O Verbo — Sua Apresentação em João
No evangelho de João temos um início totalmente diferente dos outros três evangelhos. Não que os outros três foram idênticos — mas João foge totalmente daquilo que eles apresentaram, a ponto de parecer que os três foram iguais!
Não é fácil fazer uma harmonia cronológica dos quatro evangelhos — muitos detalhes são difíceis de encaixar com precisão. Há, porém, alguns pontos bem claros, e um deles é a mudança do Senhor Jesus para Cafarnaum (na Galileia). Ele fez diversas viagens para a Galileia, mas esta pode ser identificada nos quatro evangelhos pelo fato de ter ocorrido logo depois da prisão de João Batista (Mt 4:12; Mc 1:14; Lc 3:20; Jo 3:24), e antes da escolha “oficial” de Pedro e André e Tiago e João (Mt 4:12-22; Mc 1:14-20; Lc 5:1-11).
Usando este acontecimento como um marco cronológico, podemos sugerir que Mateus 4:12-13 (“Jesus … voltou para a Galileia e, deixando Nazaré, foi habitar em Cafarnaum”) descreve a mesma ocasião que Marcos 1:14, Lucas 4:31, e João 4:54. Ao final destes quatro trechos, temos percorrido (aproximadamente) os primeiros trinta e um¹ anos do Senhor Jesus aqui na Terra e chegado à Sua mudança para Cafarnaum.
Ou seja, os primeiros quatro capítulos do evangelho de João descrevem aproximadamente o mesmo período descrito nos primeiros quatro capítulos de Mateus, nos primeiros quinze versículos de Marcos, e nos primeiros quatro capítulos de Lucas. Comparando este início dos quatro evangelhos (e sem nos preocuparmos com o tamanho de cada um, ou a riqueza dos detalhes), veremos que os três evangelhos chamados sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) tem muita coisa em comum: Mateus e Lucas falam do nascimento do Senhor, os três falam do ministério de João Batista, do batismo e tentação do Senhor Jesus. Marcos é bem mais resumido, mas não acrescenta nenhum fato novo sobre estes períodos. Mas entre todas as coisas que João menciona deste período, praticamente tudo é novo! Ele fala de João Batista — mas do testemunho dele acerca do Messias, e não da sua pregação ao povo. Ele faz alusão ao batismo do Senhor (1:32), mas não fala diretamente dele. E ele apresenta muitas coisas novas: um primeiro encontro do Senhor com André e João (Jo 1:35-40), e depois com Pedro, Filipe e Natanael, o primeiro milagre do Senhor, a primeira² purificação do Templo, a conversa com Nicodemos, o segundo testemunho de João Batista (Jo 3:22-33) e o encontro com a mulher Samaritana.
Os três evangelhos Sinóticos praticamente omitem o primeiro ano do ministério público do Senhor, enquanto João Batista ainda estava batizando. Nos primeiros quatro capítulos de João, portanto, temos muitas coisas “novas”, que os outros evangelistas não foram inspirados a mencionar.
Consideremos estas coisas “novas”, mesmo que resumidamente — começando com um princípio novo.
O “princípio” (Jo 1:1-5)
Mateus começa com estas palavras: “Livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (“geração” é, no grego, genesis, traduzida “nascimento” em 1:18). Marcos inicia: “Princípio [arche] do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”. Lucas começa com uma introdução formal a Teófilo, em que diz que vai expor os fatos da vida do Senhor “desde o princípio [arche]”, e começa com o anúncio do nascimento de João Batista.
Os três, apesar das diferenças, tomam como “princípio” das suas narrativas o período da História em que a dinastia dos Herodes (reis edomeus) reinava na Galileia e Roma dominava o mundo. Mateus começa com o anúncio pelo anjo do Seu nascimento, Lucas alguns meses antes (com o anúncio do nascimento de João Batista), e Marcos começa alguns anos depois, com o anúncio por João Batista da Sua vinda. Mas João começa desta forma: “No princípio [arche] era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” — que diferença! Apesar de usar a mesma palavra arche que Marcos e Lucas usaram, é evidente que o “princípio” de João é muito mais antigo que o “princípio” dos outros três evangelistas. Eles começam com a vinda do Senhor ao mundo — João começa antes da criação do Universo!
É verdade que os outros três mostraram, nos seus escritos, a eternidade do Senhor Jesus, mas não com a clareza que João fez. Seria até possível alguém ler os primeiros três evangelhos (sem muita atenção) e ficar com a impressão que a vida do Senhor Jesus começou nos dias de Herodes — mas é impossível ler o evangelho de João e não perceber que Ele é eterno!
João 1:1 volta a um tempo ainda anterior a Gênesis 1:1 — se é que podemos falar de anterioridade em relação à eternidade! Nós só conseguimos imaginar uma existência controlada pelo Tempo — mas como sabemos que houve uma eternidade além do Tempo (que já existia antes do Tempo existir, e continuará a existir quando o Tempo se acabar), deduzimos que houve um momento em que o Tempo foi criado. Esta primeira experiência do Tempo é aquilo que Gênesis e João chamam de “princípio” — o primeiro momento que pode ser cronologicamente identificado. Gênesis 1:1 nos fala do que aconteceu neste “princípio”, mas João 1:1 nos mostra o que já existia quando este “princípio” aconteceu! Também poderíamos dizer que ambos nos levam àquele ponto primordial — Gênesis apontado para frente, e João para trás.
Três Características do Verbo
No princípio criou Deus os Céus e a Terra — mas quais eram as condições existentes quando Ele criou tudo? Três detalhes são apresentados, cada um repetindo a palavra “Verbo”:
i) “No princípio era o Verbo”. Aqui temos a condição do Verbo na eternidade, Sua existência eterna. Não diz: “a partir do princípio foi o Verbo”, mas “no princípio era o Verbo” — no princípio Ele já era;
ii) “o Verbo estava com Deus”. Eis a comunhão do Verbo na eternidade — não existindo apenas, mas existindo com Deus. Esta expressão prova, ao mesmo tempo, a individualidade do Verbo (pois se estava com Deus, Ele não era meramente uma manifestação de Deus, mas tinha existência própria) e a intimidade e igualdade entre o Verbo e Deus (estavam junto, como iguais). Vine³ explica que a preposição “com” usada aqui (pros, no grego) “não é a que simplesmente indica a presença de uma pessoa com outra. Sua ideia implícita é ‘em direção a’. Isto é ilustrado pelo seu uso em I Jo 2:1: ‘Temos um Advogado para com [pros] o Pai’. Sugere atitude em relação a, e íntima comunhão com, o Pai, além da presença com Ele”.
iii) “e o Verbo era Deus”. Finalmente é apresentado o caráter do Verbo na eternidade — eternamente existindo com Deus, e com a própria natureza de Deus! No texto grego “Deus” é a primeira palavra desta cláusula, sendo assim enfática: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e Deus era o Verbo”.
Poderíamos resumir assim:
i) Quem existia no princípio? “No princípio era o Verbo”;
ii) Quais as experiências eternas deste Verbo? “O Verbo estava com Deus”;
iii) Qual era a essência eterna, a verdadeira natureza, deste Verbo eterno? “O Verbo era Deus!”
Destas três descrições, apenas a central é repetida no versículo seguinte — “Ele estava no princípio com Deus”.
Três Relacionamentos dEle
O primeiro parágrafo deste evangelho (versos 1-5) continua falando da eternidade do Filho de Deus, em três aspectos:
i) A Sua Pessoa (versos 1-2) — em relação a Deus. O primeiro versículo destaca, em três afirmações preciosas, a Sua existência eterna, resumida pela repetição, no verso 2, da cláusula central: “Ele estava no princípio com Deus”. Que grande Pessoa — o eterno Companheiro de Deus!
ii) O Seu poder (verso 3) — em relação ao Universo. Em seguida lemos do Seu poder como Criador, com duas afirmações abrangentes: a primeira é positiva (“Tudo foi feito por Ele”), a segunda negativa (“sem Ele, nada do que foi feito se fez”). A Criação toda (não só o Universo) foi feita por Ele. Esta introdução contém dez cláusulas que formam um quiasma (veja “As cláusulas de João 1:1-5” abaixo) — as duas cláusulas centrais são as deste versículo.
iii) As Suas provisões (verso 4-5) — em relação aos homens. Dele provém vida e luz: “nEle estava a vida, e a vida era a luz dos homens”. A preposição usada aqui (en⁴) indica que a vida descansava nEle. É um complemento do versículo anterior: nada podia ser criado sem Ele, pois a vida habita nEle. Esta cláusula, no quiasma, combina com o verso 2: “Ele estava no princípio com Deus … nEle estava a vida”. Este assunto é tratado em mais detalhes, como veremos logo abaixo.
Três Aspectos das Suas Provisões
O último relacionamento do Senhor na tríade acima (Suas provisões para os homens) também é visto em três aspectos. Este parágrafo que forma a introdução ao evangelho de João começa com três afirmações sobre o Verbo, e termina com três afirmações sobre a Luz, todas começando com “e” (kai, no grego):
i) “E a vida era a luz dos homens”; Robertson⁵ afirma que os dois artigos usados aqui tornam ambos os substantivos intercambiáveis na frase. Tanto podemos afirmar: “A vida era a luz dos homens” quanto: “A luz era a vida dos homens”. Realmente o Senhor afirma neste evangelho que Ele é a Luz (8:12) e a Vida (14:6). João está deixando claro, pelo Espírito Santo, que o Senhor não é um mero construtor do Universo, mas sim seu Criador, a fonte de onde tudo emana!
Esta cláusula, no quiasma, combina com a terceira: “e o Verbo era Deus … e a Vida era a luz dos homens”. Assim como o Verbo e Deus existiam em plena igualdade (o Verbo era Deus e Deus era o Verbo), assim a vida e a luz são descrições complementares dEle (a Vida é a luz, e a Luz é a vida, dos homens). Mas convém destacar o uso cuidadoso da linguagem por parte de João, inspirado pelo Espírito Santo. Aqui, ambos os substantivos tem o artigo (“a vida” e “a luz”), mas no verso 1 lemos: “… o Verbo estava com Deus [com o artigo], e Deus [sem o artigo] era o Verbo [com o artigo]”.
ii) “E a luz resplandece nas trevas”; a Luz continua sempre brilhando no meio das trevas. Podemos entender “trevas” no sentido figurativo do mal, ou no sentido das pessoas que não conheciam a Deus, como na citação de Isaías feita por Mateus: “O povo que estava assentado em trevas viu uma grande luz …” (Mt 4:16). De qualquer forma, que contraste com a segunda cláusula deste quiasma: “O Verbo estava com Deus … a Luz resplandece nas trevas”. Na primeira afirmação vemos o ambiente maravilhoso e bendito do Céu, onde o Verbo convivia com Deus; na segunda, vemos a Sua influência longe daquele ambiente, brilhando no meio da escuridão que existe longe de Deus. Esta é a glória do Evangelho — que aquele que tinha todo o direito de estar na presença de Deus quis brilhar entre as trevas. “O Verbo estava com Deus” revela toda a gloriosa majestade do Senhor — “a Luz resplandece nas trevas”, porém, nos comove mais, pois revela a Sua misericórdia. Por que sair da presença confortável de Deus e vir brilhar nas trevas? Louvamos a Deus que Ele agiu assim.
iii) “E as trevas não a compreenderam”. A palavra traduzida “compreenderam” ocorre quinze vezes no NT, e vem de uma raiz que quer dizer “tomar à força, prender”. Na ACF é traduzida assim: “apanhar” (4x), “alcançar” (4x), “compreender” (2x), “reconhecer” (2x), além de “prender”, “surpreender” e “achar”. Parece confuso, pois como podem “prender” e “compreender” serem traduções da mesma palavra? Na realidade, porém, quando entendemos algo com nossa mente, adquirimos aquele conhecimento e tomamos posse dele — portanto, “compreender” uma verdade é tornar aquela verdade nossa possessão, prendê-la em nossa mente. A ideia aqui não é tanto que as trevas ficaram confusas quanto ao verdadeiro caráter da Luz, mas que as trevas tentaram apagar a Luz e não conseguiram. Em João 12:35 temos exatamente a mesma expressão que João usou aqui, mas num contexto bem diferente, e que ajuda a entendermos esta afirmação: “Andai enquanto tendes luz, para que as trevas não vos apanhem”. A palavra traduzida “apanhem” em 12:35 é a mesma traduzida “compreenderam” aqui. Para os homens, existe sempre a possibilidade deles serem apanhados pelas trevas — as trevas podem nos cercar de tal forma que perdemos nossa luz. Mas quanto ao Verbo que existe desde o princípio, a realidade é outra: as trevas não O apanham! O verbo na cláusula anterior (“resplandece”) está no tempo presente, mas nesta cláusula está no aoristo⁶ , mostrando-nos que em toda a existência da Luz, as trevas nunca conseguiram (nem conseguirão) apaga-la!
Quando comparamos as três cláusulas do verso 1, que iniciam esta introdução, com estas três cláusulas que a encerram, vemos todo o brilho do Evangelho de Deus. A introdução começa dizendo: “No princípio era o Verbo [condição eterna], e o Verbo estava com Deus [comunhão eterna], e o Verbo era Deus [caráter eterno]”. São afirmações majestosas e gloriosas, mas que não tratam do nosso problema. Apresentam-nos, em poucas palavras, assuntos que não conseguimos esgotar e que nos deixam maravilhados diante da glória de Deus — mas não falam absolutamente nada sobre os nossos problemas. Mas veja agora o final: “E a vida era a luz dos homens [Seu caráter; aquele que era, em Si mesmo, Deus, era, em Si mesmo, luz para os homens — para nós!]. E a luz resplandece nas trevas [Sua comunhão; aquele que conviveu com Deus veio brilhar nas trevas que nos cercavam!], e as trevas não a compreenderam [Sua condição; aquele que “iniciou” a eternidade existindo, “terminará” a eternidade brilhando, pois as trevas não conseguem apagar esta Luz!]”.
Louvemos a Deus pelo Verbo, glorioso na Sua divindade e glorioso na Sua graça para conosco.
As cláusulas de João 1:1-5
A. No princípio era o Verbo,
B. E o Verbo estava com Deus, Sua
C. E o Verbo era Deus. Pessoa
D. Ele estava no princípio com Deus.
E. Todas as coisas foram feitas por Ele, Seu
E. E sem Ele nada do que foi feito se fez. Poder
D. Nele estava a vida,
C. E a vida era a luz dos homens. Suas
B. E a luz resplandece nas trevas, Provisões
A. E as trevas não a compreenderam.
Sua encarnação (Jo 1:6-18)
Após esta breve introdução de cinco versículos, temos dois assuntos principais expostos com mais detalhes: lemos sobre o fato glorioso da Sua encarnação, e paralelamente com isto, o testemunho claro a respeito dEle por parte de João Batista. Os dois assuntos são apresentados nos versos 6-9, e depois desenvolvidos em ordem inversa. Primeiro lemos de João Batista (que, cronologicamente, veio antes do Senhor), depois lemos da Luz verdadeira. Mas como a Luz verdadeira, mesmo vindo após João, existe antes de João (1:15, etc.), toda a glória da Sua encarnação é apresentada primeiro; depois, a partir do verso 19, é que teremos os detalhes do testemunho de João Batista.
Há uma riqueza de doutrinas e verdades nestes versículos, mas um fato triste chama a nossa atenção: a forma como os homens receberam o Filho de Deus. Os evangelhos sinópticos falaram do Seu nascimento em termos históricos e humanos, e mostraram como este nascimento passou praticamente despercebido pelo mundo. Mas João mostra Sua vinda de um ponto de vista muito mais sublime e glorioso: não o nascimento de um bebê (por mais importante e glorioso que seja esse Bebê), mas a encarnação do Deus eterno. Ele destaca a glória eterna de Deus, e depois revela este mistério glorioso: o Deus eterno Se encarnou e habitou entre nós! E mais — nós vimos a Sua glória (1:14)! Certamente agora o mundo irá se prostrar em adoração!
Mas não! Como João deixa claro, Ele foi desprezado! E a própria estrutura do texto inspirado chama a nossa atenção para isto. A encarnação é apresentada nestes primeiros 18 versículos em três afirmações diferentes, das quais a central destaca a frieza com que o mundo O recebeu. Este fato incrível (a frieza com que O receberam), por sua vez, também é apresentado em três aspectos. E o elemento central desta segunda tríade também é composto de três partes!
O efeito desta estrutura extremamente detalhada, com tríades se desdobrando em outras tríades, é uma forma de Deus chamar nossa atenção para esta verdade quase inacreditável: o Filho de Deus veio habitar entre nós, e nós (o mundo) não O recebemos.
Que triste verdade. Consideremos, então, as três tríades principais.
Três Afirmações Sobre a Encarnação
i) O fato exposto (1:4-5) — “A luz resplandece nas trevas”. Esta foi a afirmação inicial: a luz que brilhou eternamente nos Céus se manifestou aqui; o Verbo veio brilhar entre nós.
ii) A frieza exibida (1:9-11) — “O mundo não O conheceu. Veio para o que era Seu, e os Seus não O receberam”. Quando a luz brilha nas trevas, deveria haver festa — mas neste caso, não! lemos do desinteresse dos homens pela Luz verdadeira: o mundo não O conheceu, e os Seus não O receberam!
iii) A forma explicada (1:14-18) — “O Verbo Se fez carne, e habitou entre nós.” Como foi que a luz resplandeceu nas trevas — como um relâmpago numa tempestade? De que forma o Criador veio ao mundo que Ele criou — veio cercado de anjos e exércitos celestiais? Não! “O Verbo Se fez carne, e habitou entre nós”. Tendo durante séculos nos abençoado lá do Céu; tendo enviado, vez após vez, Seus servos, os profetas; agora Ele próprio vem. E não somente como visita, mas fazendo-Se carne!
Repare como a glória da encarnação é apresentada aos poucos. Na primeira figura usada (verso 5: a Luz resplandecendo nas trevas), há um certo elemento de distanciamento — afinal, a luz do Sol ilumina a Terra, sem que o Sol precise se aproximar de nós. Nos versos 9 a 11, porém, vemos que Sua influência neste mundo não foi simplesmente à distância; não foi simplesmente o brilho distante da Sua glória que nos alcançou. Isso já teria sido maravilhoso — mas Ele veio até este planeta onde vivemos! “Estava no mundo … veio para o que era Seu”. Que verdade maravilhosa! Mas isto ainda não é toda a verdade, pois o terceiro trecho (versos 14-18) diz: “O Verbo Se fez carne, e habitou [tabernaculou] entre nós”. Parece inacreditável. Ele não veio simplesmente nos visitar — Ele tomou a nossa natureza! Não é simplesmente que Ele tomou um corpo — Ele Se fez carne! Temos aqui uma referência ao Seu nascimento, mas de um ponto de vista muito mais elevado, indicando um pouco do mistério que está escondido no nascimento virginal de nosso amado Senhor.
E João acrescenta: “vimos a Sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e verdade”! Uma glória que foi profetizada por João Batista (verso 15); uma glória que é tão abundante que todos nós podemos receber da Sua plenitude (verso 16); uma glória que apresenta algo superior à Lei dada por Moisés (verso 17) — outra tríade! Precisaremos da eternidade para entender um assunto tão vasto!
João resume a encarnação dizendo: “Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse O revelou” (verso 18). Paramos maravilhados e perguntamos: “João, o que você está dizendo? Você está dizendo que, depois da encarnação, nós podemos conhecer a Deus?” Ah, irmãos, é exatamente isto (veja 14:9)! O Espírito Santo revela, nesse evangelho, a verdade sublime por trás do fato histórico apresentado nos evangelhos sinópticos. Quando Mateus e Lucas falam sobre o nascimento do Bebê que foi colocado numa manjedoura, não é um simples nascimento que estão descrevendo — é o mistério da encarnação! O Deus eterno e invisível, que ninguém jamais poderia ver com os olhos naturais, revelou a Sua glória na Pessoa bendita de um Bebê!
Três Aspectos da Frieza Com Que Ele Foi Recebido
Como vimos acima, entre o anúncio do fato da Sua interferência neste mundo, e a revelação de quão maravilhosa foi a forma escolhida para isto (a encarnação), lemos da frieza com que os homens O trataram. E este fato tão triste e vergonhoso relacionado à encarnação também é apresentado de forma tripla:
i) as trevas não compreenderam a Luz (verso 5). Esta afirmação talvez não cause muito espanto. Afinal, trevas e luz nunca se misturam, e é natural que as trevas fugam diante da luz. Quando aplicamos esta figura à realidade da encarnação ficamos envergonhados com nossa cegueira, mas a figura em si é, de certa forma, normal.
ii) o mundo não O conheceu (verso 10). Aqui as coisas ficam mais difíceis de entender. O Criador veio entre as Suas criaturas, e não foi reconhecido! Aqui é cegueira, mas não é natural! “O boi conhece o seu possuidor, e o jumento a manjedoura do seu dono; mas Israel não tem conhecimento” (Is 1:3).
iii) os Seus não O receberam (verso 11). Infelizmente, porém, a situação piora ainda mais. Ele não somente veio habitar no planeta que Ele criou entre as pessoas que Ele criou, mas Ele veio “para o que era Seu” — Israel, o povo que era Sua propriedade particular entre todos os povos da Terra (Dt 26:18-19) — “e os Seus não O receberam”. Aqueles que tinham um relacionamento com Ele não O reconheceram, e quando Ele foi revelado diante deles eles não O receberam!
Assim vemos uma progressão no desprezo dos homens. O que poderia ser descrito como natural na primeira menção (trevas fugindo de diante da luz) e como cegueira na segunda (criaturas não conhecendo o Criador) é finalmente visto como rejeição completa na terceira menção.
Esta é a verdade solene do Evangelho: o ser humano natural tem o instinto de fugir dEle (como as trevas fogem da luz), são incapazes de reconhecer a Sua glória, e quando se veem face a face com a glória de Deus, O rejeitam!
Três Afirmações Sobre o Mundo
A triste realidade deste desprezo é enfatizada por mais uma tríade. O verso 10 (a parte central da tríade acima) apresenta uma frase composta de três cláusulas curtas: “Estava no mundo, e o mundo foi feito por Ele, e o mundo não O conheceu”. Repare a repetição da palavra “mundo” neste versículo. João já apresentou a tripla condição eterna do Verbo no verso 1, a tripla ação da Luz nos versos 4-5, e a agora a tripla relação do Senhor com o mundo.
Primeiro lemos da Sua presença aqui — estava no mundo. Depois é apresentado o direito que Ele tem de estar aqui — o mundo foi feito por Ele. Ele não é intruso ou estrangeiro — Ele é o Criador. Mas a Bíblia diz, com clareza: o mundo não O conheceu!
Vemos assim, de diversos ângulos, a mesma verdade: o Senhor foi desprezado aqui. A verdade é repetida figurativamente (luz x trevas) e explicitamente (“os Seus não O receberam”). Até a estrutura escolhida por Deus para apresentar este fato, com tríade se desdobrando em tríade, realça como foi terrível a frieza com que os homens O trataram. Que triste evidência da ignorância do homem natural! Que condenação do mundo em que vivemos.
Cantemos hoje: “Mas em meu coração, ó Cristo, tenho sempre lugar para Ti” (Hinos e Cânticos 429).
William Joseph Watterson
- João nos revela que houve quase um ano de intervalo entre o batismo do Senhor e a Sua mudança para Cafarnaum. Em João 2:13 lemos da Páscoa. Depois temos um período indeterminado que o Senhor passou em Jerusalém (quando conversou com Nicodemos), houve outro período indeterminado, mas longo, passado na Judeia (a palavra traduzida “estava” em 3:22 indica uma demora), seguida de uma viagem à Galileia. E esta viagem, diz a Bíblia, ocorreu quatro meses antes da ceifa (4:35 — ou seja, oito meses depois da Páscoa mencionada no capítulo 2).
- Provavelmente, diferente daquela mencionada pelos outros evangelistas no final do ministério público do Senhor.
- The Leading Themes of the Gospel of John.
- Segundo o léxico de Thayer, “indica posição fixa … i.e., descansando”.
- Word Pictures in the New Testament.
- Um tempo verbal que enfatiza ação pontual — “o conceito do verbo é considerado sem relação ao passado, presente ou futuro” (Thayer). Não algo contínuo, mas algo que, quer no passado, presente ou futuro, é feito de uma vez por todas.
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