Ao viajar outro dia com um amigo a bordo de um dos pequenos barcos a vapor que percorrem os cais do rio Tâmisa, foi nosso privilégio anunciar publicamente o Evangelho aos muitos passageiros que lotavam o convés do navio. As circunstâncias ali não permitiram muito mais que a leitura da preciosa palavra de Deus para que escutassem.
Nosso tempo era, evidentemente, muito limitado e as pessoas estavam em constante movimento. Percebi que alguns escutaram, alguns se afastaram para não ouvir o som, alguns zombaram, alguns criticaram. O efeito foi diferente em diferentes casos; mas no final, e logo antes do nosso desembarque em nosso local de desembarque, um homem, que havia escutado apenas para criticar, fez a pergunta: “Quem é Deus?”.
Ao olhar para ele, observei que ele estava bem vestido e, pela maneira de sua conversa, ele estava longe de ser ignorante; e, no entanto, essa era a sua pergunta – uma pergunta feita sóbria e solenemente, no centro da cidade mais civilizada do país mais civilizado do mundo! Bem, isso pode assustar! Não foi motivado, no entanto, pela ignorância, mas pela infidelidade – essa fria, desalmada, ousada companheira do ostentado iluminismo do século XIX, aquela geradora de dúvidas, que procura questionar a verdade, mas que nada pode resolver e nunca satisfaz.
A infidelidade era a mãe daquela pergunta blasfema. Ao ouvi-la, meu amigo deu esta bela resposta: “Deus é amor”. “Não”, disse o infiel: “Deus é ódio, pois Deus amaldiçoa”. Meu amigo repetiu, “Deus é amor e Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3:16). Não ouvimos mais nada vindo daquele homem, mas tivemos de deixá-lo nas mãos daquele Deus que ama pessoas como ele, e que deseja que o tal seja salvo.
Pode-se perceber que meu amigo mais replicou do que respondeu. Ele mostrou mais o que do que quem Deus é.
Mas ao perguntar “Quem é Deus?” duas coisas foram admitidas; primeiro, que o próprio homem era ignorante de Deus e, segundo, que ele admitia em suas próprias palavras o estupendo fato de que “Deus é”. Ele não perguntou “Quem era Deus?”, no passado, como se perguntasse sobre alguma personalidade terrena que tivesse saído de cena, da qual ninguém mais tivesse ouvido falar. Mas ele perguntou “Quem é Deus?”, no presente.
É verdade que Deus não pode ser visto nem ouvido, mesmo assim “Deus é”. ´É fato que o pecado pode ser abundante e desenfreado, mesmo assim “Deus é”. É verdade que podemos não observar alguma interferência milagrosa, mas mesmo assim “Deus é”. É verdade que os fundamentos do mundo podem estar abalados, mas ainda assim “Deus é”. Os homens maus e enganadores podem ir de mal a pior, mas mesmo assim “Deus é”. “Eu sou o que sou… EU SOU… este é meu nome eternamente, e este é meu memorial de geração em geração” (Ex 3:14-15). A fé crê nisso e age com base nisso. A infidelidade acha por bem negar e, apesar da Criação e da revelação, ousadamente questionar: “Quem é Deus?”.
Vale lembrar que, quando o apóstolo Paulo estava na cidade de Atenas, ele viu um altar com esta inscrição: “Ao Deus desconhecido”. Pode-se compreender que a filosofia ateniense perguntasse “Quem é Deus?”. Mas poderia a Londres cristã ser colocada em pé de igualdade com a Atenas pagã, e uma declaração semelhante desse “Deus desconhecido” ser feita em nossos dias? Para os homens de Atenas, Paulo falou de duas coisas; primeiro, da responsabilidade do homem para com Deus, “porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17:28), e segundo, da indicação de um dia de juízo: “Porquanto tem determinado um dia em que com justiça há de julgar o mundo, por meio do homem que destinou; e disso deu certeza a todos, ressuscitando-o dentre os mortos” (At 17:31).
Agora todos os homens são responsáveis perante Deus e eles sabem disso. E a responsabilidade termina em juízo – um julgamento que abrangerá todos, exceto para “nós que já corremos para o refúgio” (Hb 6:18) – pois “aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo” (Hb 9:27).
Este é o claro e certeiro decreto de um Deus que não é desconhecido – é Sua determinação. Assim diz aquele precioso livro do qual Deus é o Autor. E agora eu faria ao meu leitor esta pergunta: Ao admitir e reconhecer que “Deus é”, será que você O conhece? Você conhece a Deus? Esta não é uma expressão vã, não se trata de uma pergunta sem sentido. Conhecer a Deus é a bendita porção de todos os Seus filhos. Não se trata de saber algo sobre Deus na Criação, ou ao longo da história sagrada – trata-se de conhecer a Ele próprio.
Considerando que muitos de seus filhos estão pouco familiarizados com o “mistério da piedade” (1 Tm 3:16) e, ainda que conheçam a Deus, podem encontrar dificuldade em responder às objeções levantadas pela infidelidade, eles “conhecem a verdade” (1 Tm 4:3). Esse conhecimento tem o efeito de produzir uma paz de espírito, do coração e da mente, mesmo sob as circunstâncias mais esmagadoras, sim, mesmo diante da própria morte. Isso faz com que esses sejam alvo da inveja de seus vizinhos, reconhecidamente mais sábios, porém infiéis. Quem não conhece a Deus não é Seu filho.
O conhecimento do bem e do mal foi adquirido pela desobediência dos nossos primeiros pais, e com esse conhecimento veio o pecado e a morte. Mas agora, no cristianismo, o conhecimento de Deus Pai é uma realidade na alma do crente pelo poder do Espírito Santo. e esta é a vida eterna. “E a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17:3). Por isso o apóstolo Paulo diz: “Eu sei em quem tenho crido” (2 Tm 1:12).
Por isso também foi escrito aos crentes da Galácia “agora que conheceis a Deus” (Gl 4:9). Fica claro, portanto, que Deus não só é revelado através da Palavra na Pessoa do Filho, mas é realmente conhecido nas almas de seus filhos. Eles já foram pecadores, como os outros, mas, despertados pelo Espírito de Deus para um sentimento de sua condição perdida, foram a Ele, pela fé, o mesmo que convida a todos. O crerem nele foram feitos filhos de Deus, e “porque vós sois filhos, enviou Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai!” (Gl 4:6), é o que diz o registro divino.
Assim, para eles, Deus é conhecido, e a doçura dos ternos cuidados do Pai, do amor perfeito e eterno de um Salvador, e a alegria e o conforto do Espírito, proporcionam um prazer que é bem conhecido, fazendo com que a jornada através do vale terrestre de lágrimas, seja de paz e comunhão, até terminar na alegria da casa do Pai nas alturas.
E quando as névoas forem removidas,
E em Tua luz formos envolvidos;
Encontraremos Quem amamos mesmo ausente,
Veremos Quem adoramos quando silente.
J. Wilson Smith – Viveu entre 1843 e 1922 na Grã-Bretanha. Uma coleção de seus artigos foi publicada no livro “Thou Remainest” em 1919.