Odiado Sem Causa

Mas é para que se cumpra a palavra que está escrita na sua lei: Odiaram-me sem causa” (João 15:25) – Que há uma boa dose de ódio no mundo é inegável. Indivíduos, grupos sociais e nações expressam abertamente e manifestam o seu ódio de uns pelos outros. Os homens odeiam um ao outro pelo amor ao dinheiro, ganância e cobiça, ambição pessoal e desejo de poder, inveja e vingança. E a Escritura nos ensina que a raiz mais profunda de todo o ódio entre os homens é inimizade contra Deus.

Assim como o amor de um pelo outro é principalmente amor a Deus, o ódio dos homens de uns pelos outros não é senão a expressão de seu ódio a Deus. No entanto, o pecador é relutante em admitir isso. Ele entende que admitir que o seu ódio ao próximo é, principalmente, o ódio a Deus, é a sua condenação. Assim, ele tenta justificar-se. Ele encontra um motivo de seu ódio, e a causa é sempre o próximo que ele odeia.

Seu vizinho é mau, tem-no prejudicado, é um opressor dos pobres, é ávido de ganho e ambicioso de poder, um tirano cruel e assassino, alguém que não deverá ter lugar numa sociedade decente, e que deveria, portanto, ser destruído. E assim ele tenta encontrar uma justa causa do seu ódio, e apresentá-lo à luz da justa indignação.

Também não é muito difícil para o homem se enganar a si mesmo, e descobrir uma causa que justifique no seu próximo para o seu ódio contra ele, num mundo de homens que as Sagradas Escrituras expressam na sentença: “que todos estão debaixo do pecado; Como está escrito: Não há um justo, nem sequer um; Não há ninguém que entenda, não há ninguém que busque a Deus. Todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis, não há quem faça o bem, não há nem um só. A sua garganta é um sepulcro aberto, com as suas línguas tratam enganosamente; veneno de víboras está nos seus lábios, cuja boca é cheia de maldição e amargura. Os seus pés são velozes para derramar sangue, destruição e miséria estão em seus caminhos; E o caminho da paz não conheceram; Não há temor de Deus diante de seus olhos” (Romanos 3:9-18).

Em tal mundo, não deveria ser difícil encontrar a causa do ódio de alguém ao seu próximo no seu próprio próximo, e assim, justificar-se a si mesmo perante o tribunal do Homem e do Deus do homem! No entanto, este estado de coisas pode não prevalecer. Não pode ser definitivo e final. Deus deve estar justificado quando Ele julga, e todos os homens devem ser achados mentirosos. Todas as desculpas possíveis devem ser tiradas deles. Eles devem ser deixados sem nenhuma desculpa. Toda a aparente bondade e justiça e até mesmo piedade e religiosidade deve ser exposto como fundamentalmente maldade e inimizade contra Deus. As brancas sepulturas devem ser abertas, e os fedorentos e podres ossos de homens mortos devem ser revelados. Deve ser providenciada uma situação em que o pecador deve confessar que ele odeia sem uma causa, isto é, que o seu ódio não tem outra causa que não seja a sua própria inimizade contra Deus, e que, portanto, ele está irremediável e absolutamente condenado perante o tribunal de Deus.

E esta situação é criada quando o próprio Filho de Deus torna-se semelhante aos homens, e habita entre nós, na semelhança da carne pecaminosa. O Filho de Deus torna-se o Filho do homem! Deus torna-se o próximo do homem! Ele vive com eles, Ele caminha entre eles e lhes fala na sua própria língua, ele entra em suas casas e anda em suas ruas, ele come e bebe com eles, e senta-se em suas festas, Ele atende seus casamentos e seus funerais, Ele entra nos seus aposentos de convalescença e está em seus leitos de morte, ele canta e chora com eles: Ele é o Filho do homem, o próximo de todos!

Aqui, então, os homens têm a oportunidade de provar que não odeiam a menos que o seu ódio do próximo tenha uma causa, é justificado. Porque Cristo, o Filho de Deus, na semelhança da carne do pecado, o Filho do homem, é o próximo perfeito. Ele não é de modo algum abrangido pela condenação da passagem do terceiro capítulo de Romanos que acabamos de citar. Ele veio a nós de fora, mesmo sendo Ele carne da nossa carne e sangue do nosso sangue. Pois, embora Ele é nascido de uma mulher, Ele foi concebido do Espírito Santo, sem a vontade do homem. A Pessoa do Filho de Deus em carne humana é sem pecado, separado dos pecadores, apesar d’Ele se ter tornado seu próximo, santo e imaculado. Ele é o próximo perfeito!

Certamente, n’Ele os homens olham em vão pela causa de seu ódio. Nenhum pecado foi encontrado n’Ele, não há dolo encontrado em sua boca. Certamente que, se o ódio do homem ao próximo é sempre, ou normalmente, provocado por uma causa justificadora no próximo, eles não vão, eles não podem odiar este Filho do Homem. Se O odeiam, eles se expõem como mentirosos, e como inimigos de Deus. No entanto, assim foi. Pois este próprio Filho do homem se queixa, alegando a sua causa perante a face de Deus: “Eles odiaram-me sem causa”.

Foi na noite em que o nosso Salvador foi traído, na própria véspera da hora quando a fúria infernal deste ódio sem causa que iria condená-Lo à morte, e pregá-Lo na árvore maldita. Ou Ele ainda estava no Cenáculo em Jerusalém, onde Ele tinha comido a última Páscoa com seus discípulos, ou eles já estavam a caminho do Getsêmani. E estes últimos momentos da sua permanência na Terra, ele presta valioso conforto instruindo os seus discípulos e orando por eles. Ele avisa que o mundo irá odiá-los, e persegui-los, explicando ao mesmo tempo que este ódio contra eles será realmente dirigido contra Ele.Pois, assim, Ele se dirige a eles: “Mas tudo isto vos farão por causa do meu nome, porque não conhecem aquele que me enviou. Se eu não viera e não lhes falara, não teriam pecado; agora, porém, não têm desculpa do seu pecado. Aquele que me odeia a mim, odeia também a meu Pai. Se eu entre eles não tivesse feito tais obras, quais nenhum outro fez, não teriam pecado; mas agora, não somente viram, mas também odiaram tanto a mim como a meu Pai. Mas isto é para que se cumpra a palavra que está escrita na sua lei: Odiaram-me sem causa” (João 15:21-25).

Não podemos ignorar o facto de que o Salvador está aqui a citar o Velho Testamento, que ele designa pela expressão “sua lei”. As palavras ocorrem literalmente nos Salmos. No Salmo 35:19 lemos: “Não se alegrem sobre mim os que são meus inimigos sem razão, nem pisquem os olhos aqueles que me odeiam sem causa”. Mas a referência é, talvez, especialmente para aquele especificamente messiânico Salmo 69, no quarto verso em que lemos: “Aqueles que me odeiam sem causa são mais do que os cabelos da minha cabeça”.

Se o eunuco etíope tivesse lido estas palavras, ele, sem dúvida, teria feito a mesma pergunta que surgiu na sua mente quando ele ponderava as palavras de Isaías 53: “De quem diz isto o profeta? De si mesmo, ou de algum outro homem?”. Pois é evidente que o salmista também, e mesmo em primeiro lugar, fala de si mesmo. Ele fala na primeira pessoa. Ele se queixa perante a face de Deus de seu próprio sofrimento. Ele é aquele cujos inimigos são mais do que os cabelos da sua cabeça, odeiam-no sem causa, e buscam a sua destruição. Mais ainda, sabemos que o Espírito Santo inspirou o salmista a compor esta canção, não apenas para si, mas para a Igreja do Velho Testamento, a fim de que eles também pudessem tomá-la em seus lábios, torná-la sua própria, e queixarem-se do seu próprio sofrimento, e de seus inimigos que os odiavam sem causa. Tudo isto foi séculos antes da vinda de Cristo. No entanto, centenas de anos mais tarde, o Salvador declara que estas palavras fazem referência a Ele, e que têm o seu cumprimento n’Ele.O que significa? E como isto é possível? Existe apenas uma resposta a esta questão: é o próprio Cristo que é o tema central também no trigésimo quinto e no sexagésimo nono Salmos, e em toda a Lei e os Profetas da antiga dispensação. Era Ele que estava em todos os santos da antiga dispensação, e que se tornou manifesto neles, em suas palavras e andar no meio do mundo. Ele estava nos profetas, sacerdotes e reis de Israel, e em todos os santos, toda a Igreja, representada por eles, e em todo o povo de Deus da velha dispensação, até mesmo desde o começo do mundo. E como Ele se manifestava neles, Ele sempre foi odiado sem causa. O cordeiro é morto desde a fundação do mundo. E somente na medida em que Cristo estava neles, e era revelado em suas palavras e conversas, em toda a sua vida e modo de andar no meio de um mundo impiedoso, poderiam eles se queixar com o salmista do Salmo 69: “Os que me odeiam sem causa são mais do que os cabelos da minha cabeça”.

Eles eram odiados assim, mas apenas como representantes de Cristo. Eles sofreram e foram perseguidos, mas apenas porque Cristo estava neles. Eles eram constantemente fustigados por inimigos que visavam a sua destruição, mas só porque eles foram feitos para representar a causa do Filho de Deus no meio do mundo. Em Seu povo, Cristo foi odiado desde o começo do mundo, e ao longo dos séculos da antiga dispensação, até que este ódio sem causa foi finalmente cumprido completamente na plenitude dos tempos, quando o Filho de Deus caminhou entre nós em semelhança da carne pecaminosa.

Deste sofrimento de Cristo em seus santos, deste ódio sem causa, atesta o sangue de todos os justos. É deste ódio que Abel, depois de morto, ainda fala, porque ele ofereceu um sacrifício melhor do que Caim, assim testemunhando de Cristo, e ele foi morto porque ele era justo e o seu irmão perverso.

Deste ódio sabia Henoch, que testemunhou contra o mundo ímpio dos seus dias, e teve o testemunho de que agradara a Deus, a quem procuravam para matar, mas não conseguiram encontrá-lo, porque Deus o tinha transladado. E toda a Igreja pré-diluviana estava familiarizada com a fúria deste ódio, e que, humanamente falando, teria sido destruída, não os tivesse Deus salvo pelas águas do dilúvio.

Esse ódio sem causa foi dirigido contra o povo de Israel na casa do cativeiro no Egito, quando Moisés escolheu sofrer aflição com o povo de Deus em vez de ser chamado filho da filha de Faraó, e desfrutar dos prazeres do pecado por um tempo, tendo o vitupério de Cristo por maiores riquezas do que os tesouros do Egito.

E através de toda a sua história, o povo de Israel, no deserto, na sua própria terra de Canaã, na Babilónia, e após o seu regresso, eram objeto deste ódio furioso e sem sentido. Ainda mais. Mesmo dentro da nação de Israel este ódio foi revelado, e se expressou mais furioso e maldoso do que em qualquer outro lugar. Porque sempre a semente carnal odeia e persegue a semente espiritual. Eles mataram os profetas, e apedrejaram os que foram enviados a eles por Deus. E assim, alguns “experimentaram escárnios e açoites, e ainda cadeias e prisões. Foram apedrejados e tentados; foram serrados ao meio; morreram ao fio da espada; andaram vestidos de peles de ovelhas e de cabras, necessitados, aflitos e maltratados (dos quais o mundo não era digno), errantes pelos desertos e montes, e pelas covas e cavernas da terra” (Hb 11:36-38).

Não admira que eles pudessem cantar com o salmista: “Salva-me, ó Deus, pois as águas entraram até a minha alma! Atolei-me em profundo lamaçal, onde não há pé; entrei em águas profundas, onde a corrente me leva. Estou cansado do meu choro; minha garganta está seca: os meus olhos desfalecem, esperando por meu Deus. Aqueles que me odeiam sem causa são mais do que os cabelos da minha cabeça; aqueles que procuram destruir-me, sendo injustamente meus inimigos, são poderosos (1-4) … Porque por amor de ti tenho suportado afrontas (7); a confusão cobriu o rosto”.

“Por amor de ti!” Na verdade, esse ódio sem causa era dirigido contra o Cristo neles, e manifesto através deles!

E, no entanto, esta palavra não foi cumprida neles. Pois, em primeiro lugar, no caso deles, os inimigos ainda podiam encontrar uma desculpa, uma causa que parecesse justificar o seu ódio cruel. Mesmo eles lutando pela causa de Cristo, e sofrendo por Sua causa, eles não eram perfeitos. O inimigo podia facilmente encontrar e apontar para a iniquidade neles, e afirmar que eles eram dignos de destruição. Como seria fácil para o inimigo de Cristo descobrir um pretexto para o ódio contra um homem como David, o cantor de Israel, o próprio que se queixa de seu ser odiado sem causa no Salmo 69! Não era ele um adúltero e assassino, e não pôs ele toda a nação sofrer por causa de seu orgulho? Não, não poderia tornar-se manifesto plenamente neles, que eles eram odiados sem causa. E, além disso, o seu sofrimento não preencheu a medida. Nem sempre eles sofriam. Ocasionalmente, eles até chegaram a ocupar posições de poder e honra. Eles não foram uniformemente odiados. A palavra, portanto, que foi escrita na sua lei aguardava o seu cumprimento.

E cumprido foi em Cristo! Totalmente sem causa foi Ele odiado. Nunca poderia o inimigo encontrar uma causa para o ódio n’Ele, uma causa que justificasse, ou sequer parecesse justificar seu ódio perante o tribunal de Deus. Ele era o Filho de Deus em carne humana. Ele era a perfeita revelação do Pai. Ele sempre representou a causa de Deus. Ele testemunhou sempre Dele. Nunca foi encontrado pecado em Sua pessoa. Ele podia ficar no meio de seus inimigos, e desafiá-los: “Qual de vós pode acusar-me de pecado?”. Tão sem pecado, tão imaculado, tão perfeito era Ele, que, embora fossem sempre procurando ocasiões para matá-lo, nunca conseguiam encontrar uma razão. Tão imaculadamente puro era Ele, que mesmo quando O fizeram prisioneiro, e julgaram-nO nos seus tribunais, todas as suas tentativas de encontrar testemunho contra ele fracassaram totalmente, e o governador romano foi repetidamente forçado a admitir que não encontrava nenhuma causa de morte n’Ele de modo nenhum. Sempre Ele fez bem. Nem nunca Ele ocupou ou pretendeu ocupar uma posição de poder e glória no mundo, que pudesse oferecer uma ocasião de malícia e inveja aos adversários. Ele era o mais humilde entre os humildes. Ele não tinha lugar onde reclinar a cabeça!

No entanto, como eles O odiavam! Ninguém jamais foi odiado como Ele!

Seus inimigos eram, de fato, mais do que os cabelos da cabeça. Constantemente procuravam destruí-Lo. E quando finalmente parecia terem sucedido em seus planos malignos, a sua fúria não conheceu limites. Era como se o seu ódio não pudesse ser saciado. Eles zombavam d’Ele, maltrataram-nO de todas as maneiras possíveis, exigiram a morte mais vergonhosa e cruel que pudessem pensar para Ele, e mesmo quando eles O pregaram à árvore maldita, continuaram a enchê-Lo com reprovação!

Sem uma causa? Não existe então uma resposta para a pergunta: Porque O odiaram com tanta fúria? Oh, sim! Ouça, Ele mesmo dá a resposta: “Aquele que me odeia a mim, odeia também a meu Pai”. E ainda: ” mas agora, não somente viram, mas também odiaram tanto a mim como a meu Pai” (João 15:23-24). Que todo o nosso ódio é revelado como o ódio a Deus – isso é o significado da cruz.

Mas quem são esses inimigos que tão cruelmente e perversamente O odeiam? O texto diz simplesmente: “Eles”. Mas isto não é muito indefinido? Alguém que faz uma acusação tão grave, e que, também, perante a face de Deus, não menciona os seus inimigos pelo nome? Neste caso, isso é supérfluo. “Eles” é bastante suficiente. Significa homens, apenas homens, homens de todas as classes e posições, todos os homens, sem exceção. Essa cruz significa que você e eu O odiámos sem causa, e que somos inimigos de Deus, que destruiríamos o próprio Deus, se pudéssemos!

E então? Devemos abordar essa cruz para ter pena do Crucificado, e para lançar uma piedosa lágrima de autojustiça? Não permita Deus! Mas a única maneira boa, a única coisa possível de fazer é prostrar-nos a nós próprios diante da cruz, sob a poderosa mão do juízo de Deus, e confessar incondicionalmente e sem reservas, que odiávamos a ambos, Ele e seu Pai!

Mas não estamos absolutamente perdidos, e não assinamos a nossa própria condenação, se fizermos isso? Deve esta, então, ser a nossa última palavra? Graças sejam dadas a Deus, porque não! Pois, ouça! Se pela graça de Deus, você assim assinar a sua própria condenação, Deus certamente irá justificar a você! Porque o Filho do homem, a quem vós crucificastes, fez dessa cruz o altar de Deus e no amor insondável, Ele suportou a culpa do seu ódio, e tirou-a para sempre! E, portanto, naquela cruz você também pode clamar: “Ó Deus, sê propício a mim, um pecador!” e regressar a sua casa, limpo de pecado, e justificado para sempre!

Herman Hoeksema – “When I Survey”, Book 3, Chapter 2 | Reformed Free Publishing Association, pp. 211-218.