Religião de Família

Gênesis 11

Esta é uma história que, creio eu, irá proporcionar muita oportunidade de se perscrutar o coração. Peço por graça para poder expô-la de modo sábio e proveitoso.

Sem, um dos filhos de Noé, foi o ramo sagrado. A religião estava mais associada a ele do que a seus irmãos, e dele veio o povo separado. Todavia, após poucas gerações essa família religiosa tornou-se corrompida; pois em menos de trezentos anos, e não sabemos quanto tempo antes, nós os encontramos servindo a outros deuses (Js 24:2). Trata-se de uma história comum, mesmo para nossos dias. Famílias, bem como igrejas, são vistas em uma condição tristemente degenerada e corrompida, apesar de um dia terem sido conhecidas por seu zelo e serviço.

Todavia, o Espírito de Deus, em graça soberana, visita um filho de Terá, oito gerações depois de Sem. O chamado do Deus da glória foi feito a Abrão e o separou daquelas corrupções, e do país, parentela, e da casa de seus pais a fim de moldá-lo como uma nova obra para o Senhor (At 7:2).

Abrão, ao que parece, tornou seu chamado conhecido de sua família, e como é comum acontecer ainda hoje entre nós, essa comunicação teve uma certa influência entre eles. Daí brota a religião de família. O poder do Evangelho é conhecido primeiro por um membro da família, e a partir dele se espalha. E o Senhor queria que fosse assim. Trata-se de um péssimo sintoma, como veremos aqui, quando isso não acontece.

Assim foi aqui. Terá, o pai, se apronta. Naor, um de seus filhos, pelo que podemos presumir da narrativa toda, não foi muito atingido por sua influência, pois ele, sua esposa e filhos, todos permanecem onde estavam. Mas Abrão, sua esposa e Ló, filho do falecido Harã, filho de Terá, saem para a jornada divinamente indicada. E Terá, o pai, aparentemente é quem toma a liderança.

Mas antes que eu vá mais longe com esta narrativa, devo perguntar se tudo aquilo estava certo da parte de Abrão. O chamado havia sido para ele. Sobre ele tinha vindo a energia do Espírito. Certamente que a família pôde ter sido trazida para dentro do raio de alcance daquela energia ou influência: mas mesmo assim, porventura não caberia a Abrão ocupar o lugar que aquela energia lhe havia claramente designado? Acaso não estaria sendo um pouco de concessão à carne e ao sangue, da parte de Abrão, que a Terá fosse concedido tomar a liderança nesse grande movimento sob o Espírito de Deus? Pode ser. E prefiro julgar que assim tenha sido, e que isso tenha a ver com a permanência em Harã e a morte de Terá naquele lugar, e com a investidura de uma segunda energia vinda do Senhor ao chamar Abrão quando estava em Harã (Gn 11:31-12:1).

Tudo isso nos serve de admoestação. A religião de família é algo belo, mas a ordem familiar ou as reivindicações humanas não podem arrogar os direitos que pertencem ao Espírito. É maravilhoso vermos Cornélio, ou qualquer outro em circunstâncias semelhantes, trazendo seus amigos e parentes para dentro daquela influência que estava visitando a sua casa. Mas se a carne e o sangue, ou se as relações humanas, atrapalharem o progresso soberano do Espírito, podemos esperar que haverá uma parada em Harã ou na metade do caminho outra vez, e será necessário um segundo chamado (segundo em certo sentido) para colocar a alma novamente no caminho de Deus.

Podemos observar e discernir estas coisas para nosso proveito e admoestação. Todavia, sob aquela renovada energia do Espírito, Abrão recomeça sua jornada, e Sara, sua esposa, e Ló, seu sobrinho órfão, o acompanham. Esta é ainda uma cena da religião de família. Em Ló vemos alguém que estava na borda daquela influência geral ou de família. Nada lemos de algum chamado distinto dirigido a ele, ou de qualquer sacrifício que tenha oferecido. Não que ele represente um mero professo, ou alguém que se liga ao povo de Deus por interesse. Não, ele era um homem justo, e tinha uma alma vivificada que podia ser afligida pela impiedade do ímpio (2 Pe 2:7-8).

Mas sua entrada na família de fé não expressa nenhuma energia. Foi produzida de um modo familiar, como tenho observado – como mil outros casos que vemos acontecer em nossos dias. E é bom que coisas assim aconteçam. Que alegria é quando a esposa Sara, ou o pai Terá, ou o sobrinho Ló de nossos dias acompanham os Abrãos de hoje. Isto não aconteceria, nós bem sabemos, sem o envio e o ensino do Pai (Jo 6:44-45). E Ló era, com certeza, um eleito, tanto quanto Abrão, mas a energia do chamado de Deus não se manifesta nele como em Abrão – diferenças que não podemos deixar de continuamente observar. Com Abrão tratava-se de algo caracteristicamente pessoal; com Ló tratava-se de algo de caráter familiar. E em conformidade com tudo isso, bem na primeira cena em que Ló é chamado a agir de modo independente já vemos sua fraqueza.

Abrão lhe dá a escolha da terra. E ele escolhe. Ora, não é apenas por ter escolhido o melhor que nossos corações o condenam, mas simplesmente por ter escolhido. Em todos os aspectos era Abrão quem tinha o direito à primeira escolha, como costumamos dizer. Ele era o mais velho, tanto em idade como no grau de parentesco. Ele era o principal em toda aquela ação que os havia levado àquela terra distante, e Ló nada mais era do que um que foi junto. Abrão foi nobre e generoso em ceder seu direito a um parente mais jovem. Mas Ló era insensível a tudo isso, e acaba fazendo a escolha, e então (como não poderia deixar de acontecer com um começo assim), ele escolhe com base em um princípio inteiramente mundano. Ele toma as campinas bem regadas para seu gado e seus rebanhos, embora aquilo o levasse para perto daquela corrupta cidade (Gn 12).

Assim, a primeira prova de Ló se torna um doloroso testemunho contra ele. Demonstra a fraqueza com que a fé ou o reino de Deus haviam se introduzido em sua alma. A maneira de agir de Abrão era bem diferente, pois a voz do Deus da glória tinha sido poderosamente ouvida por ele, arrancando-o do mundo ao qual Ló ainda estava apegado. Tudo isso tem uma mensagem para nossos ouvidos.Logo fica patente o mundo desalentador que Ló estava escolhendo. As campinas bem regadas cedo se transformam em campo de batalha; e, senão fosse por Abrão, ou pelo Deus de Abrão, Ló teria perdido ali a sua liberdade, bem como todos os seus bens.

Mas é ainda mais triste ter que dizer que aquele primeiro desapontamento não libertou seu coração de suas ímpias amarras. Ele volta a Sodoma pela segunda vez até ser forçado a se mudar, pela mão do próprio Deus. Se quando a campina bem regada se transformou em um campo de matança Ló se recusou a aprender a lição e não saiu de lá, acaba tendo que aprender quando ela se transforma em um monturo fumegante no dia do Senhor.

Que melancólica catástrofe! Um vergonhoso fim para um crente mundano! O quanto isso nos fala! Acontecia ali uma salvação como que por fogo, uma fuga da casa em chamas, uma inglória partida deste mundo! Podemos receber essa admoestação em nossos corações, e vigiar contra a primeira olhada às campinas bem regadas de Sodoma (Gn 14-15).

Disso tudo certamente aprendemos grandes lições, tanto de conforto como de advertência. Nos mostram que a religião de família é algo maravilhoso, e que a verdadeira piedade pode começar dessa maneira, como foi com a casa de Abrão. Mas nos admoestam que cada um envolvido deve tomar muito cuidado em cultivar o poder da piedade de um modo bem pessoal, ou nossa religião irá revelar a fraqueza de uma mera influência geral ou familiar, e não demorará muito até se desvanecer completamente.Como observei, sob Abrão a religião de família se disseminou, mas o mesmo não aconteceu sob Ló; pois sua esposa continuou levando o pensamento de Sodoma, e se transformou em um farol que até hoje alerta os viajantes desse perigo.

Suas duas filhas se corrompem tornando-se mães de duas descendências corrompidas que são rejeitadas sob expressa proibição de acesso a qualquer parte da casa de Deus (Dt 23:2). E seus genros, quando Ló lhes falou do juízo, desrespeitosamente o trataram como um louco ou zombador.

Aqui certamente encontramos um assunto sério para nossas almas se ocuparem! Se nossa religião ou profissão de Cristo brotou sob a influência de uma atmosfera familiar, avisamos aqui que se deve vigiar e cultivar um poder de piedade profundo e pessoal, em um santo temor e suspeita da fraqueza da raiz de uma tal planta.

E mais, se nossa profissão de Cristo não espalhou, em maior ou menor medida, como aconteceu com Abrão, uma influência na família, temos um grande motivo para nos humilhar e temer que isso é porque nós, pessoalmente, não exibimos a fé em todo o seu poder vitorioso e separador.

Deste modo muitas lições de grande e sagrada importância. no assunto da religião de família, nos são transmitidas por esta breve história. Nos ensinam, como já mencionei, que devemos ser o meio de disseminação; mas, se tivermos sido nós que fomos sujeitos a essa influência, devemos vigiar de um modo especial, como aqueles que têm um bom motivo para desconfiar de sua própria fraqueza. Pois igualmente é falado pelo mesmo Espírito, perfeito e que não erra, “Prove cada um a sua própria obra, e terá glória só em si mesmo, e não noutro” (Gl 6:4). E mais uma vez, “E vós, pais, não provoqueis à ira a vossos filhos, mas criai-os na doutrina e admoestação do Senhor” (Ef 6:4). A religião de família é, deste modo, honrada pelo Senhor, mas a consistência e o poder pessoal dela são também levados em conta. Os pais devem levar os filhos a conhecer a verdade (Is 38:19), mas cada pessoa deve nascer de novo ou não verá o reino de Deus.

É maravilhoso vermos a “fé não fingida” (1 Tm 1:5; 2 Tm 1:5) habitando em uma geração após outra em uma mesma família, como foi com a avó Lóide, a mãe Eunice, e o filho Timóteo. Mas é maravilhoso vermos também na terceira geração desta família as lágrimas e afeições que revelam a plena convicção de que a religião deles não era meramente uma questão de educação ou imitação, ou a simples influência familiar, mas a investidura do precioso poder de um reino que o próprio Deus estabeleceu na alma.

“Os quais temos ouvido e sabido, e nossos pais no-los têm contado. Não os encobriremos aos seus filhos, mostrando à geração futura os louvores do Senhor, assim como a Sua força e as maravilhas que fez” (Sl 78:3-4). 

John Gifford Bellett ( 19 de julho de 1795 – 10 de outubro 1864) – Escritor irlandês, cristão e teólogo muito influente no início do movimento Irmãos de Plymouth | Extraído de “Family Character and Family Religion”, Bible Truth Publishers.