírito claramente testifica com seu espírito, que eles são filhos de Deus”; regozijam-se em Deus mediante Cristo Jesus, por quem receberam afinal a propiciação”. Deste modo, estão igualmente certos de que o pecado está neles e de que “Cristo é neles esperança da glória”.
“Mas, pode Cristo estar no mesmo coração em que está o pecado?”.
Indubitavelmente, pode; de outro modo nunca poderia ser salvo dos pecados. Onde há doença, ainda há necessidade de médico.
“Prosseguindo nele sua obra, Lutando até que possa dominar o pecado”.
Cristo, não pode, em verdade, reinar onde reina o pecado, nem habitar onde algum pecado habita. Mas Ele está no coração de todo crente e nesse coração habita, havendo aí combate ao pecado, posto não exista ainda purificação condizente com a limpidez do santuário.
Já se observou que a doutrina oposta – que não há pecado nos crentes – é bastante nova na Igreja de Cristo: dela não se ouviu falar durante dezessete séculos, nem antes que fosse descoberta pelo “Conde Zinzendorf”. Não me lembro de ter encontrado o menor vestígio dessa doutrina, nem nos escritores antigos, nem nos modernos, a não ser, talvez, em algum extravagante declamador antinomiano. Ainda assim a questão, segundo os tais, se resolve numa alternativa entre sim e o não, já que reconhecem que há pecado na carne dos crentes, embora não haja em seu coração. Mas toda doutrina nova deve ser errônea, porque a velha religião é a única verdadeira; e nenhuma doutrina pode ser certa, se ela não for a mesma “que era desde o princípio”.
Mais um argumento contra essa doutrina nova e antiescriturística pode-se retirar das consequências letais que dela decorrem. Se dizendo alguém: “Hoje estive irado”, eu me apressar em responder: “Logo, não tens fé?”, o outro dirá: “Sei que tua conclusão é boa, mas meu querer é de todo oposto à ira”. Se eu insistir: “Então és um incrédulo, debaixo da ira e da maldição de Deus?”. Qual será a natural consequência disto? Esta: se ele acreditar no que digo, sua alma não somente ficará conturbada e triste, mas talvez definitivamente destruída, tanto mais se ele “abandonar” aquela “confiança que possuía grande peso de recompensa”; e, tendo abandonado seu escudo, como poderá “apagar os dardos inflamados do maligno”? Como poderá vencer o mundo, visto que “esta é a vitória que vence o mundo, a nossa fé”? Fica ele desarmado em meio de seus inimigos, exposto a todos os seus assaltos. Que maravilha haverá, pois, se for definitivamente subjugado, e o levarem cativo à vontade, se cair de maldade em maldade, nunca mais contemplando o bem? Não posso, pois, de modo nenhum, receber essa asserção, segundo a qual não há pecado no crente, desde o momento em que ele é justificado: primeiro, porque é contrária a todo o teor das Escrituras; segundo, porque é contrária à experiência dos filhos de Deus; terceiro, porque é absolutamente nova, dela não se tendo ouvido falar no mundo até ontem; e, finalmente, porque dela decorrem as consequências mais desastrosas, não só afligindo àqueles a quem Deus não afligiu, mas talvez sepultando-os mesmo na perdição eterna.
Concedemos, entretanto, leal atenção aos principais argumentos dos que pretendem sustentar semelhante doutrina. É, em primeiro lugar, pelas Escrituras que eles intentam provar a não existência de pecado no crente, assim raciocinando: “As Escrituras dizem que todo crente é nascido de Deus, é puro, é santo, é santificado, é limpo de coração, tem um novo coração, é templo do Espírito Santo. Agora, como o “que é nascido da carne é carne”, é inteiramente mau, assim “aquele que é nascido do Espírito é espírito”, é totalmente bom. Mais: o homem não pode ser ao mesmo tempo puro, santificado, santo e impuro, impenitente e ímpio. Não pode ser puro e impuro, e ter simultaneamente um coração novo e um coração velho. Nem pode sua alma ser ímpia, sendo templo do Espírito Santo”.
Apresentei esta objeção nos termos mais fortes, para que se possa evidenciar todo seu peso. Passemos agora a examiná-la parte por parte.
“O que é nascido do Espírito é espírito, é totalmente bom”. Reconheço o texto, mas não o comentário. Porque o texto afirma – que todo que é “nascido do Espírito” é um homem espiritual, e não vai além. É espiritual, mas pode ser ou não ser totalmente espiritual. Os cristãos de Corinto eram homens espirituais: se assim não fora, não seriam cristãos de modo nenhum; todavia, não eram totalmente espirituais; eram ainda, em parte, carnais. “Mas haviam decaído da graça”. São Paulo diz que não. Eles ainda eram criancinhas em Cristo.
“Mas o homem não pode ser puro, santificado, santo, e ao mesmo tampo impuro, impenitente e ímpio”. Em verdade, pode. Assim eram os coríntios: “Fostes lavados” – diz o apóstolo – “fostes santificados”, isto é, purificados de “adultério, idolatria, bebedice” e todos os outros pecados externos (1 Cor 6.9-11); e ainda, ao mesmo tempo e em outro sentido da palavra, eram profanos; não estavam lavados, nem interiormente purificados de inveja, suspeita de mal, parcialidade. “Mas, certamente, não tinham ao mesmo tempo um coração novo e um coração velho”. Seguramente eles os tinham, porque exatamente naquele tempo seus corações estavam sendo verdadeiramente, ainda que não inteiramente, renovados. Sua mente carnal fora pregada na cruz, mas não fora totalmente destruída. “Mas podiam eles ser ímpios, sendo templos do Espírito Santo?” – Sim. Que eles fossem templos do Espírito Santo, é certo (1 Cor 5.19); e é igualmente certo que eles eram, de algum modo, carnais, isto é, ímpios.
Entretanto, há mais uma passagem da Escritura que porá a questão fora de dúvida: “Se alguém é crente em Cristo, ele é uma nova criatura. As coisas velhas passaram; e eis que todas as coisas se fizeram novas” (2 Cor 5.17). Ora, certamente que o homem não pode ser ao mesmo tempo nova criatura e velha criatura. Pode, sim; pode ser parcialmente renovado, que é precisamente o caso dos de Corinto. Eles foram, indubitavelmente, “renovados no espírito de sua mente”, ou não poderiam chegar a ser “criancinhas em Cristo”; todavia, não possuíam toda a mente que houve em Cristo, uma vez que invejavam uns aos outros. Mas é declarado expressamente que “as velhas coisas passaram, e eis que tudo se fez novo”. Não temos necessidade de interpretar as palavras do apóstolo de modo a fazê-lo contraditório consigo mesmo. E, se o fizermos consistente consigo mesmo, com seu próprio ensino, a significação precisa de suas palavras será esta: seu velho conceito acerca da justificação, santidade, felicidade, e, numa palavra, no tocante às coisas de Deus em geral, passou; assim também passaram seus antigos desejos, desígnios, afeições, tendências e conversação. Todas essas coisas se tornaram realmente novas, grandemente mudadas em relação ao que eram antes; contudo, sendo novas, não são totalmente novas. Ainda ele sente, para sua tristeza e confusão, que algo permanece do velho homem, permanecem traços demasiadamente manifestos de seus primitivos pendores e afeições, embora estes não possam obter vantagem sobre sua alma, enquanto permanecer vigilante na oração.
Todos estes argumentos: “Se ele é puro, é puro; se é santo, é santo”, e vinte outras expressões de igual sentido que facilmente se podem catalogar, não valem realmente mais do que qualquer jogo de palavras. E a falácia de deduzir do particular o geral, de inferir uma conclusão geral de premissas de ordem particular. Proposta toda a sentença, ela decorrerá assim: “Se ele é santo, é totalmente santo”. Isto, porém, não se verifica: toda criancinha em Cristo é santa; todavia, não é totalmente santa. É salvo do pecado, mas não inteiramente; o pecado permanece, embora são reine. Se pensas que ele não permaneça, (pelo menos nas “criancinhas”, quer se trate de jovens ou de adultos), decreto que não consideraste a altura, a profundidade, a largura e a espessura da lei de Deus, (mesmo da lei de amor, posta em relevo por São Paulo no capítulo 13 da Epístola aos Coríntios), e que cada falta de conformidade com esta lei ou desvio dela – é pecado. Agora, no coração ou na vida do crente não há desacordo com essa lei? Que não o haja no cristão adulto, é outro caso; mas, quão ignorante da natureza humana há de se alguém, para que possa imaginar que isto se verifique em relação a cada criancinha em Cristo!
“Mas os crentes andam segundo o Espírito (Rm 8.1), e o Espírito de Deus habita neles; consequentemente, estão livres de culpa, do domínio do pecado, ou, numa palavra – do pecado”.
Estas coisas se apresentam reunidas, como se fossem de igual espécie; não são, contudo, a mesma coisa. A culpa é uma coisa, o poder outra e o pecado em essência, outra. Que os crentes estejam livres da culpa e do poder do pecado, concordamos; que estejam livres da essência do pecando, negamo-lo. Nem isso decorre de modo nenhum daqueles textos. O homem pode ter o Espírito de Deus habitado em si, pode “andar segundo o Espírito”, embora ainda sinta “a carne cobiçando contra o Espírito”.
“Mas “a Igreja é o corpo de Cristo” (Cl 1.24); isto implica em serem todos os seus membros lavados de toda a impureza; de outro modo seguir-se-ia que Cristo e Belial se associam”. Segundo o mesmo argumento, de fato de “ainda sentirem, os que são o corpo místico de Cristo, a carne cobiçando contra o Espírito”, concluir-se-ia que Cristo tem qualquer aliança com o diabo e com o pecado, para cuja extirpação até a vitória Ele, justamente, fortalece os crentes.
Mas os cristãos não se chegam “à Jerusalém celestial”, onde “nada de impuro pode penetrar”? (Hb 12.22). Sim, e em companhia de anjos inumeráveis e de espíritos de justos que se tornaram perfeitos, isto é,
“A terra e o céu concordes,
Tudo formando uma grande família”.
E eles são do mesmo modo santos e sem mancha, enquanto “andam segundo o Espírito”, embora sentindo que, ao lado do bem, outro princípio há neles, sendo os dois “contrários um ao outro”.
“Mas os cristãos são reconciliados com Deus. Ora, isto não se pode verificar, se a mente carnal permanecer; porque esta é inimizade contra Deus: consequentemente, nenhuma reconciliação pode efetuar-se, a não ser pela destruição integral da mente carnal”. Somos reconciliados com Deus pelo sangue da cruz: nesse momento o “fronhma sarkov”, a corrupção da natureza, que é inimizade para com Deus, é posta debaixo dos pés; a carne não mais tem domínio dobre nós. Ela, entretanto, ainda existe e ainda é, por sua natureza, inimizade para com Deus, por isso que cobiça contra o Espírito.
“Mas os que são de Cristo crucificaram a carne, com suas afeições e cobiças” (Gl 5.24). Assim fizeram, mas a carne permanece neles e sempre luta por se desprender dos braços da cruz. Não, “eles sepultaram o homem velho com seus feitos” (Cl 3.9). Assim, é; é, neste sentido, “as coisas velhas passarem; eis que todas as coisas se fizeram novas”. Para esse mesmo efeito uma centena de textos poderíamos citar; e todos admitem a mesma resposta. Mas, para dizer tudo numa palavra, “Cristo deu-se a si mesmo para a Igreja, para que fosse santa e sem defeito” (Ef 5.25 e 27). Assim será ela no fim: mas nunca chegou a sê-lo, desde seu começo até este dia.
“Deixem, porém, que fale a experiência: todos os que são justificados alcançam ao mesmo tempo absoluto livramento de todo o pecado”. Duvido que seja assim; mas, se for, conservarão tal libertação de modo inquebrável? De outra forma nenhum proveito há. “Se não a conservam, é por sua própria culpa”. Esta conclusão fica de lado, à espera de provas.
“Pela própria natureza das coisas, pode, entretanto, o homem ter orgulho em si mesmo e não ser orgulhoso; ter ira e não se irar”?
O homem pode ter orgulho, pode pensar de si mesmo, em certo sentido, muito mais altamente do que deveria pensar (e vangloriar-se, deste modo, acerca das vantagens que sua ilusão lhe empresta), e ainda não ser orgulhoso em seu caráter geral. Pode abrigar em si a ira, e mesmo uma forte propensão para a cólera desabalada, sem dar, contudo, lugar a ela. “Mas podem a ira e o orgulho estar no coração em que somente a mansidão e a humildade deveriam manifestar-se?” – Não; mas algum orgulho e alguma ira podem estar no coração em que haja muita humildade e mansidão.
“De nada vale dizer: “essas inclinações ali se encontram, mas não dominam”, porque o pecado, de qualquer espécie ou grau, não pode existir onde não lhe seja dado reinar, visto que a culpa e o poder são propriedades essenciais do pecado. Logo, onde um deles estiver, todos devem estar”.
Maravilhoso, com efeito! “O pecado, de qualquer espécie ou grau, não pode existir onde ele não reine?” Isto é absolutamente contrário a toda experiência, a toda a Escritura e a todo o senso comum. O ressentimento deixado por uma afronta recebida é pecado; é anomia – falta de conformidade com a lei do amor. Esse ressentimento tem existido em mim um milhar de vezes. Todavia, ele nem reinou, nem reina. “A culpa e o poder são, porém, propriedades essenciais do pecado; logo, onde um deles estiver, devem estar todos”. Não: no exemplo que coloquei diante de nós, se o ressentimento que sinto não for avante, nem por um momento, de modo algum haverá culpa, nem condenação da parte de Deus, por esse motivo. Neste caso, esse pecado não tem poder. “Embora ele cobice contra o Espírito”, não pode prevalecer. Neste, como em dez mil exemplos, há pecado, sem haver culpa ou poder.
“Mas a suposição de pecado no crente é facunda em muitas coisas aterrorizantes e desanimadoras. Implica em disputa com um poder que domina nossas forças, sustenta a posse de nosso coração e aí prossegue no combatem desafiando o Redentor”. Não é assim: a suposição de que o pecado está em nós não implica em que ele domine nossas forças, como o homem crucificado não domina os que o crucificam. Ainda menos implica em que “o pecado mantenha usurpação de nossos corações”. O usurpador está destronado. Se permanece, com efeito, onde uma vez dominou, permanece em cadeias. Deste modo, até certo ponto, ele “prossegue na guerra”, embora cada vez se torne mais fraco, enquanto que vai o crente crescendo em forças, vencendo sempre para continuar a vencer.
“Ainda não estou satisfeito: aquele que tem o pecado em si, é escravo do pecado. Assim, tu supões ser o homem justificado, enquanto é escravo do pecado. Agora, se concordas em que os homens possam ser justificados enquanto tem em si orgulho, ira ou incredulidade, ou se concordas que essas coisas existam (ao menos por algum tempo), em todos os que são justificados, que admiração pode causar o fato de termos tantos crentes orgulhosos, irascíveis e incrédulos?”.
Não suponho que homem algum, uma vez justificado, continue sendo escravo do pecado; entretanto, acredito que o pecado permaneça (ao menos por algum tempo), em todos os que são justificados.
“Se o pecado permanece no crente, este é um pecador: se permanece o orgulho, por exemplo, então ele é orgulhoso; se voluntariamente, então ele é voluntarioso, obstinado; se descrença, então ele é incrédulo; consequentemente, não pode ser crente de modo nenhum. Em que, pois, difere ele dos incrédulos, dos não regenerados?” Ainda que temos simples jogo de palavras. Isto significa nada menos do que raciocinar: se nele há pecado, orgulho, obstinação, há, em consequência, pecado, orgulho, obstinação. E isto ninguém pode negar. Naquele sentido ele é orgulhoso ou obstinado, mas não o é no mesmo sentido que o são os incrédulos, isto é, governados pelo orgulho ou pela obstinação. Nisto ele difere dos não regenerados: estes obedecem ao pecado; aquele, não. A carne está em ambos: os incrédulos “andam segundo a carne”, o crente “anda segundo o Espírito”.
“Como pode, entretanto, estar no crente a incredulidade?”. Esta palavra possui dois sentidos: que dizer falta de fé ou, ainda, fé diminuta, ou seja ausência de fé ou fraqueza de fé. Na primeira acepção, a incredulidade não cabe no crente; na Segunda, encontra-se em todas as “criancinhas”. Sua fé se mistura comumente à dúvida a ao temor, isto é, no último sentido, à incredulidade. “Por que temeis – diz nosso Senhor – homens de pequena fé?” Mais: “Homens de pequena fé, por que duvidais?”. Note-se que havia ali incredulidade em crentes: fé diminuta e incredulidade vultosa.
“Mas esta doutrina, segundo a qual o pecado permanece no crente, podendo alguém estar na graça de Deus, tendo ao mesmo tempo o pecado em seu coração, certamente que se inclina para o incitamento dos homens ao pecado”. Compreendida retamente a suposição, tais consequências dela jamais poderão advir. O homem pode estar na graça, embora sinta o pecado; poderá aquela condição somente se se submeter ao pecado. Ter o pecado em si não afasta o favor de Deus; afasta-o, porém, o dar lugar ao pecado. Embora em ti “cobice a carne contra o Espírito”, podes ainda ser filho de Deus; se, porém, andares “segundo a carne”, serás filho do diabo. Daí resulta que a doutrina em debate não incita à obediência ao pecado, mas leva o homem a resistir-lhe com todas as suas forças.
A conclusão de tudo quanto se disse é a seguinte: Há em toda pessoa, mesmo depois de ter sido justificada, dois princípios contrários – a natureza e a graça, que São Paulo designa pelos nomes de carne e espírito. Daí resulta que, embora as criancinhas em Cristo sejam santificadas, elas o são somente em parte. Em certa medida, segundo a intensidade de sua fé, são espirituais; em outra medida, são carnais. Concordemente, os crentes são exortados à contínua vigilância contra a carne, assim como contra o mundo e o diabo. E com isto concorda a experiência constante dos filhos de Deus. Conquanto sintam em si mesmos esse testemunho, também sentem uma vontade não totalmente resignada à vontade de Deus. Sabem que estão em Deus; e ainda sentem possuir um coração pronto a separar-se dele; sentem, em muitos casos, um pendor forte para o mal e certa repugnância para todo o bem. A doutrina oposta é inteiramente nova: dela não se ouviu falar na Igreja de Cristo, desde o tempo de sua vinda ao mundo até os tempos do “Conde Zinzendorf” – e de tal doutrina decorrem as mais ruinosas consequências. Ela suprime toda vigilância sobre essa natureza pecaminosa, sobre a Dalila que nos disseram ter-se ido, embora ela ainda repouse contra nosso peito. Tal doutrina arrebata o escudo aos crentes fracos, priva-os de sua fé e destarte deixa-os expostos a todos os assaltos do mundo, do diabo e da carne.
Retenhamos, pois, a sã doutrina “uma vez entregue aos santos” e por estes ensinada, mediante a palavra escrita, a todas as gerações que as sucedem, doutrina segundo a qual, apesar de sermos renovados, lavados, purificados, santificados, no momento em que verdadeiramente cremos em Cristo, ainda não somos renovados, lavados, purificados inteiramente; mas a carne, a natureza má, ainda permanece (embora subjugada), e luta contra o Espírito. Tanto quanto possível, usemos de toda diligência no “combater o bom combate da fé”. Cada vez mais ativamente, “vigiemos e oremos” contra o inimigo interior. Tomemos com o maior cuidado “toda a armadura de Deus”, de modo que, embora “lutemos” ao mesmo tempo, “contra a carne e o sangue, e contra principados, poderes e espíritos depravados nos lugares elevados”, passamos “estar firmes no dia mau”, e, tendo feito tudo, permaneçamos firmes na fé.
John Wesley (Epworth, Inglaterra, 17 de junho de 1703 – Londres, 2 de março de 1791) – Foi um clérigo anglicano e teólogo cristão britânico, líder precursor do movimento metodista e, ao lado de William Booth, um dos dois maiores avivacionistas da Grã-Bretanha.