O Significado da Páscoa
O Princípio dos Meses
“E falou o SENHOR a Moisés e a Arão na terra do Egito, dizendo: Este mesmo mês vos será o princípio dos meses; este vos será o primeiro dos meses do ano” (Ex 12:1-2). Eis aqui uma alteração muito importante na ordem de contar o tempo. O ano comum ou civil seguia o seu curso ordinário, quando o Senhor o interrompeu por causa do Seu povo, e assim, em princípio, ensinou-lhes que deviam começar uma nova era em Sua companhia. A história anterior de Israel não devia ser doravante tomada em conta. A redenção tinha de constituir o primeiro passo na vida real.
Isto ensina-nos uma verdade bem simples. A vida do homem não é realmente de interesse até que ele comece a andar com Deus no conhecimento de uma salvação perfeita e de uma paz estável, pelo sangue precioso do Cordeiro de Deus. Antes disto, segundo o juízo de Deus e a expressão das Escrituras, ele está “morto em ofensas e pecados” e “alienado da vida de Deus” (Ef 2:1; 4:18). Toda a sua história não é mais que um espaço vazio, ainda que, na opinião do homem, haja sido uma cena de ruidosa atividade. Tudo aquilo que desperta a atenção do homem deste mundo, as honras, as riquezas, os prazeres, os atrativos da vida, assim chamados, todas estas coisas, quando examinadas à luz do juízo de Deus e pesadas na balança do santuário, não são mais que um vazio horrível, um espaço inútil, indigno de ocupar um lugar nos registros do Espírito Santo. “Aquele que não crê no Filho não verá a vida” (Jo 3:36). Os homens falam de gozar a vida quando se lançam ao mundo, quando viajam de um lado para o outro, para ver tudo que é digno de se ver; porém esquecem que o único meio verdadeiro, real e divino de “ver a vida” é “crer no Filho de Deus”.
Como os homens pensam tão pouco nisto! Julgam que a verdadeira vida acaba quando um homem se torna cristão, real e verdadeiro e não apenas de nome e profissão exterior; ao passo que a palavra de Deus nos ensina que é então que podemos ver a vida e experimentar verdadeira felicidade. “Quem tem o Filho tem a vida” (1 Jo 5:12). E “Bem-aventurado aquele cuja transgressão é perdoada e cujo pecado é coberto” (Sl 32:1). Somente em Cristo podemos ter vida e felicidade. Fora d´Ele tudo é morte e miséria, segundo o juízo do céu, sejam quais forem as aparências. É quando o véu espesso da incredulidade é tirado do coração, e nos é dado ver, com os olhos da fé, o Cordeiro de Deus carregando o nosso fardo pesado de culpa sobre a cruz, que entramos na senda da vida e participamos do cálice da felicidade divina – vida que principia na cruz e corre para uma eternidade de glória – uma felicidade que, cada dia se torna mais profunda e mais pura, mais relacionada com Deus e repousando melhor em Cristo, até chegarmos à sua própria esfera, na presença de Deus e do Cordeiro. Buscar a vida e a felicidade por outros meios é um trabalho muito mais penoso do que fazer tijolos sem palha.
Por certo, o inimigo das almas dá brilho a esta cena passageira, para fazer crer aos homens que ela é toda de ouro.
Ele sabe como levantar mais de uma representação de fantoches com o fim de provocar o riso falso de uma multidão descuidada, que não sabe que é Satanás quem move os cordelinhos e que é seu objetivo conservar as almas afastadas de Cristo para as arrastar para a perdição. Não existe nada verdadeiro, nada sólido, nada que satisfaça a alma, senão em Cristo. Sem Ele “tudo é vaidade e aflição de espírito” (Ec 2:17). Só n´Ele se encontram os gozos verdadeiros e ternos; e por isso é só quando começamos a viver n´Ele, d´Ele, com Ele e para Ele que começamos verdadeiramente a viver: “Este mesmo mês vos será o princípio dos meses; este vos será o primeiro dos meses do ano”. O tempo passado nos fornos de tijolo e junto das panelas de carne é como se não tivesse existido. Deve, doravante, ser uma coisa sem importância, salvo que a sua recordação deve, de vez em quando, servir para despertar o seu sentido daquilo que a graça divina havia realizado em seu favor.
O Cordeiro Guardado
“Falai a toda a congregação de Israel, dizendo: Aos dez deste mês, tome cada um para si um cordeiro, segundo as casas dos pais, um cordeiro para cada casa… O cordeiro, ou cabrito, será, sem mácula, um macho de um ano, o qual tomareis das ovelhas ou das cabras, e o guardareis até ao décimo quarto dia deste mês, e todo o ajuntamento da congregação de Israel o sacrificará à tarde” (3-6). Eis aqui a redenção do povo de Israel baseada sobre o sangue do cordeiro segundo o desígnio eterno de Deus. Isto dá à redenção toda a sua estabilidade divina.
A redenção não foi o resultado de um segundo pensamento de Deus. Antes que o mundo existisse, ou Satanás, ou o pecado; antes que a voz de Deus houvesse interrompido o silêncio de eternidade e chamado os mundos à existência, Ele tinha os seus grandes desígnios de amor, e estes desígnios não podiam achar jamais um fundamento suficientemente sólido na criação. Todos os privilégios, todas as bênçãos e as glórias da criação repousavam sobre a obediência de uma criatura, e, no próprio momento em que esta caiu, tudo foi perdido. Porém, a tentativa de Satanás de corromper a criação apenas serviu para abrir o caminho à manifestação dos propósitos profundos de Deus quanto à redenção.
Esta maravilhosa verdade é-nos apresentada em figura debaixo do fato que o cordeiro devia ser guardado desde o dia dez “até ao décimo quarto dia”. Este cordeiro era indiscutivelmente uma figura de Cristo, como nos ensina, sem dúvida, a passagem da 1 Coríntios 5:7: “Porque Cristo, nossa páscoa, foi sacrificado por nós”. Na primeira epístola de Pedro faz-se alusão à guarda do cordeiro durante estes quatro dias:
“Sabendo que não foi com cosias corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados da vossa vã maneira de viver, que por tradição recebestes dos vossos pais, mas com o precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro imaculado e incontaminado, o qual na verdade, em outro tempo, foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo, mas manifestado nestes últimos tempos; por amor de vós” (18-20).Todos os desígnios de Deus, desde toda a eternidade, tinham relação com Cristo; e nenhum esforço do inimigo podia interferir com esses desígnios: antes pelo contrário, esses esforços apenas contribuíram para a manifestação e a estabilidade inabalável da sabedoria insondável de Deus. Se “o Cordeiro imaculado e incontaminado” foi “conhecido antes da fundação do mundo”, certamente que a redenção devia estar no pensamento de Deus antes da fundação do mundo. O bendito Senhor não teve que improvisar um plano para remediar o terrível mal que o inimigo havia introduzido na criação. Não, Ele apenas teve que tirar do tesouro inexplorado dos Seus maravilhosos desígnios a verdade quanto ao Cordeiro imaculado, conhecido desde a eternidade, e que devia ser “manifestado nestes últimos tempos por amor de nós”.
Quando a criação saiu das mãos do Criador, mostrando em cada fase e em cada parte a obra admirável da Sua mão provas infalíveis do seu eterno poder, e da sua divindade (Rm 1:20) – não houve necessidade do sangue do Cordeiro. Porém, quando “por um homem entrou o pecado no mundo”, foi revelado o pensamento mais alto, mais rico, mais profundo, mais pleno da redenção pelo sangue do Cordeiro. Esta verdade gloriosa apareceu primeiramente através da nuvem espessa que rodeava os nossos primeiros pais, quando saíram do jardim do Éden; a sua luz começou a brilhar nas figuras e sombras da dispensação mosaica; e, por fim, resplandeceu sobre o mundo com todo o seu esplendor, quando “o Oriente do alto nos visitou” na Pessoa do Deus manifestado em carne (1 Tm 3:16); e os seus ricos e gloriosos resultados serão realizados quando aquela grande multidão vestida de branco, e tendo palmas em suas mãos, se reunir em torno do trono de Deus e do Cordeiro, e toda a criação descansar sob o cetro de paz do Filho de Davi.
Assim, o cordeiro tomado no dia dez e guardado até ao dia catorze mostra-nos Cristo conhecido de Deus, desde a eternidade, porém manifestado na plenitude dos tempos por amor de nós. O desígnio eterno de Deus em Cristo vem a ser o fundamento da paz do crente. Nada menos do que isto seria suficiente. Somos reconduzidos muito para lá da criação, para lá dos limites do tempo, além da entrada do pecado e de tudo que pudesse possivelmente afetar o fundamento da nossa paz. A expressão “conhecido antes da fundação do mundo” faz-nos retroceder às profundidades insondáveis da eternidade, e mostra-nos Deus fazendo os Seus próprios planos de amor redentor e baseando-os sobre o sangue expiador do Seu precioso Cordeiro imaculado.
Cristo foi sempre o pensamento primário de Deus, e por isso, logo que começa a falar ou atuar, Ele aproveita a ocasião para manifestar Aquele que ocupava o lugar mais elevado em Seus conselhos e afetos; e, seguindo a corrente de inspiração divina, descobrimos que cada cerimônia, cada rito, cada ordenação, e cada sacrifício indicava “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1:29); porém em nenhum de uma forma tão evidente como a Páscoa. O cordeiro da páscoa, com tudo que com ele se ligava, apresenta-nos uma das figuras mais interessantes e instrutivas das Escrituras.
O Cordeiro Imolado
Na interpretação deste capítulo 12 de Êxodo temos que tratar com uma assembleia e um sacrifício é: “todo o ajuntamento da congregação de Israel o sacrificará à tarde” (6). Não se trata tanto de um número de famílias e alguns cordeiros (o que por certo é muito verdade) como de uma assembleia e um cordeiro. Cada família era a expressão local de toda a assembleia reunida em torno do cordeiro. O antítipo deste ato têmo-lo em toda a Igreja de Deus reunida pelo Espírito Santo em nome do Senhor Jesus, da qual cada assembleia em particular, onde quer que se reúna, deve ser a expressão local.
O Sangue sobre as Ombreiras e na Verga das Casas
“E tomarão do sangue e pô-lo-ão em ambas as ombreiras e na verga da porta, nas casas em que o comerem. E naquela noite comerão a carne assada no fogo, com pães asmos; com ervas amargosas a comerão.Não comereis dele nada cru, nem cozido em água, senão assado ao fogo; a cabeça com os pés e com a fressura” (7-9).O cordeiro da páscoa é-nos apresentado sob dois aspectos, a saber: como fundamento da paz e como centro de unidade. O sangue na verga das portas assegurava a paz de Israel: “…vendo eu sangue, passarei por cima de vós” (13). Nada mais era necessário, senão a aspersão do sangue, para se desfrutar paz em relação com o anjo destruidor. A morte devia fazer a sua obra em todas as casas do Egito. “Aos homens está ordenado morrerem uma vez” (Hb 9:27). Porém, Deus, em Sua grande misericórdia, encontrou um substituto imaculado para Israel, sobre o qual foi executada a sentença de morte. Assim, as exigências de Deus e a necessidade de Israel foram cumpridas por uma e mesma coisa, a saber: o sangue do cordeiro. O sangue fora das portas era prova de que tudo estava perfeita e divinamente arrumado; e, portanto, dentro reinava perfeita paz. Uma sombra de dúvida no coração dum israelita teria sido uma desonra para o fundamento divino da paz – o sangue da expiação.
É verdade que cada um daqueles que se achavam dentro de casa, em cuja porta o sangue havia sido posto, deveria sentir, necessariamente, que se tivesse de receber a justa retribuição dos seus pecados, a espada do anjo destruidor cairia irremediavelmente sobre si; porém o cordeiro havia sofrido em seu lugar. Este era o fundamento sólido da sua paz. O juízo que lhe competia caíra sobre uma vítima designada por Deus e, crendo isto, podia comer em paz dentro de casa. Uma dúvida sequer teria feito do Senhor mentiroso; pois Ele havia dito: “vendo eu sangue, passarei por cima de vós”. Isto era suficiente. Não era uma questão de mérito pessoal. O ego nada tinha a ver com o assunto. Todos os que se achavam protegidos pelo sangue estavam salvos. Não estavam apenas num estado de salvos, mas salvos. Não esperavam nem oravam para ser salvos, sabiam que isso era um fato assegurado, em virtude da autoridade daquela palavra que permanecerá de geração em geração. Demais, não se achavam em parte salvos e em parte expostos ao juízo: estavam completamente salvos. O sangue do cordeiro e a palavra do Senhor constituíam o fundamento da paz de Israel naquela noite terrível em que os primogênitos do Egito foram abatidos. Se um simples cabelo da cabeça de um israelita pudesse ser tocado, isso teria anulado a palavra do Senhor e declarado nulo o sangue do cordeiro. É da máxima importância ter-se um conhecimento claro daquilo que constitui o fundamento da paz do crente na presença de Deus. São associadas tantas coisas à obra consumada de Cristo, que as almas se veem envolvidas na confusão e incerteza quanto à sua aceitação. Não discernem o caráter absoluto da redenção pelo sangue de Cristo na sua aplicação a si mesmas. Parece que ignoram que o perdão dos seus pecados descansa sobre o simples fato de se ter efetuado perfeita expiação: um fato comprovado, à vista de todos os entes inteligentes criados, pela ressurreição de entre os mortos do Substituto do pecador. Sabem que não existe outro meio de salvação senão pelo sangue da cruz, porém demônios sabem isto também, e de nada lhes aproveita. O que necessitamos saber é que estamos salvos. O israelita sabia não somente que havia segurança no sangue, mas que estava em segurança. E em segurança porquê? Era devido a alguma coisa que havia feito, ou sentido, ou pensado? De modo nenhum; mas, sim porque Deus havia dito: “vendo eu sangue passarei por cima de vós”. O israelita descansava sobre o testemunho de Deus; acreditava naquilo que Deus havia dito, porque Deus o havia dito: “esse confirmou que Deus é verdadeiro”.
“Vendo Eu Sangue”…
Note-se que o israelita não descansa sobre os seus próprios pensamentos, nos seus sentimentos ou na sua experiência, a respeito do sangue. Isto teria sido descansar sobre um fundamento fraco e movediço. Os seus pensamentos e os seus sentimentos podiam ser profundos ou superficiais: mas, quer fossem profundos, quer superficiais, nada tinham que ver com o fundamento da sua paz. Deus não havia dito: “vendo vós o sangue, e avaliando-o como ele deve ser avaliado, eu passarei por cima de vós”. Isto teria bastado para lançar um israelita em profundo desespero quanto a si próprio, visto que é impossível para o espírito humano apreciar o valor do precioso sangue do Cordeiro de Deus. O que dava paz era a certeza de que os olhos do Senhor estavam postos sobre o sangue, e que Ele apreciava o seu valor. Isto tranquilizava o coração. O sangue estava de fora da porta, e o israelita encontrava-se dentro de casa, de modo que não podia ver aquele sangue; mas Deus o via, e isso era perfeitamente suficiente.
A aplicação deste fato à questão da paz do pecador é bem clara. O Senhor Jesus Cristo, havendo derramado o Seu precioso sangue, em expiação perfeita pelo pecado, levou esse sangue à presença de Deus, e fez ali aspersão dele; e o testemunho de Deus assegura o crente de que as coisas estão liquidadas a seu favor – liquidadas, não pelo apreço que ele dá ao sangue, mas, sim, pelo próprio sangue, que tem um tão grande valor para Deus, que, por causa desse sangue, sem mais um jota ou um til, Ele pode perdoar com justiça todo o pecado e aceitar o pecador como um ser perfeitamente justo em Cristo. Como poderia alguém desfrutar paz segura se a sua paz dependesse da sua apreciação do sangue? Seria impossível! A melhor apreciação que o espírito humano possa tomar do sangue estará sempre infinitamente abaixo do seu valor divino; e, portanto, se a nossa paz dependesse da apreciação que lhe devíamos dar, nós jamais poderíamos gozar de uma paz segura, e seria o mesmo que se a buscássemos pelas obras da lei (Rm 9:32; Gl 2:16; 3:10). O fundamento de paz ou há de ser somente o sangue, ou então nunca teremos paz. Juntar-lhe o valor que nós lhe damos, é derrubar todo o edifício do cristianismo, precisamente como se conduzíssemos o pecador ao pé do monte Sinai e o puséssemos debaixo do concerto da lei. Ou o sacrifício de Cristo é suficiente ou não é. Se é suficiente, por que essas dúvidas e temores? As palavras dos nossos lábios confessam que a obra está cumprida, mas as dúvidas e temores do coração declaram que não. Todo aquele que duvida do seu perdão perfeito e eterno, nega, tanto quanto lhe diz respeito, o cumprimento do sacrifício de Cristo.
Há muitas pessoas que fogem da ideia de pôr em dúvida deliberada e abertamente a eficácia do sangue de Cristo, mas que, todavia, não têm uma paz segura. Estas pessoas dizem estar completamente convencidas da suficiência do sangue de Cristo, desde que possam estar certas de ter parte nele – desde que possam ter a verdadeira fé. Há muitas almas preciosas nesta infeliz condição. Ocupam-se mais da sua fé e dos seus interesses do que com o sangue de Cristo e a palavra de Deus. Por outras palavras, olham para o seu íntimo, em vez de olharem para Cristo. Isto não é o procedimento da fé, e, por conseguinte, carecem de paz. O israelita protegido pela umbreira da porta manchada de sangue podia dar a estas almas uma lição muito apropriada – não fora salvo pelo interesse que tinha no sangue nem pelos seus pensamentos acerca dele, mas simplesmente pelo próprio sangue. Sem dúvida, ele tinha uma parte bem-aventurada no sangue; assim como os seus pensamentos também estavam postos nele; porém, Deus não havia dito: “Vendo eu o vosso apreço pelo sangue passarei por cima de vós”. Ah! Não; o SANGUE, com o seu mérito exclusivo e eficácia divina estava posto perante Israel; e se eles tivessem tentado pôr só que fosse um bocado de pão asmo ao lado do sangue, como base de segurança, teriam feito do Senhor mentiroso e negado a suficiência do Seu remédio.
O Sangue de Cristo: o Fundamento da Paz do Crente
A nossa inclinação natural é buscarmos em nós ou nas coisas alguma coisa que possa constituir, junto com o sangue de Cristo, o fundamento da nossa paz. Existe uma falta lamentável de compreensão e clareza sobre este ponto vital, como se verifica pelas dúvidas e receios com que muitos do povo de Deus são afligidos. Somos inclinados a pensar nos frutos do Espírito em nós, em vez de pensarmos na obra de Cristo por nós, como fundamento da nossa paz.
Vamos ver agora o lugar que ocupa a obra do Espírito Santo na cristandade; porém, esta obra nunca é apresentada nas Escrituras como sendo a base em que assenta a nossa paz. O Espírito Santo não fez a paz, mas Cristo. Não é dito que o Espírito seja a nossa paz, mas sim Cristo. Deus não mandou anunciar a paz pelo Espírito Santo, mas por Jesus Cristo (At 10:36; Ef 2:14, 17; Cl 1:20). Jamais poderemos compreender com demasiada nitidez esta diferença importante. E só pelo sangue de Cristo que obtemos a paz, justificação perfeita e justiça divina; ele purifica a nossa consciência, introduz-nos no lugar santíssimo, faz com que Deus seja justificado recebendo o pecador contrito, e dá-nos o direito a todos os gozos, todas as honras e todas as glórias do céu (Rm 3:24-26; Ef 2:13-18; Cl l:20-22; Hb 9:14; 10:19; 1 Pe 1:19; 2:24;1 Jo l:7; Ap 7:14-17).
Ao procurar pôr “o precioso sangue de Cristo” no seu lugar divinamente marcado, espero sinceramente que ninguém suponha que pretendo escrever uma só palavra que possa menosprezar a importância da obra do Espírito Santo. Deus me livre disso! O Espírito Santo revela-nos Cristo, faz-nos conhecê-Lo, permite-nos alegrarmo-nos e alimentarmo-nos d´Ele; é o Espírito Quem toma das decisões de Cristo e no-las mostra. O Espírito é o poder de comunhão, o selo, a testemunha, a garantia, e a unção. Em resumo; todas as benditas operações do Espírito são absolutamente essenciais. Sem Ele não podemos ver, saber, nem ouvir, nem sentir, nem experimentar, nem gozar, nem manifestar nada de Cristo. Tudo isto é bem claro. A doutrina das operações do Espírito é claramente exposta nas Escrituras, e é recebida e compreendida por todo o crente fiel e bem esclarecido.
Todavia, não obstante tudo isto, a obra do Espírito não é o fundamento da paz; porque, se o fosse, não poderíamos desfrutar de uma paz segura até à vinda de Cristo, visto que a obra do Espírito, na Igreja, não terminará, propriamente falando, até então. O Espírito prossegue a Sua obra no crente:”… O mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis” (Rm 8:26), e esforça-Se por nos fazer chegar àquela estatura para a qual havemos sido chamados, a saber: uma perfeita semelhança, em todas as coisas, à imagem do “Filho”; Ele é o único autor de todo o desejo bom, de toda a aspiração santa, todo afeto puro, de toda a experiência divina, e de toda a convicção sã; porém, é evidente que a sua obra em nós não estará completa antes de termos deixado a cena presente deste mundo para tomarmos o nosso lugar com Cristo na glória. Assim como o servo de Abraão não terminou a sua missão a respeito de Rebeca antes de a ter apresentado a Isaque.
Não sucede assim com a obra de Cristo por nós. Essa obra está absoluta e eternamente completa. O Senhor pôde dizer: “Eu glorifiquei-te na terra, tendo consumado a obra que me deste a fazer” (Jo 17:4). E logo depois: “Está consumado” (Jo 19:30). Contudo o Espírito Santo não pode dizer que tem acabado a Sua obra. Como verdadeiro vigário de Cristo na terra, continua trabalhando no meio das diversas influências adversas que rodeiam a esfera da Sua atividade e no coração dos filhos de Deus para os fazer chegar de uma maneira prática e experimental à altura do modelo divinamente eleito. Porém, nunca ensina a alma a depender da Sua obra para ter paz na presença de Deus. A Sua missão é falar de Jesus: não fala de Si Mesmo. “Ele”, diz Cristo,”… há de receber do que é meu e vo-lo há de dar” (Jo 16:14). Se, portanto, é somente pelo ensino do Espírito que alguém pode compreender o verdadeiro fundamento da paz, e se o Espírito nunca fala de Si Mesmo, é evidente que só pode apresentar a obra de Cristo como o fundamento sobre o qual a alma deve descansar para sempre; ainda assim, é em virtude dessa obra que o Espírito faz a Sua morada e cumpre as Suas maravilhosas operações no coração do crente. Ele nos revela Cristo e nos faz capazes de compreendê-lo e gozar d’Ele.
Por isso, o cordeiro da páscoa, como fundamento da paz de Israel, é um tipo admirável e magnífico de Cristo, como fundamento da paz do crente. Nada havia a acrescentar ao sangue posto sobre a ombreira da porta; tão pouco nada mais há a acrescentar ao sangue posto sobre o propiciatório. Os “pães asmos” e as “ervas amargosas” eram coisas necessárias, mas não como formando, no todo ou em parte, o fundamento da paz. Deviam ser usadas no interior da casa e constituíam os sinais característicos da comunhão; porém, O FUNDAMENTO DE TUDO ERA O SANGUE DO CORDEIRO. Foi ele que salvou os israelitas da morte e os introduziu numa nova cena de vida, de luz e de paz, formando o laço de união entre Deus e o Seu povo redimido. Como povo ligado com Deus sobre o fundamento da redenção cumprida, era seu alto privilégio serem colocados debaixo de certas responsabilidades; mas essas responsabilidades não formavam o laço de união, mas eram a consequência natural dele.
A Morte de Cristo na Cruz
Desejo recordar também ao leitor que a vida de obediência de Cristo não é apresentada nas Escrituras como meio de alcançar o nosso perdão. Foi a Sua morte na cruz que abriu as comportas eternas do amor, que, de outra maneira, ficariam fechadas para sempre. Se o Senhor Jesus continuasse até este próprio momento percorrendo as cidades de Israel e “fazendo bem” (At 10:38) o véu do templo continuaria inteiro, para impedir a entrada do adorador na presença de Deus. Foi a Sua morte que rasgou essa misteriosa cortina “de alto abaixo” (Mc 15:38). Foi pelas suas “pisaduras”, e não pela Sua vida de obediência, que nós “fomos sarados” (Is 53:5; 1 Pe 2:24); e foi na cruz que Ele suportou essas “pisaduras”, e não em nenhuma outra parte. As Suas próprias palavras, pronunciadas durante o curso da Sua vida bendita, são mais que suficientes para tomar este ponto claro. “Importa, porém, que eu seja batizado com um certo batismo, e como me angustio até que venha a cumprir-se!” (Lc 12:50).
A que se refere esta declaração senão à Sua morte na cruz como cumprimento desse batismo que abriu uma saída justa através da qual o Seu amor pudesse correr livremente até aos culpados filhos de Adão? De outra vez, o Senhor diz: “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer fica só” (Jo 12:24). Ele era esse precioso “grão de trigo”; e teria ficado para sempre “só”, se, apesar de haver encarnado, não tivesse, por meio da Sua morte sobre o madeiro, tirado tudo aquilo que pudesse impedir a união do Seu povo Consigo na ressurreição. “Mas se morrer, dá muito fruto”.
O leitor nunca poderá considerar com demasiada atenção este assunto tão solene e tão importante. Existem nele dois pontos relativos a esta questão, que convém recordar sempre, a saber: que não podia haver união possível com Cristo senão na ressurreição; e que Cristo sofreu somente na cruz pelos pecados. Não devemos imaginar, de modo nenhum, que Cristo nos uniu a Si por meio da encarnação. Isto não era possível. Como poderia a nossa carne pecaminosa unir-se assim com Ele? O corpo do pecado tinha de ser desfeito pela morte.
O pecado tinha de ser tirado, exigia-o a glória de Deus; todo o poder do inimigo devia ser abolido. Como poderia conseguir-se isto? Somente pela submissão do precioso, imaculado Cordeiro de Deus na morte da cruz. “Porque convinha que aquele, para quem são todas as coisas e mediante quem tudo existe, trazendo muitos filhos à glória, consagrasse pelas aflições, o príncipe da salvação deles” (Hb 2:10). “…Eis que eu expulso demônios, e efetuo curas, hoje e amanhã, e no terceiro dia sou consumado” (Lc 13:32). As expressões “consagrasse”, e “consumado” nas passagens acima mencionadas não se relacionam com Cristo de uma maneira abstrata, porquanto, como Filho de Deus, Ele era perfeito desde toda a eternidade, e no tocante à Sua humanidade foi de igual modo absolutamente perfeito. Contudo, como príncipe da nossa salvação – como Aquele que havia de trazer muitos filhos à glória, dando assim muito fruto – e para associar Consigo um povo redimido, Ele teve de chegar ao “terceiro dia” a fim de ser “consumado” ou “consagrado”; desceu sozinho ao “lago horrível, um charco de lodo”; porém, pôs imediatamente os Seus “pés sobre a rocha” da ressurreição, e associou “muitos filhos” Consigo (Sl 40:1-3); combateu sozinho na batalha; porém, como vencedor poderoso, espalha à Sua roda, em rica profusão, os despojos da vitória, para que nós pudéssemos ajuntá-los e desfrutar deles eternamente.
Além disso, não devemos considerar a cruz de Cristo como um simples incidente numa vida de expiação pelo pecado. A cruz foi o grande e único ato de expiação pelo pecado: “Levando ele mesmo em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro” (1 Pe 2:24). Não os levou em parte alguma mais.Não foi na manjedoura que os tomou sobre Si, nem no jardim do Getsemani, nem no deserto, mas SOMENTE “SOBRE O MADEIRO”. O Senhor nada teve a ver com o pecado, salvo na cruz; e foi ali que Ele inclinou a Sua bendita cabeça e deu a Sua preciosa vida sob o peso acumulado dos pecados do Seu povo. Nem tampouco jamais sofreu às mãos de Deus, salvo na cruz; e ali o Senhor escondeu o Seu rosto d´Ele porque O fez “pecado por nós” (2 Cor 5:21).
Esta série de pensamentos, e as várias passagens a que se faz referência, podem, talvez, ajudar o leitor a compreender mais claramente o poder divino das palavras: “vendo eu sangue passarei por cima de vós”. Era absolutamente necessário que o cordeiro fosse sem mácula, pois de contrário como poderia satisfazer o olhar santo do Senhor? Porém, se o sangue não tivesse sido derramado o Senhor não poderia ter passado por cima do Seu povo, porque” sem derramamento de sangue não há remissão” (Hb 9:22). Teremos outra vez ocasião de meditar sobre este assunto, se o Senhor permitir, de uma maneira mais clara e apropriada nas figuras de Levítico. É um assunto que requer a atenção profunda de todos aqueles que amam o Senhor Jesus Cristo em sinceridade.
A Páscoa: o Centro de Comunhão
Consideremos agora o segundo aspecto da páscoa, como centro ao redor do qual a assembleia estava reunida em tranquila, santa e feliz comunhão. Israel salvo pelo sangue, era uma coisa; e Israel alimentando-se do cordeiro, era outra muito diferente. Estavam salvos somente pelo sangue; porém o objeto em volta do qual estavam reunidos era, evidentemente, o cordeiro assado. Esta distinção não é, de modo nenhum, absurda. O sangue do Cordeiro constitui o fundamento tanto da nossa ligação com Deus como da nossa conexão uns com os outros. É como aqueles que são lavados pelo sangue que somos levados a Deus e ficamos em comunhão uns com os outros. Aparte a expiação perfeita de Cristo não podia haver evidentemente comunhão nem com Deus nem com a assembleia.
Contudo não devemos esquecer o fato que é para um Cristo vivo nos céus que os crentes são reunidos pelo Espírito Santo. Estamos unidos a um Chefe vivo – fomos levados a uma “pedra viva” (1 Pe 2:4). O Senhor é o nosso centro. Havendo achado paz pelo Seu sangue, nós reconhecemos que Ele é o nosso grande centro de reunião e o laço que nos une. “Porque onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mt 18:20). O Espírito Santo é o único que promove a reunião; Cristo é o único objetivo em volta do qual nos reunimos; e a nossa assembleia, assim convocada, deve ser caracterizada pela santidade, de maneira que o Senhor nosso Deus possa habitar entre nós. O Espírito Santo só nos pode reunir para Cristo; não nos pode reunir em torno de um sistema, um nome, uma doutrina ou uma ordenação. Ele reúne para uma Pessoa, e essa Pessoa é Cristo glorificado no céu. É isto que deve dar um caráter peculiar à assembleia de Deus. Os homens podem associar-se sobre qualquer base, em volta de qualquer centro ou com qualquer fim que mais lhes agrade; porém, quando o Espírito Santo promove a associação, fá-lo sobre o fundamento da redenção efetuada e em redor da Pessoa de Cristo, com o fim de edificar um templo santo para Deus (1 Cor 3:16-17; 6:19; Ef 2:21-22; 1 Pe 2.4-5).
Como a Páscoa Deveria Ser Comida
Veremos agora em pormenor os princípios que nos são apresentados na festa da páscoa. A assembleia de Israel, sob o sangue, tinha de ser organizada pelo Senhor de uma maneira digna de Si Próprio. Quanto à sua segurança contra o juízo, como vimos já, nada era necessário senão o sangue; mas quanto à comunhão que resultava desta segurança eram necessárias outras coisas, que não podiam ser descuradas com impunidade.
E, portanto, lemos, em primeiro lugar: “E naquela noite comerão a carne assada no fogo, com pães asmos; com ervas amargosas a comerão. Não comereis dele nada cru, nem cozido em água, senão assado ao fogo” (8-9). O cordeiro em torno do qual a congregação estava reunida, e com o qual fazia festa, era um cordeiro assado – um cordeiro que tinha sido submetido à ação do fogo. Vemos neste pormenor “Cristo a nossa páscoa” expondo-Se a Si Mesmo à ação do fogo da santidade e da justiça de Deus, que acharam n´Ele um objeto perfeito. Ele pôde dizer: “Provaste o meu coração; visitaste-me de noite; examinaste-me e nada achaste; o que pensei, a minha boca não transgredirá” (Sl 17:3).Tudo n´Ele era perfeito. O fogo provou-O e não havia impureza. “A cabeça com os pés e com a fressura”. Quer dizer, o centro da Sua inteligência; a Sua vida exterior com tudo quanto lhe pertencia – tudo foi submetido à ação do fogo, e tudo foi achado perfeito.
A maneira como o cordeiro devia ser assado é profundamente significativa, como o são em pormenor as ordenações de Deus. Nada deve ser passado por alto, porque está cheio de significação – “não comereis dele nada cru, nem cozido em água”. Se o cordeiro tivesse sido comido assim não teria sido a expressão da grande verdade que prefigurava segundo o propósito divino, isto é: que o nosso Cordeiro da páscoa deveria sofrer, na cruz, o fogo da justa ira de Deus; uma verdade, aliás, preciosa para a alma. Não estamos somente sob a proteção eterna do sangue do Cordeiro, como as nossas almas se alimentam pela fé da pessoa do Cordeiro. Muitos de nós enganamo-nos a este respeito. Estamos prontos a contentarmo-nos por estarmos salvos por meio da obra que Cristo cumpriu a nosso favor sem mantermos uma santa comunhão com Ele Próprio. O Seu coração amoroso nunca poderá contentar-se com isto. Ele trouxe-nos para perto de Si para que pudéssemos apreciá-Lo, alimentarmo-nos d´Ele e regozijarmo-nos n´Ele. Cristo apresenta-Se perante nós como Aquele que sofreu o fogo intenso da ira de Deus, a fim de ser, neste caráter maravilhoso de Cordeiro, alimento para as nossas almas redimidas.
Os Pães Asmos
Mas como devia ser comido este cordeiro? “…com pães asmos; com ervas amargosas a comerão”. O fermento é empregado, invariavelmente, através das Escrituras, como símbolo do mal. Nunca é usado nem no Velho nem no NovoTestamento como simbolizando alguma coisa pura, santa ou boa. Assim, neste capítulo, a celebração da festa com “pães asmos” é figura da separação prática do mal como resultado próprio de havermos sido lavados dos nossos pecados no sangue do Cordeiro e a própria consequência da comunhão com os Seus sofrimentos. Nada senão pão perfeitamente livre de fermento podia ser compatível com o cordeiro assado. Uma simples partícula daquilo que era figura destacada do mal teria destruído o caráter moral de toda a ordenação. Como poderíamos nós associar qualquer espécie de mal com a nossa comunhão com Cristo nos Seus sofrimentos? Seria impossível. Todos aqueles que, pelo poder do Espírito Santo, têm compreendido a significação da cruz, não terão dificuldade, pelo mesmo poder, de afastar entre eles o fermento. “Porque Cristo, nossa páscoa, foi sacrificado por nós. Pelo que façamos festa, não com o fermento velho, nem com o fermento da maldade e da malícia, mas com os asmos da sinceridade e da verdade” (1 Cor 5:7-8). A festa de que se fala nesta passagem é a mesma que, na vida e conduta da Igreja, corresponde à festa dos pães asmos. Esta durava “sete dias”; e a Igreja, coletivamente, e o crente individualmente, são chamados para andar em santidade prática, durante os sete dias, ou seja todo o tempo da sua carreira aqui na terra; e isto, note-se, como resultado imediato de haverem sido lavados no sangue, e tendo comunhão com os sofrimentos de Cristo.
O israelita não deitava fora o fermento a fim de ser salvo, mas, sim, porque estava salvo; e se deixasse de o deitar fora, não comprometia com isso a sua segurança por meio do sangue, mas simplesmente a comunhão com a assembleia. “Por sete dias não se ache nenhum fermento nas vossas casas; porque qualquer que comer pão levedado, aquela alma será cortada da congregação de Israel, assim o estrangeiro como o natural da terra” (19). O corte de uma alma da congregação corresponde precisamente à suspensão de um cristão da comunhão, quando acede àquilo que é contrário à santidade da presença de Deus. Deus não pode tolerar o mal. Um simples pensamento impuro interrompe a comunhão da alma; e enquanto a mancha produzida por este pensamento não for tirada pela confissão, baseada na intercessão de Cristo, não é possível restabelecer a comunhão (1 Jo 1:5-10). O cristão sincero regozija-se nisto; e dá louvores em memória da santidade de Deus (Sl 97:12). Ainda que pudesse, não diminuiria, nem por um momento, o estalão: é seu gozo inexcedível andar na companhia d’Aquele que não andará nem por um momento com uma simples partícula de “fermento”.
Graças a Deus, nós sabemos que nada poderá jamais partir em dois o laço que une o verdadeiro crente com Ele. Somos salvos pelo Senhor, não com uma salvação temporária ou condicional, mas “com uma eterna salvação” (Is 45:17). Porém, salvação e comunhão não são a mesma coisa. Muitas pessoas estão salvas, e não o sabem; e muitas, também, estão salvas sem terem o gozo da salvação. É impossível que eu sinta o gozo de estar sob a verga da porta manchada de sangue, se houver fermento em minha casa. É um axioma na vida divina. Oxalá fosse escrito em nossos corações! A santidade prática, embora não seja a base da nossa salvação, está intimamente ligada com o gozo da salvação. O israelita não era salvo pelos pães asmos, mas, sim, pelo sangue; e todavia o fermento tê-lo-ia cortado da comunhão. E assim quanto ao cristão, ele não é salvo por sua santidade prática, mas pelo sangue; porém se entrega ao mal, em pensamento, por palavras, ou ações, não terão verdadeiro gozo da salvação, nem verdadeira comunhão com a pessoa do Cordeiro.
É nisto, sem dúvida, que está o segredo de uma boa parte da esterilidade espiritual e falta de paz constante que se observa entre os filhos de Deus. Não praticam a santidade: não guardam a festa dos “pães asmos” (Ex 23:15). O sangue acha-se sobre as ombreiras da porta, porém o fermento dentro de suas casas impede-os de gozarem a segurança que o sangue concede. A permissão do mal destrói a nossa comunhão, embora não quebre o laço que nos une eternamente a Deus. Aqueles que pertencem à Assembleia de Deus devem ser santos. Não somente foram libertados da culpa e das consequências do pecado, como também da sua prática, do seu poder e do amor do pecado. O próprio fato de haverem sido libertados pelo sangue do cordeiro da páscoa impunha aos israelitas a obrigação de deitarem fora de suas casas o fermento. Não podiam dizer, segundo a linguagem terrível do antinomianismo [1], “agora que estamos livres, podemos conduzir-nos como nos aprouver”. De modo nenhum! Se haviam sido salvos pela graça, era para andarem em santidade. A alma que se aproveita da liberdade da graça divina e da redenção que há em Cristo Jesus para “continuar no pecado” prova claramente que não compreende nem a graça nem a redenção.
A graça não somente salva a alma com uma eterna salvação, como lhe dá uma natureza que se deleita em tudo que pertence a Deus, porque é divina. Nós somos feitos participantes da natureza divina, a qual não pode pecar, porque é nascida de Deus. Andar na energia desta graça é, na realidade, “guardar” a festa dos pães asmos. Não existe “fermento velho” nem “fermento da malícia” (1 Cor 5:8) na nova natureza, porque é nascida de Deus e Deus é santo e “Deus é amor”. Por isso é evidente que não é com o fim de melhorar a nossa velha natureza, que é irreparável, nem tampouco de obtermos a nova natureza, que tiramos de nós o mal, mas, sim, porque temos o mal em nós. Nós temos a vida e, no poder desta vida, tiramos o mal. É somente quando estamos libertados da culpa do pecado que compreendemos ou exibimos o verdadeiro poder da santidade. Tentar consegui-lo por qualquer outro meio é esforço inútil. A festa dos pães asmos só pode ser guardada sob o abrigo perfeito do sangue.
[1] Antinomia: contradição entre duas leis ou princípios; oposição recíproca (Nota do editor).
As Ervas Amargas
Vemos nas “ervas amargosas”, que deviam acompanhar os pães asmos, a significação e mesma utilidade moral. Não podemos desfrutar da participação dos sofrimentos de Cristo sem recordarmos o que tornou necessários esses sofrimentos, e esta recordação deve, necessariamente, produzir um espírito de mortificação e submissão, ilustrado, de um modo apropriado, nas ervas amargosas da festa da páscoa. Se o cordeiro assado representa Cristo sofrendo a ira de Deus em Sua Própria Pessoa na cruz, as ervas amargosas mostram que o crente reconhece a verdade que Ele sofreu por nós. “O castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados” (Is 53:5).
Por causa da leviandade dos nossos corações é bom compreendermos a profunda significação das ervas amargosas. Quem poderá ler os Salmos 6, 22, 38, 69, 88 e 109, sem compreender, em alguma medida, o significado dos pães asmos com ervas amargosas? Uma vida praticamente santa, unida a uma profunda submissão de alma, deve ser o fruto da comunhão verdadeira com os sofrimentos de Cristo, porque é de todo impossível que o mal moral e a leviandade de espírito possam subsistir na presença desses sofrimentos. Mas, pode perguntar-se não sente a alma um gozo profundo no conhecimento que Cristo levou os nossos pecados, e que esgotou, inteiramente, por nós, o cálice da ira justa de Deus? Por certo que é assim. E este o fundamento inabalável de todo o nosso gozo.
Mas, poderemos nós esquecer que foi” por nossos pecados” que Ele sofreu? Poderemos perder de vista a verdade, poderosa para subjugar a alma, que o bendito Cordeiro de Deus inclinou a Sua cabeça sob o peso das nossas transgressões? Certamente que não. Devemos comer o nosso cordeiro com ervas amargosas; as quais, não se esqueça, não representam as lágrimas de um sentimentalismo desprezível e superficial, mas sim as experiências profundas e verdadeiras de uma alma que compreende com inteligência espiritual o significado e efeito prático da cruz.
Contemplando a cruz, descobrimos nela aquilo que elimina a nossa culpa e dá doce paz e gozo. Porém, vemos que ela põe de lado, inteiramente, também, a natureza humana – representa a crucificação da “carne” e a morte do “homem velho” (Rm 6:6; Gl 2:20; 6:14; Cl 2:11). Estas verdades, nos seus resultados práticos, implicam muitas coisas “amargosas” para a nossa natureza: exigem a renúncia própria, a mortificação dos nossos membros que estão sobre a terra (Cl 3:5), e a consideração do “homem velho” como morto para o pecado (Rm 6). Todas estas coisas podem parecer terríveis de encarar; porém, uma vez que se há entrado na casa cujas portas estão manchadas com o sangue veem-se de uma maneira muito diferente. As mesmas ervas que, para o gosto de um egípcio, eram, sem dúvida, tão amargosas, formavam uma parte integral da festa de redenção de Israel. Aqueles que são remidos pelo sangue do Cordeiro, e conhecem o gozo da comunhão com Ele, consideram como uma “festa” tirar o mal e ter a velha natureza no lugar da morte.
A Comunhão e a Paz
“E nada dele deixareis até pela manhã; mas o que dele ficar até pela manhã, queimareis no fogo” (10). Este mandamento ensina-nos que a comunhão da congregação de Israel não devia ser, de modo nenhum, separada do sacrifício sobre o qual se baseava essa comunhão. O coração deve guardar sempre a lembrança viva de que toda a verdadeira comunhão está inseparavelmente ligada com a redenção efetuada. Crer que se pode ter comunhão com Deus sobre qualquer outro fundamento é imaginar que Deus pode ter comunhão com o pecado que há em nós; e pensar em comunhão com o homem, com base em qualquer outro fundamento, é apenas formar uma união impura, da qual nada pode resultar senão confusão e iniquidade. Em suma: é necessário que tudo esteja fundamentado sobre o sangue e inseparavelmente ligado com ele. Este é o significado simples da ordenação que mandava comer o cordeiro da páscoa na mesma noite em que o sangue havia sido derramado. A comunhão não pode ser separada do seu fundamento.
Portanto, que belo quadro nos oferece a congregação de Israel protegida pelo sangue e comendo em paz o cordeiro assado com pães asmos e ervas amargosas! Nenhum temor de juízo, nenhum temor da ira do Senhor, nenhum temor da tempestade terrível da justa vingança, que, à meia-noite, ia varrer, veementemente, toda a terra do Egito! Tudo estava em paz profunda atrás das portas manchadas de sangue. Nada tinham a temer de fora; e nada dentro podia perturbá-los, salvo o fermento, que teria dado um golpe mortal em toda a sua paz e bem-aventurança. Que exemplo para a Igreja! Que exemplo para o cristão! Que Deus nos ajude a contemplarmo-lo com um olhar iluminado e um espírito dócil!
O Vestido de Israel
Contudo, não esgotamos ainda o ensino desta tão instrutiva ordenação. Consideramos a posição de Israel e a comida de Israel, vamos agora falar do estado de Israel.
“Assim, pois, o comereis: Os vossos lombos cingidos, os vossos sapatos nos pés, e o vosso cajado na mão; e o comereis apressadamente; esta é a Páscoa do Senhor” (11). Deviam comer a páscoa como um povo que estava preparado para deixar atrás de si o país da morte e das trevas, da ira e do juízo, e marchar em demanda da terra da promissão – a herança que lhes estava reservada. O sangue que os havia preservado da sorte dos primogênitos do Egito era também o fundamento da sua libertação da escravidão do Egito; e agora só lhes restava porem-se em marcha e andar com Deus para a terra que manava leite e mel. É verdade que não haviam ainda atravessado o Mar vermelho; tampouco haviam andado o “caminho de três dias”. Contudo, eram já, em princípio, um povo redimido, um povo separado, um povo de peregrinos, um povo esperançoso, um povo que dependia de Deus; e era preciso que os seus trajos estivessem de harmonia com a sua presente condição e o destino futuro. Os lombos cingidos indicavam uma separação rigorosa de tudo aquilo que os rodeava e mostravam que eles eram um povo preparado para servir. Os pés calçados mostravam que estavam prontos a abandonar o seu estado presente; enquanto que o cajado era o emblema significativo de um povo de peregrinos numa atitude de apoio em qualquer coisa que estava fora de si mesmos. Que característicos preciosos! Prouvera a Deus que fossem vistos em cada membro da família dos Seus remidos.
Prezado leitor, meditemos “estas coisas (l Tm 4:15). Pela graça de Deus, experimentamos a eficácia purificadora do sangue de Jesus; neste estado é nosso privilégio alimentarmo-nos da sua adorável Pessoa e deleitarmo-nos nas Suas “riquezas incompreensíveis” (Ef 3:8), tendo parte nos Seus sofrimentos e sendo feitos “conforme à sua morte” (Fp 3:10). Mostremo-nos, pois, com pães asmos e ervas amargosas, os lombos cingidos, os sapatos nos pés, e o cajado na mão. Numa palavra: que sejamos notados como um povo santo, um povo crucificado, vigilante e diligente – um povo que mancha, claramente, ao encontro de Deus no caminho para a glória – “destinado para o reino”. Que Deus nos conceda penetrar na profundidade e no poder de todas estas coisas; de forma que não sejam apenas teorias, ou princípios de conhecimento bíblico e simples interpretação; mas, sim, realidades vivas, divinas, conhecidas por experiência e manifestadas na vida, para glória de Deus.
Quem Podia Comer a Páscoa?
Terminaremos os nossos comentários sobre esta parte do capítulo passando por alto os versículos 43 a 49. Estes versículos ensinam-nos que, embora fosse privilégio de todo o verdadeiro israelita comer a páscoa, nenhum estrangeiro incircunciso podia participar dela. “Nenhum filho de estrangeiro comerá dela… toda a congregação de Israel o fará”. A circuncisão era necessária antes que a páscoa pudesse ser comida. Por outras palavras: é preciso que a sentença de morte seja lavrada sobre a natureza antes de nos podermos nutrir de Cristo inteligentemente, quer seja como o fundamento de paz ou o centro de união. A circuncisão tem o seu antítipo na cruz.
Só os varões eram circuncidados. A mulher era representada no varão. Assim, na cruz, Cristo representou a Sua Igreja, e, por isso, a Igreja está crucificada com Cristo; contudo, vive pela vida de Cristo, conhecida e manifestada na terra pelo poder do Espírito Santo. “Porém, se algum estrangeiro se hospedar contigo e quiser celebrar a Páscoa ao Senhor, seja-lhe circuncidado todo o macho, e então, chegará a celebrá-la, e será como o natural da terra; mas nenhum incircunciso comerá dela” (48). “Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus” (Rm 8:8).
A ordenação da circuncisão formava a grande linha de demarcação entre o Israel de Deus e todas as nações que havia à face da terra; e a cruz do Senhor Jesus Cristo forma a linha da demarcação entre a Igreja e o mundo. Fosse qual fosse a posição que um homem ocupava ou as vantagens que tivesse não podia ter parte em Israel até que se submetesse à operação do corte da sua carne. Um mendigo circuncidado estava mais perto de Deus que um rei incircunciso. Assim também agora não pode haver participação nos gozos dos remidos de Deus, senão pela cruz de nosso Senhor Jesus Cristo; e essa cruz abate todas as pretensões, derriba todas as distinções e une todos os remidos numa congregação santa de adoradores lavados pelo sangue. A cruz forma uma barreira tão elevada e uma defesa de tal modo impenetrável que nem um sequer átomo da terra ou da velha natureza pode atravessá-la para se misturar com “a nova criação”. “E tudo isso provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo” (2 Cor 5:18).Porém, na instituição da páscoa não só foi sustentado o princípio de separação entre Israel e os estranhos, como a unidade de Israel foi também claramente posta em vigor. “Numa casa se comerá; não levarás daquela carne fora da casa, nem dela quebrareis osso” (46). Existe nesta passagem uma figura tão formosa quanto o podia ser de “um corpo e um Espírito” (Ef 4:4). A Igreja de Deus é uma só. Deus contempla-a como tal, sustém-na como tal, e manifestá-la-á como tal à vista de anjos, homens e demônios, apesar de tudo quanto se tem feito para pôr obstáculos a essa unidade santa. Bendito seja Deus, a unidade da Sua Igreja está tão bem guardada como o é a sua justificação, aceitação e segurança eterna. “Ele guarda todos os seus ossos; nem sequer um deles se quebra” (Sl 34:20). “Nenhum dos seus ossos será quebrado”(Jo 19:36). Apesar da rudeza e zelo da soldadesca romana, e não obstante todas a influências hostis que têm estado em operação, através dos séculos, o corpo de Cristo é um só e a sua unidade nunca poderá ser quebrada. “HÁ UM SÓ CORPO E UM SÓ ESPÍRITO” (Ef 4:4); e isto, além disso, aqui, no mundo. Feliz daqueles que têm recebido fé para reconhecer esta preciosa verdade e fidelidade para a porem em prática, nestes últimos dias, não obstante as dificuldades quase insuperáveis que acompanham a sua profissão e prática! Creio que Deus reconhecerá e honrará os tais.
Que o Senhor nos guarde do espírito da incredulidade que nos induziria a julgar por vista, em vez de julgarmos à luz da Sua Palavra imutável!
Charles Henry Mackintosh