“Salvou os outros, a Si mesmo não pode salvar-se” (Mt 27.42) – Esse foi o escárnio dirigido ao Cristo que morria, quando ficou pendurado em Sua cruz naquele “distante monte verde”. Palavras de deboche, mas incorporando a própria essência da vida e morte do Filho de Deus, a própria essência dos tratos de Deus com o mundo – a própria essência do Calvário. “Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito” (Jo 3.16).
Para salvar os outros – pecadores, rebeldes, inimigos – o Pai não pode salvar a Si mesmo de enviar, do Seu seio, o Filho do Seu amor. Para salvar os outros, o Filho não pode salvar a Si mesmo, mas deve derramar Sua alma na morte e, assim, ver Sua semente e dividir o despojo com os poderosos (Is 53.12 – EC). Para salvar os outros, o Espírito Santo não pode salvar a Si mesmo da angústia, à semelhança da tristeza e angústia do Filho no Getsêmani, em Sua entrada no coração dos que uma vez afundaram-se no pecado e são frequentemente obstinados e desobedientes aos clamores do Filho.
Salvou os outros, a Si mesmo não pode salvar-se. Essa expressão engloba, em poucas palavras, toda a história do caminho do Deus-Homem na terra; desse modo, Ele manifestou ao homem caído a expressa imagem ou caráter (conforme o grego, Hb 1.3) do Pai no céu. “Nisso se manifestou o amor de Deus em nós: em haver Deus enviado Seu Filho unigênito (…) para vivermos” (1 Jo 4.9). “Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a Sua vida por nós” (1 Jo 3.16). O caráter de Deus foi revelado em Seu Filho; a natureza divina foi manifestada Naquele que era a “expressão exata do Seu ser”. Resumindo: salvar os outros é próprio de Deus, recusando-se salvar a Si mesmo.
Salvou os outros, a Si mesmo não pode salvar-se. Isso não significa que Ele não tivesse o poder e os recursos para salvar a Si mesmo. Pelo contrário, Ele tinha o poder, mas não iria usá-lo! Salvar os outros quando isso não custa nada a você é algo possível até para criaturas caídas. Mas salvar os outros e recusar-se a salvar a si mesmo quando você tem condições para fazê-lo é divino. Ele não pode salvar a Si mesmo porque é contrário à natureza divina salvar o ego à custa da perda dos outros.
A Si mesmo não pode salvar-se. Palavras impressionantes, pronunciadas como deboche e pelos lábios de pecadores que crucificaram o seu Salvador. Mesmo na tentação no deserto (Mt 4.1), essa lei da Sua vida foi manifestada; ali Ele não se alimentou, porque não podia alimentar a Si mesmo, mas mais tarde, alimentou os outros (14.13-21). Ele podia utilizar todo o poder da Divindade para abençoar os outros, para alimentar os outros, para salvar os outros; mas para Si mesmo, nada! Não usou os recursos divinos para salvar a Si mesmo num momento de fome aguda, para ter uma palavra menos de desprezo ou um golpe menos do açoite, e ser apenas golpeado com a mão. Assim devem ser os filhos de Deus conformados à imagem do Filho, para manifestar Seu caráter divino, “como o Filho revelou a expressa imagem do Pai”.
“Salvou os outros, a Si mesmo não pode salvar-se” é a lei da vida de Jesus e deve ser a lei da vida de cada seguidor do Cordeiro. Ter o poder para salvar a si mesmo e recusar-se a usá-lo, porque, se o usasse, os outros não poderiam ser salvos, é a vida de Jesus manifestada naqueles que Ele redimiu. Derramar sua vida pelos outros que o rejeitam e o julgam incorretamente, quando você não precisaria fazê-lo: isto é o Calvário! Ter o poder para salvar a você mesmo e não usá-lo, por significar perda para os outros: isto é o Calvário! Ser usado para libertar almas do poder de Satanás e, depois, colocar-se, como Cristo o fez, à aparente mercê da “vossa hora e o poder das trevas” (Lc 22.53): isso é verdadeiramente o Calvário!
Ó filho de Deus, Ele salvou os outros, mas a Si mesmo não pode salvar! Este deve ser o caminho para você em cada momento de tensão dolorida e tempestade para os seguidores do Cordeiro. Deus tem usado você para libertar os outros, e talvez você esteja desejando saber por que você mesmo não é libertado das lutas por fora e temores por dentro (2 Cor 7.5) que estão assediando sua própria vida. Outros vêm a você em extrema necessidade, e, com seu próprio coração partido, você é solicitado a dar do seu próprio vazio e com a perda daquilo que parece ser sua própria necessidade. Você é solicitado a clamar pela vitória pelos outros que estão em angústia, quando você mesmo parece estar em angústia muito maior. No Calvário foi assim! Aquele que havia libertado outros do poder de Satanás foi entregue, como vimos, à fúria total do poder das trevas. Aquele que havia realizado obras poderosas de Deus pelos outros, jaz em impotência e fraqueza nas mãos dos homens. Sim, isso é o Calvário. Vida, poder, bênção e libertação para os outros, e nada para você mesmo, a não ser permanecer na vontade de Deus e aceitar das mãos do Pai tudo o que for do Seu agrado permitir que chegasse a você.
Salvou os outros – todos os recursos em Deus e o poder de Deus para os outros! A Si mesmo não pode salvar-se – impotência, vacuidade, sofrimento, conflito e morte para Si mesmo. Essa foi a marca registrada da mais elevada manifestação do espírito do Cordeiro vista nos heróis da fé, conforme o registro de Hebreus 11; e entre esses heróis da fé, que alcançaram o lugar mais elevado nesse rol de honra, estavam mulheres que foram abatidas à morte, não aceitando o livramento, a fim de que pudessem alcançar uma melhor ressurreição (verso 35) . Sim, essa é a marca registrada mais elevada do espírito do Cordeiro. Subjugar reinos, obter promessas, fechar a boca dos leões, extinguir a violência do fogo, escapar ao fio da espada, tornar-se poderoso na guerra (verso 34) – tudo como resultado de fé num Deus Onipotente -: isso é poder; mas ser torturado e não aceitar ser resgatado (verso 35) – isso é o Calvário. A escolha voluntária para sofrer e morrer, ao invés de salvar a si mesmo, é algo mais elevado do que a fé para conquistar e subjugar.
E, se não estamos enganados, esse é o caminho mais elevado colocado diante de todos aqueles que avançam em direção ao alvo da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus no tempo presente. “Nova evidência de que Deus está operando poderosamente para levantar e estabelecer um povo realmente conformado à morte de Cristo veio a mim esta manhã – um assunto muito mais sério e poderoso do que a concessão de dons”, escreveu um ministro de grande experiência e em condições de ver e conhecer de forma especial a tendência da obra do Espírito. Sim, Deus “está operando poderosamente em minha direção”, dirão muitas almas profundamente provadas, quando pensam em seu próprio caso e nos caminhos estranhos e especiais nos quais estão sendo estranhamente conduzidas, a fim de poder conhecer o caminho da cruz e entrar no espírito do Cordeiro.
Dois caminhos parecem estar claramente abertos diante da Igreja de Deus, com uma escolha para cada membro do Corpo de Cristo, que tem resultados eternos. Há a conformidade ao Cordeiro, que já mencionamos antes, em relação à qual necessitamos de visão divina para discernir sua beleza e glória celestiais. Por outro lado, o caminho de salvar a nós mesmos do sentido pleno de tudo o que significa seguir o Cordeiro na terra, com a consequente perda da glória de participar do trono do Cordeiro. Porque está escrito: “Se com Ele sofremos, com Ele reinaremos” (2 Tm 2.12 – BJ); “se com Ele sofremos, com Ele também seremos glorificados” (Rm 8.17). O sofrimento de Cristo foi totalmente voluntário, pois Ele disse: “Eu dou a minha vida (…) Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou” (Jo 10.17, 18). E no caminho da conformidade à Sua morte, muitos que escolheram seguir o Cordeiro onde quer que Ele vá (Ap 14.4), encontram-se no caminho da cruz, o que poderia ser evitado, se quisessem! Eles poderiam aceitar o livramento e salvar a si mesmos, mas perderiam a superior ressurreição. Isso é, na verdade, o espírito do Cordeiro morto, suprido pela graça de Deus a pecadores redimidos. Tudo o que é da terra, nas vozes dos amigos e do mundo, e da própria vida deles clama: “Salva a Ti mesmo e a nós”. Mas o Espírito de Cristo no interior deles os conduz no caminho do Cordeiro, pois, como Ele, não podem salvar a si mesmos. Ver um caminho de escape do sofrimento e, por sua própria livre escolha, decidir recusar-se a entrar por ele, por significar a salvação deles mesmos: isto é digno de reconhecimento diante de Deus, pois é o caminho mais próximo da semelhança com Aquele a respeito do Qual foi dito em tom de escárnio:
“Salvou os outros, a Si mesmo não pode salvar-se”.
Jessie Penn-Lewis