Os Dons Espirituais

Confundir os dons do Espírito Santo com o dom do Espírito Santo é confundir o que nos é dado com Aquele que dá.

“A um deu cinco talentos, e a outro dois, e a outro um, a cada um segundo a sua capacidade” (Mt 25:15).

I- OS DONS, OS SERVIÇOS, AS OPERAÇÕES

Na Antiga Aliança, o Espírito Santo animava temporariamente alguns homens para uma missão particular, mas podia ser retirado (Jz 13:25 e 16:20). Na dispensação cristã o Espírito Santo é dado aos crentes “para estar com eles eternamente” (Jo 14:16). É Ele Quem distribui a cada membro do Corpo de Cristo “graças” que lhes permitem cumprir a sua função para o bem do conjunto.

Um exemplo, muito imperfeito, sem dúvida, poderá ajudar-nos a compreender os versos de I Coríntios 12:4-6.

Suponhamos um indivíduo que acaba de obter um diploma de professor numa universidade. É uma qualificação humana que serve para ilustrar a qualificação espiritual que o Espírito Santo outorga soberanamente aos membros do Corpo de Cristo, em vista do serviço dado pelo Senhor, ou para lhe fazerem face.

Em seguida lhe é confiado um posto, e aquilo o que deve fazer lhe é indicado pelo diretor do estabelecimento. Isto corresponde à função para a qual o Senhor nos chama, ao serviço que Ele nos confia e que nós devemos realizar de harmonia com a Sua vontade.

Tendo assim a qualificação e um posto correspondente, é necessário que esse indivíduo ensine de facto, para ser útil; aliás, para poder ser realmente eficiente, convém que ensine a matéria para a qual é qualificado. E, por um lado, um inspetor virá controlar o ensino ministrado; por outro lado, os resultados obtidos testemunharão da qualificação e da seriedade do professor no exercício da sua função. Isto corresponde às atividades que devem ser exercidas, por um lado, sob a responsabilidade do crente, mas, por outro, em virtude da unção do Espírito, sob a autoridade do Senhor, sob o controle do próprio Deus. Se há “diversidade de operações”, e o mesmo Deus que opera tudo, em todos”.

II- HÁ SOMENTE NOVE DONS ESPIRITUAIS?

Há quem o afirme. Porém, na realidade há ali um desvio daquilo que nos ensina a Sagrada Escritura. Leiamos I Coríntios 12:1, 4: “Acerca dos dons espirituais, não quero, irmãos, que sejais ignorantes. Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo”. Segue-se, nos versos 8-10, a enumeração de 9 dons. Mas não fiquemos apenas na leitura superficial, notemos:

Que a expressão “dons espirituais” do primeiro verso não se encontra no original (nem nos versos 1 e 12 do capítulo 14). A palavra grega, ela própria imprecisa, tem sido traduzida por (“manifestações” espirituais), (“coisas” espirituais), e até mesmo (“dons” espirituais), com a condição de que o vocábulo escolhido pelo tradutor seja colocado entre colchetes para, bem mostrar que não se encontra no original. Não é que neguemos a realidade dos “dons espirituais”, mas quem não utilizar um vocabulário rigorosamente bíblico é quase sempre levado a desviar-se doutrinariamente.

Que, no verso 4, alguns tradutores escrevam somente “dons e muito natural, pois podemos fazer a comparação com o primeiro verso e pensar: “dons espirituais”. Porém no original não é a palavra “charisma” que significa propriamente “dom concedido pela graça”. Os Coríntios não tinham falta de nenhum desses “dons de graça” (l Cor 1:7).

Encontramos assim, nos versos 8-10, uma lista de 9 “charismas” ou “dons de graça”. O apóstolo tem o cuidado de aplicar este termo 5 vezes neste mesmo capitulo particularmente nos versos 4 e 31; os três outros empregos eram em relação com as curas.

Esta lista não é, aliás, limitativa: Com efeito, neste mesmo capítulo, outros dons são acrescentados nos versos 28-30. Um dom para o ensino é também uma qualificação do Espírito, é um dom de graça (I Tm 4:14; II Tm 1:6). Há também as listas de Romanos 12:6-8 e de I Pedro 4:7-11, sem contar a de Efésios 4:11 onde uma outra palavra grega (doma) é empregada.

Notemos enfim que o que se poderia chamar “os dons do Espírito” em I Coríntios 12:7-11 e os “dons de Cristo” em Efésios 4:7-11 são considerados, como “dons de Deus” em I Coríntios 12:28. Aliás, não é Ele Quem opera tudo, em todos? (6).

Não teria sido útil desenvolver estes pontos, se não houvesse diferença entre os “dons de graça” e os “dons” ditos “espirituais”, embora a Palavra de Deus os una, noutro lugar, numa mesma expressão. Paulo pode dizer: “Desejo ver-vos, para vos comunicar algum dom (de graça) espiritual, a fim de que sejais confortados” (Rm 1:11).

III- HAVERÁ VERDADEIROS CRISTÃOS “NÃO CARISMÁTICOS”?

Além dos 5 empregos da palavra “carisma” que consideramos em l Coríntios 12, há 12 outros que nos mostram claramente que os carismas não se limitam às manifestações espirituais desse capítulo e ainda menos ao dom de línguas. Os carismas são graças conferidas a alguns crentes, tendo em vista o seu serviço útil. Notamos de memória os outros empregos: Romanos 1:11; II Coríntios 1:11; I Timóteo 4:14 e II Timóteo 1:6.

  • Em Romanos 12:6-8, o serviço, o ensino, a exortação, a distribuição de bens, o comportamento de uma congregação cristã, o exercício da misericórdia… são carismas;
  • Em I Coríntios 1:7, vemos que os Coríntios não tinham falta de nenhum carisma, enquanto esperavam a revelação do Senhor Jesus Cristo;
  • Em I Coríntios 7:7, vemos que “cada um tem de Deus o seu próprio carisma, um de uma maneira e outro de outra”. Aqui, a castidade é um carisma concedido a Paulo;
  • Em I Pedro 4:9-11, vemos que a hospitalidade, o falar numa igreja segundo os oráculos de Deus e o serviço cristão, são chamados carismas da variada graça de Deus;
  • “A obra de Cristo” a “vida eterna”, as “promessas feitas aos israelitas” são também chamadas carismas.

Há carismas uns mais espetaculares do que outros, mas todos procedem do Espírito de Deus e são, portanto, sobrenaturais. Não estaremos abrindo uma brecha às contrafações quando procuramos, por vezes doentiamente, unicamente dons espetaculares?

Os cristãos injustamente chamados “não carismáticos” estão, pois, bem longe de rejeitarem os dons ditos espirituais: Aceitam-nos TODOS com gratidão a Deus, na medida em que esses dons provêm do Senhor e onde os que exercem estão submetidos à Escritura, mas não aceitemos as contrafações. Qual é o critério infalível para nos guiar? É A PALAVRA DE DEUS!

IV- TODOS OS CRENTES PODEM TER O MESMO DOM?

É o ensino que alguns pretendem tirar deste verso: “Eu queria que vós todos falásseis em outras línguas; mas muito mais que profetizásseis” (l Cor 14:5). Ora, há uma diferença importante entre os desejos e as realidades. O mesmo verbo grego é empregado, por exemplo, em:

  • I Coríntios 7:7 – “Eu quereria que TODOS os homens fossem como eu mesmo” (isto é, castos), mas o apóstolo acrescenta: “Mas cada um tem de Deus o seu próprio dom, um de uma maneira outro de outra”;
  • I Timóteo 2:4 – “Deus quer que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade”, mas nós sabemos que só os que crerem serão salvos.

É bem verdade que devemos todos desejar com ardor os “dons” espirituais, mas o apóstolo precisa bem que não é para fazermos deles um objeto de adorno, mas sim para a edificação da Igreja (I Cor 12:13-14). O Espírito Santo nos dará, ou não, conforme a Sua sabedoria e a Sua soberania. Note-se que cada vez que o apóstolo exorta os crentes a desejar com ardor os dons de graça (I Cor 12:31; 14:1, 12), sublinha a utilidade dos “maiores dons”, nomeando particularmente “a profecia”, em vista da “edificação da igreja”.

Será a humildade que leva certos cristãos a procurarem unicamente o dom espetacular das línguas que, por si só, não tem nenhum utilidade para edificação coletiva? Receamos que não. Face aos tempos que ocorrem, não deveríamos nós ser mais exercitados para pedirmos ao Senhor que derrame sobre muitos o dom do discernimento dos espíritos?

No capítulo 12 da primeira epístola aos Coríntios encontramos três princípios fundamentais relativos aos dons de graça:

  • A variedade de dons (4-6);
  • A livre distribuição desses dons segundos a soberana vontade do Espírito de Deus (11);
  • O facto de os mesmos dons não serem para todos.

Esta última verdade é apresentada sob a forma de:

  • Nove repetições nos versos 8-10: “A um… e a outro… e a outro”;
  • Um paralelo com os membros do corpo humano: Os membros são diferentes, as funções são diferentes, e isto é necessário para que haja, realmente, um corpo, “mas um só e o mesmo Espírito opera todas estas coisas, repartindo particularmente, a cada um, como quer” (11-27);
  • Sete questões que reclamam todas uma resposta negativa: “Porventura são todos apóstolos? São todos profetas?… Falam todos diversas línguas? Interpretam todos? (28-30).

Ao terminar este rápido exame dos “dons” do Espírito, gostaríamos de pôr uma questão:

“Somos nós todos membros do Corpo de Cristo que cumprem, com a qualificação recebida do Espírito, a função que nos é confiada?” Que cada qual responda por si.

A Sagrada Escritura diz: “Cada um administre aos outros o dom como o recebeu, como bons dispensários da multiforme graça de Deus” (I Pe 4:10). E ainda: “Porque assim como, em um corpo, temos muitos membros, e nem todos os membros têm a mesma operação, assim nós, que somos muitos, somos um só corpo em Cristo, mas, individualmente, somos membros uns dos outros. De modo que tendo diferentes dons, segundo a graça que nos é dada…” – cumpramos integralmente a nossa função (Rm 12:4-8).

CONCLUSÃO

“Se em vós permanecer o que desde o princípio ouvistes, também permanecereis no Filho e no Pai” (I Jo 2:24).

Foi já neste século que alguém se pôs a ensinar que o falar em línguas era o sinal inicial e indispensável do baptismo do Espírito Santo; não é, pois, uma doutrina que venha do começo da cristandade; de resto, vimos já que não é uma doutrina bíblica. Mas é a “pedra angular” de todo um sistema sujo ensino se afasta muito da “fé que uma vez foi dada as santos” (Jd 3):

  • Este ensino faz os ministérios depender dos dons espirituais;
  • Faz os dons espirítuais depender do baptismo do Espírito Santo;
  • E não considera real o baptismo do Espírito Santo se não houver ali a farsa do “falar em línguas”!

Seria preciso esperar até o século XX, (“os últimos tempos”, “os tempos difíceis” – I Tm 4:1; II Tm 3:1) para ouvirmos, com espanto, que durante muitos séculos a Igreja se tinha edificado sem ministérios e sem dons espirituais por meio de pessoas que não tinham sido batizadas do Espírito Santo pela única razão de essas pessoas não terem falado “em línguas”! Este é o resultado de uma doutrina baseada na “experiência” em vez de o ser na Palavra de Deus.

Os pensamentos que seguem retiveram a nossa atenção e vamos submetê-los â apreciação dos nosso leitores:

  • Não há nenhuma experiência cristã que nos permita esperar uma maturidade instantânea. Ninguém pode ser “um pai em Cristo” sem ter sido primeiramente “um filhinho” e depois “um jovem” (I Jo 2). Crer que se pode ser adulto sem se ter sido primeiro criança nem adolescente é insensatez;
  • Mesmo o verdadeiro dom de línguas não resolveu nunca todos os problemas cristãos. Aliás, ele não foi dado para isso; é concedido soberanamente pelo Espírito Santo, para o que foi útil. Aquele que não o possui, não deve cobiçá-lo; aquele que o possui, não deve gloriar-se por causa disso;
  • A psicose da espera em que algumas denominações mantém certos crentes é própria para provocar desencorajamentos, desequilíbrios, desarranjos mentais, decepções, que trarão, como consequência, um estado depressivo e a perda do gozo da salvação;
  • Os conselhos do género: “fazei descer a vossa inteligência; aniquilai-a; criai o vazio”, abrem a porta a todas as espécies de influência nefastas e diabólicas.

Face a tanto exagero, tanta contrafação, tanto engano, exortamos os nosso leitores a dirigirem-se humildemente a Deus, pedindo-Lhe discernimento. E que a Sua Palavra seja o nosso único guia, até ao regresso do Senhor.

Terminaremos, recordando estas palavras do apóstolo Paulo:

“Peço isto, nas minhas orações: Que o vosso amor abunde mais e mais em ciência e em todo o conhecimento, para que aproveiteis as coisas excelentes, para que sejais sinceros, e sem escândalo algum até ao dia de Cristo, cheios de frutos de justiça, que são por Jesus Cristo, para glória e louvor de Deus” (Fp 1:9-11).

Pierre Oddon – In Leituras Cristãs, XXXV.

Leitura e Impressão