“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo” (Ef 1:3).
Já temos visto que muitos erram em todo o seu pensamento sobre o cristianismo porque partem de um ponto de vista errado. Eles têm uma concepção materialista do cristianismo, e não se dão conta de que a fé cristã é positivamente extra mundo. A consequência é que eles ficam constantemente em dificuldade. Há muitos que dizem que não podem ser cristãos por causa do estado do mundo e das coisas que estão acontecendo nele. O argumento deles é que, se Deus é amor, que promete abençoar todo aquele que O buscar, os cristãos não deveriam sofrer – não deveriam adoecer ou sofrer adversidade. Temos aí um claro exemplo daqueles mal-entendidos resultantes da não percepção de que as bênçãos advindas ao cristão são “espirituais” e estão “nos lugares celestiais“.
Mas devemos examinar este assunto de maneira mais minuciosa. Nem nesta Epístola, nem em qualquer outro lugar, o apóstolo sobe a maiores alturas do que neste versículo particular, onde ele nos eleva aos “mais altos céus” e nos mostra o ponto de vista cristão em sua maior glória e majestade. De muitas maneiras a expressão “nos lugares celestiais” é a chave desta Epístola, em particular, onde ela ocorre não menos que cinco vezes. Acha-se neste versículo 3, e também no versículo 20 deste capítulo primeiro, onde Paulo escreve sobre o fato de Cristo estar assentado à mão direita de Deus nos lugares celestiais. Alguns comentaristas não gostam da palavra “lugares”, pois acham que ela tende a localizar o conceito. Contudo, não basta dizer “celestiais”. Vê-se a mesma expressão também no capítulo 2, versículo 6, e no versículo 10 do capítulo 3. A última referência é no versículo 12 do capítulo 6, na declaração: “Não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas sim contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais”. É óbvio que o apóstolo não repetiria esta frase, se ela não tivesse um significado real e profundo; e ela é, repito, uma das apresentações mais gloriosas da verdade cristã. Se tão somente pudéssemos enxergar como nós estamos em Cristo nos lugares celestiais, isso faria uma revolução em nossas vidas, e mudaria toda a nossa maneira de ver.
Ao empregar a frase “nos lugares celestiais”, o apóstolo emprega uma expressão descritiva que, era muito popular no século primeiro. Era uma concepção judaica típica. Ele faz uso da mesma ideia na Segunda Epístola aos Coríntios, capítulo 12, onde nos dá um pouco de biografia, e no versículo 2 diz: conheço um homem em Cristo que há catorze anos (se no corpo não sei, se fora do corpo não sei: Deus o sabe) foi arrebatado até o terceiro céu”. A expressão “terceiro céu” é exatamente idêntica a “lugares celestiais”, nos termos em que é empregada nesta Epístola aos Efésios. Segundo essa concepção, o primeiro céu é o que se pode descrever como o céu atmosférico , onde ficam as nuvens. O segundo céu pode ser descrito como o céu estelar; é aquela parte das regiões superiores onde estão colocados o sol, a lua e as estrelas. Essa parte está muito mais distante de nós do que as nuvens ou o céu atmosférico, e os números astronômicos utilizados pelos cientistas lembram-nos que os céus estelares estão a uma tremenda distância de nós.
Contudo, há um “terceiro céu”, que não se trata do céu atmosférico nem do céu estelar. Trata-se da esfera em que Deus , de maneira muito especial, manifesta a Sua presença e a Sua glória. É também o lugar em que o Senhor Jesus Cristo, em Seu corpo ressurreto, habita. Além disso, é o lugar em que os “principados e potestades” aos quais o apóstolo se refere no capítulo 3 têm a sua habitação; na verdade, é o lugar a respeito do qual lemos no capítulo 5 de Apocalipse, onde a glória de Deus se manifesta. Lemos ali a respeito de Cristo em Seu corpo glorificado, “um Cordeiro, como havendo sido morto”, cios brilhantes espíritos angélicos, dos animais c dos “vinte e quatro anciãos”. Todos esses dignitários angélicos e poderes têm sua habitação ali. E, ainda mais maravilhoso e glorioso, ali também estão “os espíritos dos justos aperfeiçoados”. Os que morreram no Senhor, “em Cristo”, estão ali com – Cristo neste momento. Estão nos “lugares celestiais”, no “terceiro céu”, naquele domínio em que Deus manifesta algo da sua glória eterna.
Agora podemos passar a considerar o sentido da expressão “nos lugares celestiais” à luz destas cinco referências a ela nesta Epístola aos Efésios. O Senhor Jesus Cristo, ressurreto dentre os mortos, já está naquele domínio em Seu corpo glorificado, como disso nos faz lembrar o versículo 20. O que, portanto, o apóstolo está dizendo é que o que temos, e tudo o que gozamos corno cristãos, vem de Cristo, que está naquela esfera, e por meio d’Ele. Mais que isso, pelo novo nascimento, por nossa regeneração, somos ligados ao Senhor Jesus Cristo, e nos tornemos partícipes de Sua vida e de todas as bênçãos que d’Ele vêm. O ensino do apóstolo é que, nos estamos “em Cristo”. Somas parte de Cristo; estamos tão ligados a Ele por esta união orgânica mista que tudo quanto lhe, seja próprio, nos é próprio espiritualmente. Assim como Ele está nos lugares celestiais, assim também nós estamos nos lugares celestiais. As bênçãos que gozamos como cristãos são bênçãos “nos lugares celestiais” porque elas toquem de Cristo que lá está. É minha opinião que aqui vemos mais claramente do que em qualquer outro lugar a profunda mudança a que alguém se sujeita por tornar-se cristão. Não se trata de uma mudança superficial, não é apenas que vestimos uma roupa de respeitabilidade ou decência ou moralidade, não é um melhoramento na superfície ou uma mudança temporal. É tão profunda como o fato de que somos tomados de um reino e colocados em outro. Assim corno Deus tirou o Senhor Jesus Cristo do túmulo, e dentre os mortos, e O colocou à Sua mão direita nos lugares celestiais, assim o apóstolo ensina que a mudança pela qual passamos em nosso novo nascimento e regeneração leva a esta correspondente mudança em nós, a fim de que os cristãos efésios possam entender isso mais completamente que Paulo ora por eles: para que “tendo iluminados os olhos do vosso entendimento… saibais qual seja a esperança da sua vocação, e quais as riquezas da glória da sua herança nos santos; e qual a sobre-excelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a operação da força de seu poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dos mortos, e pondo-o a sua direita nos céus” (VA: “nos lugares celestiais”). Essa, e nada menos que essa, é a verdade ‘acerca do cristão. Dada a limitação das nossas capacidades, em consequência da nossa condição finita e do nosso pecado, achamos muito difícil apossar-nos destas coisas; mas tudo o que esta Epístola aos Efésios procura fazer é concitar-nos a lutar para que tornemos posse delas, a orar pedindo iluminação para podermos entender.
A dificuldade surge pelo fato de que o cristão é, necessariamente, num certo sentido, dois homens em um ao mesmo tempo. É óbvio (não é?) que os cristãos simplesmente não podem entender nada destas questões O apóstolo expõe isso claramente no capítulo 2 da Primeira Epistola aos Coríntios, onde ele descreve a diferença entre o homem “natural” e o “espiritual” Ele escreve “O que é espiritual discerne bem tudo, e ele de ninguém é discernido”. “Discernir” (VA: julgar) significa entender. O cristão, diz Paulo, entende todas as coisas, mas ele mesmo não é entendido por ninguém Ele é, por definição, um homem que o incrédulo não tem a mínima possibilidade de entende r. Portanto, um dos melhores testes que podemos aplicar a nós mesmos e descobrir se as pessoas acham difícil entender-nos porque somos cristãos Se a afirmação de Paulo é verdadeira, o cristão deve ser um enigma para todos os não cristãos. Aquele que não é cristão acha que há algo estranho quanto ao cristão, este não é como os outros, é diferente É como tem que ser, por definição, porque o cristão tem esta vida celestial e pertence a este domínio celestial. Entretanto, ele não somente escapa ao entendimento do não cristão: num sentido é certo dizer que ele próprio não pode entender a si mesmo. Ele tornou-se um problema para si próprio, por causa dessa nova natureza que há nele. “Vivo, não mais eu, mas Cristo vive em num” (Gl 2:20). Eu sou eu e não sou eu.
Analisemos isto um pouco mais. O cristão tem duas naturezas. Num sentido ele ainda é um homem natural. O que por nascimento ele herdou de seus antepassados, ele ainda possui. Ele ainda está neste mundo e nesta vida, como todos os demais. Ele tem que viver, tem que ganhar a vida e fazer várias coisas da mesma maneira que os outros. Ele ainda vive a vida secular, a vida “normal”, a vida vivida em termos do intelecto e do entendimento. Ele estuda vários assuntos e, como todos os demais interessa-se pelas condições políticas e sociais; ele tem que comprar e vender como todos os outros. Ele pode estudar artes, pode interessar-se por música. Essa é a sua vida “normal”, sua vida secular, sua mentalidade, coisas que ele compartilha com os não cristãos. Na verdade, podemos ir além e dizer que ele ainda experimenta falhas em vários aspectos, ele tem consciência do pecado Por vezes ele se olha e indaga se é diferente das outras pessoas, parece idêntico a elas. Ele falha, faz coisas que não devia fazer, ainda se sente culpado do pecado. Continua parecido com o homem natural. Se vocês tiverem apenas uma ideia superficial do cristão, poderão muito bem chegar à conclusão de que na verdade não há diferença alguma entre ele e qualquer outra pessoa. Mas isso não está certo, pois essa não é toda a verdade sobre ele. Em acréscimo a tudo isso, há outra natureza, há uma outra coisa que ocorre; e é esta outra coisa que faz do cristão um enigma para os outros e para si mesmo Num sentido ele é um homem natural, porém ao mesmo tempo é um homem espiritual O apóstolo contrasta o homem natural com o homem espiritual, porque o que há de grande acerca do cristão é que ele tem esta natureza espiritual adicional Esta é a característica principal, e é o furor dominante em sua vida O cristão, mesmo na pior condição, sabe que é diferente do incrédulo.
Expondo isso em sua expressão mais baixa, o cristão continua sendo culpado de pecado, mas o cristão não aprecia o pecado como apreciava, e como os outros apreciam. Há algo diferente até quanto ao seu pecado, graças a este princípio espiritual que há nele, a esta natureza espiritual, a esta consciência de uma nova vida, de uma vida que pertence a uma ordem diferente e a uma esfera diferente. É muito difícil expor isto em palavras; há algo evasivo nisso tudo e, todavia, há algo que o cristão sabe. É essencialmente subjetivo, embora resulte da fé na verdade objetiva. Noutras palavras, a menos que você sinta que é cristão, fica uma dúvida se você o é. A menos que lhe tenha acontecendo algo existencialmente, experimentalmente, a menos que lhe tenha acontecido algo na esfera da sua sensibilidade, você não é cristão.
Muitos no presente correm o perigo de considerar a fé de maneira tão puramente objetiva que pode tornar-se antibíblica. Eles dão toda a sua ênfase à subscrição de certos credos e à aceitação de certas formulações da verdade Mas isso pode não passar de assentimento intelectual. Ser cristão significa que Deus, mediante o Espírito, está operando em sua alma, deu-lhe um novo nascimento e colocou dentro de você um principio da vida celestial. E você tem que saber disso. Só você pode sabê-la. Você, necessariamente, tem consciência deste algo mais, desta diferença, deste poder que está agindo em você, deste elemento perturbador, como se pode provar. Você necessariamente tem consciência até de um novo conflito em sua vida. A pessoa não cristã é somente uma pessoa; a pessoa cristã é duas. Para usar a terminologia escriturística, o não cristão não é nada senão o “velho homem”. O cristão, porém, tem também um “novo homem” E entre o novo homem e o velho não há acordo; há uma tensão entre o velho homem e o novo, e há conflito – “A carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a carne” (Gl 5.17). O próprio estágio inferior da verdadeira experiência cristã é aquele estágio no qual você está cônscio justamente desse conflito. Você ainda não sabe o que é ser “cheio da plenitude de Deus”; você sabe pouco, se é que sabe algo, de uma comunhão pessoal e direta com Cristo; mas sabe que há algo em você que o inquieta, sabe que há, por assim dizer, outra pessoa em você, que há um conflito, que há quase que esta personalidade dual, esta dualidade por assim dizer. Estou tentando comunicar o fato da consciência que o cristão tem das duas naturezas. Ele está cônscio das duas naturezas porque ele está “em Cristo”, e Cristo está “nos lugares celestiais”. Ele recebeu esta vida de Cristo, e tudo o que ele tem deriva de Cristo; e isso é tão diferente de tudo mais, que o cristão tem consciência de que tem duas naturezas.
Pois bem, não é só certo dizer que o cristão tem duas naturezas; também tem dois interesses, porque vive em dois mundos. O cristão é cidadão de dois mundos ao mesmo tempo. Pertence a este mundo, tem nele a sua existência; e, contudo, sabe que pertence a outro mundo tão definidamente como a este. Isso é consequência inevitável do fato de que ele tem duas naturezas. Daí dizer o apóstolo que o cristão é alguém que foi transferido “da potestade das trevas para o remo do Filho do seu amor” (Cl 1:13) – ele foi transferido, transportado, e recebeu uma nova posição. E essa mudança é, num sentido, paralela a que se deu com o próprio Cristo. Deus manifestou o Seu poder quando ressuscitou a Cristo dentre os mortos e O colocou à Sua direita nos lugares celestiais. Com efeito, algo similar aconteceu com todos os cristãos. Não ficamos onde estávamos, fomos transportados, fomos transferidos de um lugar, de um domínio para outro, de um reino para outro, de um mundo para outro. Este é um elemento vital da experiência total do cristão.
Não significa que o cristão sai do mundo. Historicamente muitos cristãos caíram nesse erro, e diziam: visto que sou cristão não pertenço ao Estado. Há cristãos que dizem que não se deve votar nas eleições parlamentares, e que não se deve ter nenhum interesse pelas atividades do mundo. Mas isso não se harmoniza com o ensino das Escrituras, pois o cristão ainda é cidadão deste mundo e pertence à esfera secular. Ele sabe que este mundo é de Deus, e que nele Deus tem um propósito para ele. Ele sabe que é cidadão do país a que pertence, e está ciente de que tem as suas responsabilidades. A verdade é que, desde que é cristão, terá que ser um cidadão melhor do que ninguém no território. No entanto, ele não para aí, ele sabe que também é cidadão de outro reino, de um reino que não se pode ver, um reino que não é deste mundo. Todavia, ele está neste mundo, e o outro reino colide com ele. O cristão sabe que pertence a ambos os remos Assim, isto vem a ser um teste da nossa profissão de fé como cristãos. Sabemos das exigências que a nossa terra natal nos faz, e também sabemos das exigências do reino celestial. Nosso desejo é não transgredir as leis da terra, e maior ainda é o nosso desejo de não ofender o “Rei eterno, imortal, invisível” (1 Tm 1:17) que habita aquele outro reino e que é o Senhor. O apóstolo prossegue e diz, porém, que não somente pertencemos àquele domínio celestial; no versículo 6 do capítulo 2 de Efésios ele faz uma declaração que soa tão espantosa quanto impossível Diz ele que Deus “nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus “. Significa nada menos que eu e você, em Cristo, estamos assentados neste momento em lugares celestiais. Estamos lá; ele não está dizendo que vamos estar lá, e sim, que estamos lá. Mas como se pode conciliar isso com o fato de que ainda estamos neste mundo limitado pelo tempo, com toda a sua confusão e contradição? Como podem estas duas coisas ser verdadeiras ao mesmo tempo ? A princípio soa paradoxal; e, contudo, é gloriosamente verdadeiro quanto ao cristão. Espiritualmente estou neste momento no céu, “em Cristo”, num sentido como sempre estarei; mas o meu corpo continua vivendo na terra, ainda sou deste mundo limitado pelo tempo, O meu espírito foi redimido em Cristo, como sempre redimido será; porém o meu corpo ainda não foi redimido, e eu, com todos os outros cristãos, estou “esperando a adoção, a saber, a redenção do nosso corpo” (Rm 8:23). Ou, como Paulo o expressa, escrevendo aos Filipenses, a nossa situação neste mundo limitado pelo tempo é que “a nossa cidade está nos céus, donde também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme o seu corpo glorioso, segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si todas as coisas” (3:20-21). Em meu espeto já estou lá, mas ainda estou na terra na carne e no corpo. O aspecto glorioso desta verdade é que, devido eu estar “em Cristo”, o meu corpo vai ser emancipado; a adoção, a redenção dos nossos corpos vai acontecer; virá o dia em que eu estarei nos lugares celestiais, não somente em meu espírito, mas também em meu corpo Isso é absolutamente certo. Seremos transformados, os nossos corpos serão glorificados, e estaremos sem nenhum pecado, culpa ou ruga ou mancha. Em espírito e no corpo estaremos com Ele e O veremos como Ele é; na totalidade do nosso ser e das nossas personalidades estaremos naqueles lugares celestiais.
David Martyn Lloyd-Jones