Os Sinais do Novo Nascimento
“Assim é todo aquele que é nascido do Espírito” (João 3.8).
COMO se apresenta o que é “nascido do Espírito“, isto é, nascido de novo – nascido de Deus? Que significa ser nascido de novo, ser nascido de Deus ou ser nascido do Espírito? Que vem a ser filho de Deus, ou ter o Espírito de adoção? Que esses privilégios, pela livre misericórdia de Deus, acompanhem ordinariamente o batismo (que nosso Senhor, no versículo precedente, chama “nascer da água e do Espírito“), já sabemos; queríamos saber, entretanto, em que consistem esses privilégios. Que é o novo nascimento?
Talvez não seja necessário dar uma definição disto, uma vez que as Escrituras não apresentam nenhuma. Como, entretanto, a questão interessa profundamente a todo filho do homem; visto que, “a não ser que alguém seja nascido de Deus” – desejo salientar, do modo mais claro, os sinais do novo nascimento, exatamente como os encontro na Escritura.
O primeiro desses sinais, que também serve de fundamento a todos os outros, é a Fé. Diz S. Paulo: “Somos filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus” (Gl 3.26). S. João: “A eles dou-lhes o poder” – (εξουσίαν, direito ou privilégio, como se poderia melhor traduzir), “de se tornarem filhos de Deus, a saber aos quando creem, “não do sangue, nem da vontade da carne”, não por geração natural, “nem da vontade do homem”, como as crianças adotadas pela vontade do homem, sobre as quais o ato de adoção nenhuma alteração interior produz, “mas de Deus” (Jo 1.12-13). E ainda em sua epístola católica: “O que crê que Jesus é o Cristo, é nascido de Deus” (1 Jo 5.1).
Mas o apóstolo não fala aí de uma fé meramente ideal ou especulativa; não fala de simples assentimento à proposição: “Jesus é o Cristo”, nem, na verdade, a quaisquer proposições contidas em nosso Credo, no Velho ou no Novo Testamento. Não ser trata de puro assentimento a qualquer ou a todas as coisas críveis, como críveis. Afirmar isto seria dizer (e quem pode ouvir isto?) que os demônios são nascidos de Deus, porque eles têm essa fé. Tremendo, creem não só que Jesus é o Cristo, mas também creem que toda Escritura, dada por inspiração de Deus, é tão verdadeira como Deus é verdadeiro. Não se trata somente de assentimento à verdade divina, pelo testemunho de Deus ou pela evidência dos milagres; porque os demônios também ouvem as palavras que saem da boca de Deus e sabem que Ele é testemunha fiel e verdadeira. Eles não podiam deixar de receber o testemunho dado por Jesus, tanto acerca de si mesmo como acerca do Pai, que enviou. Viram, igualmente, as obras maravilhosas por Ele feitas, e por isso creram que Cristo “veio de Deus”. E, não obstante essa fé, “estão reservados em cadeias de trevas para o juízo do grande dia”.
Tudo isso é, na realidade, nada mais do que uma fé morta. A verdadeira e viva fé cristã, que determina seja nascido de Deus quem quer que a possua, é não somente assentimento, que é ato da mente, mas uma disposição operada por Deus em seu coração, “uma segura confiança em que Deus, pelos méritos de Cristo, perdoa seus pecados e restaura-o no seu favor”. Isto implica em o homem primeiro negar-se a si mesmo; implica em rejeitar completamente toda “confiança na carne” para ser “achado em Cristo”, ou para ser aceito por meio dele; implica em reconhecer que, “não tendo com que pagar”, não confiando nas próprias obras nem possuindo justiça de qualquer espécie – vem a Deus na condição de pecador perdido, miserável, destruído por si mesmo, por si mesmo condenado, arruinado e desamparado; vem a Deus como quem definitivamente se cala, sentindo-se “culpado diante do Senhor”. Tal sentimento de pecado (comumente chamado “desespero” pelos que dizem mal das coisas que não conhecem), unido à plena convicção, que nenhuma palavra pode expressar, de que somente de Cristo vem-nos a salvação, fazendo-se tal convicção acompanhar de profundo desejo de salvação, tudo isso deve preceder à fé viva, à confiança em Cristo, o qual “pagou por nós, pela sua morte, nosso resgate, e cumpriu a lei em sua vida”. Essa fé, pela qual somos nascidos de novo, é, pois, “não apenas crença em todos os nossos artigos de fé, mas também uma verdadeira confiança na misericórdia de Deus, através de nosso Senhor Jesus Cristo”.
O fruto imediato e constante dessa fé, pela qual somos nascidos de Deus, o fruto que de modo algum pode separar-se dela, nem sequer por uma hora, é o domínio sobre o pecado: – domínio sobre o pecado exterior de toda espécie, sobre toda palavra ou obra má; porque, onde quer que o sangue de Cristo é aplicado, “purifica a consciência de obras mortas”; e sobre o pecado interior, porque Ele purifica o coração de todo desejo e inclinação profana. S. Paulo descreve largamente este fruto da fé, no capítulo seis de sua epístola aos Romanos. “Como podemos nós – diz ele – que”, pela fé, “morremos ao pecado, continuar nele?” “Nosso homem velho foi crucificado com Cristo, para que o corpo do pecado pudesse ser destruído, de modo que não servíssemos ao pecado”. “Do mesmo modo considerai-vos mortos ao pecado, mas vivos para Deus, mediante Jesus Cristo, nosso Senhor. Não reine, pois, o pecado em vossos corpos mortais”; “mas entregai-vos a Deus, como tendo ressuscitado dentre os mortos”. “Porque o pecado não terá domínio sobre vós – graças a Deus, que éreis servos do pecado – mas vos tornastes livres”. A clara significação é: Deus seja louvado, porque, embora fosseis, no passado, servos do pecado, agora, todavia, “sendo libertados do pecado, vós vos tornastes servos da justiça”.
O mesmo privilégio inapreciável dos filhos de Deus é realçado nitidamente por S. João, principalmente quanto ao domínio do pecado exterior. Depois de haver exclamado atônito em face da profundidade das riquezas da bondade de Deus: – “Vede de que maneira o amor de Deus vos foi comunicado, para que pudésseis ser chamadas filhos de Deus! Amados, agora sois filhos de Deus: e não foi ainda revelado o que sereis; mas sabemos que quando ele aparecer, seremos semelhantes a ele; porque o veremos assim como ele é” (1 Jo 3.1ss), logo acrescenta: “Quem quer que é nascido de Deus, não peca; porque sua semente permanece nele; e ele não pode pecar porque é nascido de Deus” (versículo 9). Mas alguns dirão: “Na verdade, o que é nascido de Deus não peca habitualmente”. Habitualmente! De que vem esta palavra? Não leio isto. Não está escrito no Livro. Deus expressamente diz: “Não comete pecado” – e tu acrescentas: habitualmente! Quem és tu que emendas os Oráculos de Deus, que “acrescentas alguma coisa às palavras deste Livro?” Guarda-te, eu te conjuro, para que não aconteça que Deus “te acrescente todas as pragas que nele estão escritas”, especialmente se se considera que o comentário que aduzes é de molde a subverter inteiramente o texto; assim é que, por este μεθοδεiα πλανης, este método astucioso de enganar, perde-se inteiramente a promessa; por esta malícia e tortuosidade dos homens, a palavra de Deus se torna de nenhum feito. Oh! Cuidado! Tu que amputaste alguma coisa às palavras deste livro, que anulaste todo seu espírito e toda sua significação, deixando apenas o que com propriedade se poderia chamar letra morta – guarda-te para que não suceda que Deus cancele tua parte no livro da vida!
Permita o apóstolo que interpretes suas palavras à luz do inteiro teor de seu discurso. No quinto versículo deste capítulo, diz ele: “Sabemos que ele”, Cristo, “manifestou-se para tirar nossos pecados; e nele não há pecado”. Qual a inferência que disto tira o próprio escritor? “Quem quer que está nele não peca; o que peca nunca o viu, nem o conhece” (1 Jo 3.6). Para reforçar esta importante doutrina, aduz uma advertência altamente necessária: “Filhinhos, que ninguém vos engane” (versículo 7): porque muitos tentarão enganar-vos, persuadindo-vos a serdes injustos, cometendo pecado e continuando na condição de filhos de Deus: “o que pratica a justiça é justo, como Deus é justo. O que comete pecado é do diabo, porque o diabo peca desde o princípio”. E prossegue: “o que é nascido de Deus não comete pecado, porque sua semente permanece nele: e ele não pode pecar, porque é nascido de Deus”. Nisto acrescenta o apóstolo – “os filhos de Deus e os filhos do diabo são manifestos”. Por este claro sinal (cometer ou não cometer pecado), eles se distinguem entre si. No mesmo sentido são as palavras do capítulo quinto: “Sabemos que o que é nascido de Deus não peca; mas o que é gerado de Deus o guarda, e o maligno não o segura” (versículo 18).
Outro fruto dessa fé viva é a paz. Porque, “justificados pela fé”, tendo todos os nossos pecados cancelados, “temos paz com Deus mediante nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5.1). Essa mesma paz o próprio Senhor, na véspera de sua morte, solenemente legou a todos os seus seguidores: “A paz – disse Ele – voz deixo (a vós que “credes em Deus” e “credes também em mim”), minha paz vos dou. Eu vo-la dou, não como o mundo a dá. Não se turbe o vosso coração nem se arreceie” (Jo 14.27). E outra vez: “Estas coisas vos digo para que tenhais paz” (Jo 16.33). Esta é aquela “paz de Deus que excede a toda a compreensão”, aquela serenidade de alma que o homem natural não pode conceber e que mesmo ao homem espiritual não é possível entender. É uma paz que os poderes reunidos da terra e do inferno são impotentes para subtrais ao crente. Vagas e tempestades rugem em torno dela, sem que a possam abalar, porque está fundada sobre a rocha. Essa paz guarda os corações e as mentes dos filhos de Deus, em todas as ocasiões e em todos os lugares. Quer estejam em abundância ou em necessidade, na saúde ou na doença, em fartura ou em falta, de qualquer modo sentem-se felizes em Deus. Aprenderam a estar contentes em qualquer condição, a dar graças a Deus por Cristo Jesus, estando bem certos de que, “seja o que for que venha, sempre será o melhor”, desde que essa seja a sua vontade; de modo que, em todas as vicissitudes da vida, seu “coração permanece firme, crente no Senhor”…Outro sinal bíblico dos que são nascidos de Deus é a esperança. Falando a todos os filhos de Deus que estavam dispersos, assim se expressa S. Pedro: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo sua abundante misericórdia, gerou-nos de novo para uma viva esperança” (1 Pe 1.3) – Eλπiδα ζωσαν, uma vívida ou viva esperança, diz o apóstolo, porque há também uma esperança morta, como existe uma fé morta; uma esperança que não vem de Deus, mas do inimigo de Deus e do homem, como se torna evidente pelos seus frutos, porque, sendo ela a fonte do orgulho, é mãe de todas as palavras e obras más; ao revés, todo homem que tem aquela viva esperança, é “santo como aquele que não vem de Deus, mas inimigo de Deus e do homem, como se torna evidente pelos seus frutos, porque sendo ela a fonte do orgulho, é mãe de todas as palavras e obras más; ao revés, todo homem que tem aquela viva esperança, é “santo como aquele que o chamou”: todo homem que pode verdadeiramente dizer a seus irmãos em Cristo; “Irmãos, agora somos filhos de Deus e vê-lo-emos como ele é”, purifica-se a si mesmo, assim como “Ele é puro”.
Esta esperança implica, primeiro, no testemunho de nosso próprio espírito, ou consciência, de “andarmos em simplicidade e piedosa sinceridade”; segundo, no testemunho do Espírito de Deus, “testificando com nosso espírito”, ou a nosso espírito, “que somos filhos de Deus”, e, pois, “herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo”.
Observemos cuidadosamente o que aí nos ensina, no tocante aos gloriosos privilégios de seus filhos. Quem se afirma aí ser o que dá testemunho? Não é somente nosso espírito, mas outro, ou seja o Espírito de Deus: este é quem “testifica com nosso espírito”. Que testifica o Espírito? “Que somos os filhos de Deus”; “e, se filhos, também herdeiros, herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo” (Rm 8.16-17), “se é que sofremos com Ele”, se negamos a nós mesmos, tomamos cada dia nossa cruz, alegremente suportamos perseguição ou vexame por sua causa, “para que possamos ser igualmente glorificados”. E a quem o Espírito Santo dá testemunho? A todos os que são versículos precedentes, que “os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus”. “Porque não recebemos o espírito de escravidão para estarmos outra vez em temor; mas recebemos o espírito de adoção, pelo qual clamamos: Abba, Pai!” E prossegue: “O mesmo Espírito testifica com nosso espírito que somos filhos de Deus” (Rm 8.14-16).
É digna de nossa atenção a variante que aparece no versículo 15: “Recebemos o espírito de adoção, pelo qual clamamos: Abba, Pai!”. Nós, que, em maior ou menor número, somos filhos de Deus, recebemos, em virtude de nossa filiação, precisamente o espírito de adoção, pelo qual nós clamamos: Abba Pai! Nós, os apóstolos, profetas, mestres (porque, assim entendendo, não se está forçando o texto); nós, que servimos de instrumento para que vós outros crêsseis, ministros de “Cristo e despenseiros dos ministérios de Deus”. Como nós e vós temos um só Senhor, assim temos um só espírito; como temos uma só fé, assim temos também uma só esperança. Nós e vós somos selados num mesmo “Espírito de promessa”, penhor de vossa e de nossa herança; o mesmo Espírito testificando com vosso e com nosso espírito “que somos filhos de Deus”.
Deste modo se cumpre a Escritura: “Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados”. Porque é fácil crer que, embora a tristeza possa preceder a esse testemunho do Espírito de Deus com nosso espírito (na verdade essa tristeza deve preceder, de algum modo, enquanto gememos sob o temor e sentimos a ira de Deus pendendo sobre nós), certo é que, tão logo sentimos em nós mesmos o Espírito, tal “tristeza se volve em alegria”. Qualquer que seja o sofrimento experimentado antes, logo que “chega aquela hora, não se lembra das dores, vencidas estas pela alegria” de haver alguém nascido de Deus. Pode ser que muitos dentre vós agora experimenteis tristeza, porque estais como “alienados da comunidade de Israel”, visto terdes consciência de que não possuis esse Espírito e de que estais “sem esperança e sem Deus no mundo”. Quando, porém, vier o Consolador, “então se alegrará vosso coração”, “vossa alegria será transbordante” e “ninguém vos arrebatará esse gozo” (Jo 16.22). “Regozijai-vos em Deus” – dirá ele – “através de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem agora recebemos a propiciação”, “por quem temos agora acesso a essa graça”, a esse estado de graça, de favor, ou de reconciliação com Deus, “em quem permanecemos, e regozijamo-nos na esperança da glória de Deus” (Rm 5.2). Vós, diz S. Pedro, a quem Deus gerou outra vez para uma viva esperança, sois guardados pelo poder de Deus para a salvação: no que grandemente nos alegramos, embora por algum tempo, se necessário, tenhamos de sofrer diversas tentações; para que a prova de vossa fé possa resultar em louvor, honra e glória, à manifestação de Jesus Cristo, no qual, embora no presente e não vejamos, regozijamo-nos com alegria inexprimível e cheia de glória” (1 Pe 1.5ss). Inexprimível, na verdade! Não está alcance da língua humana descrever essa alegria no Espírito Santo. É o “maná escondido, que nenhum homem conhece, exceto o que o recebe”. Mas isto sabemos, que ela não só excede, mas domina a profundeza da aflição. “As consolações de Deus” são pequenas para os seus filhos, quando falta todo conforto humano? De modo nenhum. Mas, quando os sofrimentos se mostram abundantes, sobre excedem as consolações de seu Espírito, de modo que os filhos de Deus “se riem à destruição que sobrevenha”, às faltas, às penas, ao inferno e ao sepulcro; sabendo quem é o que “tem as chaves da morte e do inferno”; o qual os lançará num momento ao “abismo insondável”, ouvem agora a grande voz dos céus que diz: “Eis o tabernáculo de Deus que está com os homens, e Deus habitará com eles, e serão seu povo e Ele será seu Deus. E Deus enxugará todas as lágrimas de seus olhos, e não mais haverá morte, nem tristeza, nem lamento, nem sofrerão qualquer dor, porque as primeiras coisas são passadas” (Ap 21.3-4). […]O terceiro sinal característico dos que são nascidos de Deus, e o maior deles, é o amor, amor de Deus derramado em seus corações pelo Santo Espírito que lhes foi dado” (Rm 5:5). “Porque são filhos, Deus enviou o Espírito de seu Filho a seus corações clamando: Abba, Pai!” (Gl 4.6). Por este Espírito, continuamente encarando a Deus como seu Pai de reconciliação e de amor, dele esperam o pão de cada dia, assim como todas as coisas necessárias, seja ao corpo, seja à alma. Continuamente derramam seu coração diante de Deus, sabendo “que tem as coisas que lhe pedem” (1 Jo 5.15). Seu prazer está no Senhor, que é a alegria de seu coração, seu “escudo” e sua “excessivamente grande recompensa”. Para Ele se volta o desejo de sua alma; “fazer sua vontade é sua comida e bebida”; e ficam contentes “como com tutano e com gordura, quando sua boca o louva com lábios alegres” (Sl 58.5).
Também nesse sentido “todo que ama o que gerou, ama o que é gerado” (1 Jo 5.1). Seu espírito se alegra em Deus, seu Salvador. “Ama ao Senhor Jesus Cristo em sinceridade”, “unindo-se”, destarte, “ao Senhor” como num só espírito. Sua alma para ele se inclina e o escolhe como o particularmente amado, “o escolhido dentre dez mil”. Conhece e sente o que significa: “Meu amado é meu, e eu sou de meu amado” (Ct 2.6). “Tu és mais caro do que os filhos dos homens; cheios de graça são teus lábios, porque Deus te ungiu para sempre!” (Sl 45.2).
Os frutos necessários desse amor de Deus são o amor a nosso próximo – a toda lama que Deus criou, não executando nossos inimigos, não executando os que “precedem maliciosamente para conosco e nos perseguem”; um amor que nos leve a amar a todo homem como a nós mesmos, como a nossa própria alma. Demais, nosso Senhor expressou esse amor de modo ainda mais enérgico, ensinando-nos a “amarmos uns aos outros assim como Ele nos amou”. Consequentemente, o mandamento escrito no coração de todos aqueles que amam a Deus não pode se outro senão este: “Como vos amei, assim amai-vos uns aos outros”. “Nisto percebemos o amor de Deus, em que Ele deu sua vida por nós” (1 Jo 3.16). “Devemos, pois”, como justamente infere o apóstolo – “dar nossa vida pelos irmãos”. Se nos sentirmos dispostos a isso, então verdadeiramente amamos ao próximo; em consequência, “sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos” (1 Jo 3.14). “Nisto sabemos” que somos nascidos de Deus, isto é, que “estamos nele e ele em nós, porque nos deu seu Espírito” de amor (4.13). Porque “o amor é de Deus; e todo o que ama” desse modo “é nascido de Deus e conhece a Deus” (4.7).
Possivelmente alguns perguntarão: “Nisto diz o apóstolo: Este é o amor de Deus, que guardemos seus mandamentos?” (1 Jo 5.3). Sim, e este é também o amor de nosso próximo, no mesmo sentido em que é o amor de Deus. Mas, que pretenderíeis deduzir daí? Que a guarda dos mandamentos exteriores é tudo quanto se acha implícito nos amarmos a Deus de todo nosso coração, de toda nossa mente, alma e forças, e ao próximo como a nós mesmos? Que o amor de Deus não haja um afeto da alma, mas simplesmente um serviço exterior? Que o amor do nosso próximo não seja uma disposição do coração, mas simplesmente o exercício de obras exteriores? Alvitrar uma tão grosseira interpretação das palavras do apóstolo é suficiente para refutar a própria alusão. O significado claro e incontroverso do texto é: este é o sinal ou a prova do amor de Deus: estarmos guardando o primeiro e grande mandamento, e também guardando todo o resto de seus mandamentos. Porque o verdadeiro amor, se nos foi uma vez derramado no coração, levar-nos-á a isto, desde que não pode deixar de amar a Deus de todas as forças quem quer que ame a Deus de todo o seu coração.
Um segundo fruto do amor de Deus (até onde pode ser distinguido desse), é a universal obediência àquele a quem amamos e a concordância com sua vontade; obediência a todos os mandamentos de Deus, interior e exterior; obediência de coração e de vida, em todo caráter, em toda maneira de conversação. Um dos traços de caráter que mais obviamente se inclui nessa disposição é ser o homem “zeloso de boas obras”, ter fome e sede de fazer o bem, de toda a espécie possível, a todos os homens; regozija-se em “consumir-se e ser consumido por amor deles”, por todos os filhos dos homens, não visando qualquer recompensa neste mundo, mas somente na ressurreição dos justos.
Tenho, pois, assinalado as marcas do novo nascimento, tais como as encontro evidenciadas na Escritura. Deste modo é o próprio Deus que responde à premente questão: Que é ser nascido de Deus? Se se apelar para a Palavra de Deus, está será a resposta: “Nascido de Deus é todo aquele que é nascido do Espírito”. É ser tido, no conceito do Espírito de Deus, como filho de Deus; é crer de tal modo em Deus, através de Cristo, que alcança a condição de quem “não comete pecado” e goza, em todas as situações, daquela “paz de Deus que excede a toda compreensão”. É de tal modo esperar em Deus mediante o Filho de seu amor, que não só tem o testemunho de uma boa consciência, mas também – “O Espírito de Deus testifica com vosso espírito que sois filhos de Deus”, de onde não pode deixar de decorrer o regozijo naquele por quem “recebestes a propiciação”. É amar de tal modo a Deus, que vos amou, como jamais amastes a qualquer criatura, sendo, pois, constrangidos a amar a todos os homens como a vós mesmos, com um amor que não apenas abrasa vossos corações, mas flameja em todas as vossas ações e conversações, e fazendo de toda a vossa vida um “trabalho de amor”, uma continua obediência e estes mandamentos: “Sede misericordiosos como Deus é misericordioso”; “Sede santos como eu, o Senhor, sou Santo”; “Sede perfeitos, como é perfeito vosso Pai celestial”.
Que sois vós, que assim nascestes de Deus? Vós “conheceis as coisas que vos são dadas por Deus”. Vós bem sabeis que sois filhos de Deus e “podeis ter vossos corações seguros diante dele”. E vós, que tendes observado estas palavras, não podeis senão sentir e conhecer com exatidão, se nesta hora (respondei a Deus, e não ao homem), sois filhos de Deus, ou não. A questão não é saber o que fostes feitos no batismo (não iludais à pergunta); mas, que sois agora? Apelo para vossa própria alma. Eu não pergunto se nascestes da água e do Espírito; mas se agora sois templo do Espírito Santo que habite em vós. Reconheço que fostes “circuncidados com a circuncisão de Cristo” (como S. Paulo enfaticamente denomina o batismo); mas o Espírito de Cristo e de glória repousa agora sobre vós? Se assim não é, “vossa circuncisão se tornou em incircuncisão”.
Não digais, portanto, em vosso coração: “Fui uma vez batizado; logo, sou agora filho de Deus”. Ai! A conclusão nenhum fundamento possui. Quantos batizados há que são glutões e beberrões, vulgares mentirosos e perjuros, zombeteiros e maldizentes, libertinos, ladrões e defraudadores? Que pensais? Esses tais são agora filhos de Deus? Longe disto! Digo-vos, quem quer que sois que possuis algum dos característicos acima mencionados: “Sois filhos de vosso pai, o diabo, e fazeis as obras de vosso pão”. Digo-vos, em nome daquele a quem crucificastes de novo, e servindo-me de suas próprias palavras ditas a vossos predecessores circuncidados: “Serpentes, raça de víboras, como podereis escapar à condenação do inferno?”.
Como escaparei, a não ser que tenhais novo nascimento? Porque estais agora mortos em delitos e pecados. Dizerdes, pois, que não podemos nascer de novo, que não há novo nascimento a não ser pelo batismo, é confirmardes vossa alma na condenação e vos entregardes ao inferno, sem defesa e sem esperança. E talvez alguém pense que isso seja justo e direito. No seu zelo pelo Senhor dos Exércitos, talvez venham a dizer: “Sim, cortai os pecadores, os amalequitas! Sejam esses gibeonitas totalmente destruídos! Eles não merecem outra coisa!” Não; nem eu, nem vós. Meu merecimento, como o vosso e como o desses antigos pecadores, só dão direito ao inferno; e é pela pura misericórdia, pela livre e imerecida misericórdia, que não nos encontramos agora no fogo inextinguível. Direis: “Mas fomos lavados”; nascemos outra vez “da água e do Espírito”. Assim o foram eles: isto, entretanto, não impede de modo nenhum que estejam agora na mesma condição em que eles se encontram. Não sabeis que “aquilo que é altamente estimado pelos homens é abominação à vista de Deus?” Voltai-vos, “santos do mundo”, vós que sois honrados pelos homens, e vede quem dentre vós será o que atire a primeira pedra sobre eles, sobre os que não são dignos de viver na terra, sobre as meretrizes vulgares os adúlteros e os homicidas. Somente aprendei primeiro o que significa: “aquele que odeia a seu irmão é homicida” (1 Jo 3.15). “Aquele que olha para uma mulher para a cobiçar, já no seu coração adulterou com ela” (Mt 5.28). “Vós, adúlteros e adúlteras, não sabeis que a amizade do mundo é inimizade para com Deus?” (Tg 4.4).
“Em verdade, em verdade vos digo”: deveis também “nascer de novo”. Se vós também “não nascestes outra vez, não vereis o reino de Deus”. Não vos arrimes no caniço frágil que é o vosso novo nascimento pelo batismo. Quem contesta que vos fizestes então filhos de Deus e herdeiros do reino dos céus? Mas, não obstante isto, sois agora filhos do diabo. Por isso deveis nascer de novo. E não ponha Satanás em vosso coração e cavilosidade de uma palavra, quando os fatos são claros. Ouvistes quais são os sinais característicos dos filhos de Deus: todos vós que os não tendes em vossas almas, quer tenhais sido batizados ou não, tendes a necessidade de os receber, ou perecereis, sem dúvida alguma, para sempre. Se fostes batizados, vossa única esperança é esta: os que se tornaram filhos de Deus pelo batismo, mas são agora filhos do diabo, podem ainda receber “o poder de se tornem filhos de Deus”, recebendo outra vez aquilo que perderam, ou seja, o “Espírito de adoção, clamando em seus corações: Abba, Pai!” Amém, Senhor Jesus! Possa todo aquele que outra vez preparou o coração para buscar a tua face, receber de novo o Espírito de adoção e clamar: “Abba, Pai!” Torne-se ele filho de Deus, conhecendo e sentindo que tem “redenção em teu sangue e o perdão dos pecados” e que “não pode cometer pecado, porque é nascido de Deus”. Seja o tal “gerado de novo para uma viva esperança”, de modo que “se purifique a si mesmo como tu és puro”; e “porque é filho”, descanse sobre ele o Espírito de amor e de glória, purificando-o de “toda imperfeição da carne e do espírito” e ensinando-lhe a “aperfeiçoar-se na santidade pelo temor de Deus!”. John Wesley (1703-1791) – Foi um pastor metodista e teólogo cristão britânico. Foi o líder e precursor do movimento metodista ocorrido na Inglaterra no século XVIII. Nasceu em Epworth, na Inglaterra, no dia 17 de junho de 1703. Filho de um sacerdote anglicano foi o décimo quinto filho de uma família de dezenove irmãos. Estudou durante seis anos na escola de Charterhouse, em Londres. Em 1720 foi para a Christ Church College, em Oxford. Em 1726 foi eleito membro da Lincoln College. Foi ordenado diácono para o Ministério Anglicano, e passou a acompanhar seu pai na direção da Igreja Anglicana. Faleceu em Londres, Inglaterra, no dia 02 de março de 1791.