“E Deus viu que a maldade do homem era grande na terra e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era somente má, continuamente” (Gênesis 6.5).
Quão largamente diversa é esta representação da natureza humana, da pintura formosa que os homens têm traçado em todas as eras! Os escritos de muitos dentre os antigos são prodígios de alegres descrições da dignidade do homem, que alguns pintam com todas as virtudes e, felicidade em sua contextura, ou, pelo menos, inteiramente ao seu alcance, sem precisar submeter-se a qualquer outro ser; sim, como suficiente em si mesmo, capaz de viver por sua própria conta e pouco inferior ao próprio Deus.
Nem só os pagãos, homens que eram guiados em suas pesquisas por pouco mais do que a obscura luz da razão, mas igualmente muitos dos que trazem o nome de Cristo, e a quem foram confiados os Oráculos de Deus, falaram tão pomposamente a respeito da natureza do homem, como se este fora toda inocência e perfeição. Exposições dessa espécie: são particularmente abundantes no presente século; e talvez em nenhuma outra parte do mundo mais do que em nosso país. Aqui não poucas pessoas de forte entendimento, assim como de extensa erudição, empregam suas aptidões máximas no mostrar o que chamam “o lado amável da natureza humana“. E deve-se reconhecer que, se for justa sua apreciação do homem, este ainda será “um pouco menor do que os anjos”, ou como as palavras mais literalmente podem ser traduzidas: “um pouco menos do que Deus“.
Será para espantar que essas exposições sejam tão prontamente recebidas pela generalidade dos homens? Quem não será facilmente persuadido apensar favoravelmente de si mesmo?
Consequentemente, os escritos dessa espécie são os mais universalmente lidos, admirados, aplaudidos. E inumeráveis são os prosélitos que eles têm feito, não somente em meio do mundo leviano, mas também no mundo culto. Assim, está agora bastante fora de moda falar de modo contrário, isto é, dizer alguma coisa em desabono da natureza humana, geralmente tida, à parte umas poucas enfermidades, na conta de muito inocente, sábia e virtuosa!
Mas, enquanto isso, que devemos fazer de nossas Bíblias? Porque elas jamais concordarão com isto! Aquelas páginas, conquanto acariciem a carne e o sangue, são profundamente irreconciliáveis com a narrativa bíblica. As Escrituras asseveram que “pela desobediência de um homem todos os homens foram constituídos pecadores”; que “em Adão todos morreram”, morreram espiritualmente, perderam avida e a imagem de Deus: que, pecador decaído, Adão então “gerou um filho à sua própria semelhança” – e nem era possível que o gerasse segundo outra qualquer imagem, porque, “quem pode tirar uma coisa pura de uma coisa-impura?” – que, consequentemente, nós, como quaisquer outros homens, estamos por natureza “mortos em delitos e pecados”, “sem esperança e sem Deus no mundo”, e, portanto, somos “filhos da ira”; que todo homem pode dizer: “Fui gerado em iniquidade e em pecado minha mãe me concebeu”; que “não há diferença”, visto que “todos pecaram e foram destituídos da glória de Deus”, daquela gloriosa imagem de Deus segundo a qual o homem fora originariamente criado. E daí, quando “o Senhor olhou do alto para os filhos dos homens, viu que todos se desviaram; que eles se tornaram todos abomináveis, não havendo nenhum justo, nem sequer um”, ninguém que verdadeiramente busque a Deus, concordando isto com o que é declarado pelo Espírito Santo nas palavras acima citadas: “Deus viu”, quando olhou dos céus, “que a maldade do homem era grande na terra”; tão grande que “toda imaginação dos pensamentos de seu coração era somente má, e isto continuamente”. Este é o conceito de Deus acerca do homem, conceito que nos dará oportunidade de: primeiro, mostrar, o que todos Os homens eram antes do dilúvio; segundo, inquirir se eles não são os mesmos hoje; e, terceiro, acrescentar algumas inferências.
Devo abrir, primeiro, as palavras do texto, para mostrar o que eram os homens antes do dilúvio. E podemos plenamente descansar no testemunho aí dado: porque Deus viu, e Ele não pode ter-se enganado. Ele “viu que a maldade do homem era grande”: – não deste ou daquele homem; não de uns poucos homens somente; não meramente da maior parte, mas do homem em geral; dos homens em sua universalidade. A palavra inclui toda a raça humana, todo participante da natureza humana. E não nos é fácil computar seu número, dizer quantos milhares e milhões eram eles. A terra mantinha então muito de sua beleza primitiva e de seu vigor inicial. A face do globo não estava despedaçada e fendida como hoje está; e a primavera e o verão se sucediam. É, portanto, provável que ele oferecesse sustento a muito maior número de habitantes do que pode agora sustentar; e esses habitantes deviam multiplicar-se enormemente, desde que os homens geravam filhos e filhas no decurso de toda uma existência de setecentos ou oitocentos anos. Todavia, em meio de todo esse número inconcebível de indivíduos, somente “Noé achou graça na presença de Deus”. Só ele (talvez incluindo-se parte de sua família), era uma exceção em meio da maldade universal que, pela justo juízo de Deus, pouco tempo depois foi tragada na destruição geral. Todo o resto era participante da mesma culpa, sendo participante da mesma punição.
“Deus viu toda a imaginação dos pensamentos de seu coração” – de sua alma, do homem interior, do espírito que possuíam, princípio de todos os impulsos internos e externos. Ele “viu toda a imaginação”: não é possível uma palavra de mais extensa significação. Inclui o que é formado, feito, arquitetado interiormente; tudo que existe ou se passa na alma; toda inclinação, afeição, paixão, apetite; toda tendência, desígnio, pensamento. Deve, consequentemente, incluir todas as palavras e ações que naturalmente decorram daquelas fontes e que sejam boas ou más, segundo a origem diversa de que provenham.
Agora Deus viu que tudo isso, e tudo o que resultava, era mau; contrario à retidão moral; contrário à natureza de Deus, que necessariamente inclui todo o bem; contrário à divina vontade, o eterno padrão do bem e do mal; contrário à pura, santa imagem de Deus, segundo a qual o homem fora originariamente criado, e na qual ele persistia quando Deus, velando sobre as obras de suas mãos, viu que ,tudo era muito bom; contrário à justiça, à misericórdia e à verdade, e às relações essenciais que cada homem tem para com seu Criador e para com seus semelhantes.
Mas não havia nenhum bem misturado ao mal? Não havia nenhuma luz misturada às trevas? Não; absolutamente nada: “Deus viu que toda imaginação do coração do homem era somente má”. Não Se pode, na verdade, negar que muitos dentre eles, talvez todos, tivessem impulsos bons colocados em seu coração, porque o Espírito de Deus também então “contendia com o homem”, a ver se por felicidade ele poderia arrepender-se, mais especialmente durante aquele gracioso prazo de cento e vinte anos, enquanto se construía a arca. Mas ainda “em sua carne não havia nada de bom”: toda sua natureza era puramente má: era totalmente coerente conseguem mesma e separada de qualquer coisa de natureza oposta.
Entretanto, pode ser ainda objeto de interrogação: “Não havia intermitência nesse mal? Não havia intervalos lúcidos, durante os quais algum bem se pudesse achar no coração do homem?” Não temos em vista considerar aqui o que poderia a graça de Deus operar excepcionalmente em sua alma; e, abstração feita disto, não temos razão para crer que houvesse qualquer intermitência naquele mal. Porque Deus, que “viu toda a imaginação dos pensamentos de seu coração ser somente má”, viu igualmente que ela era sempre a mesma, que “era somente má continuamente”; cada ano, cada dia, cada hora, cada momento. Nunca retrocedia para o bem.
Tal é o relatório autêntico da totalidade da raça humana que Aquele que conhece o que há no homem, que sonda os corações e experimenta os rins, deixou escrito para nossa instrução. Tais eram todos os homens, antes que Deus trouxesse o dilúvio sobre a terra. Vamos agora inquirir, em segundo lugar, se os homens são os mesmos hoje.
É certo que a Escritura não nos dá razão de pensar deles de modo diferente. Pelo contrário, todas as passagens acima citadas têm referência aos que viveram depois do dilúvio. Mais de mil anos depois foi que Deus declarou por Davi, no tocante aos filhos dos homens: “Todos se desviaram do caminho” da verdade e da santidade; “não há nenhum justo; nem um sequer”. E disto todos os profetas dão testemunho, em suas diversas gerações: Assim Isaías, referindo-se ao povo peculiar de Deus (e certamente ps pagãos não estavam em melhores condições): “Toda a cabeça está enferma e todo coração abatido. Desde a planta do pé até ao alto da cabeça não há nele coisa sã, mas tudo é uma ferida, e uma contusão, e uma chaga intumescida”. O mesmo depoimento é prestado por todos os apóstolos, sim, por todo o teor dos Oráculos de Deus. De tudo isso aprendemos, no tocante aos homens em seu estado natural, desacompanhados da graça de Deus, que “toda a imaginação dos pensamentos de seu coração e ainda “má, somente má”, e isto “continuamente”.
Este conceito do presente estado do homem é confirmado pela experiência diária. É verdade que o homem natural o não discerne; e nisto não há motivo de espanto. Enquanto o homem que nasceu cego continuar nesta condição, dificilmente se mostrará sensível ao que lhe falta: muito menos poderíamos supor que, num lugar em que todos os homens nascessem sem vista, pudessem eles ser sensíveis à falta de visão. Do mesmo modo, enquanto os homens permanecem em sua natural cegueira de entendimento, não são sensíveis às próprias necessidades espirituais, e daquela falta em particular. Mas tão logo Deus lhes abre os olhos do entendimento, eles veem o estado em que se achavam antes; são convencidos então de que “todo homem que vive”, e eles com especialidade, são por natureza “inteiramente vaidade”, isto é, loucura e ignorância, pecado e maldade.
Vemos, quando Deus nos abre os olhos, que estávamos antes αθεοιεντωκοσμω – sem Deus, ou antes ateístas no mundo. Não temos, por natureza, conhecimento de Deus; nenhuma relação temos com Ele. É verdade que quando chegamos ao uso da razão, aprendemos “as coisas invisíveis de Deus, seu eterno poder e divindade, pelas coisas criadas”. Das coisas visíveis inferimos a existência de um ser eterno, poderoso, que não vemos. Mas ainda, embora reconheçamos seu ser, não temos relação com Ele. Como sabemos que há um imperador da China , a quem, todavia, não conhecemos, assim sabemos que há um Rei de toda a terra, conquanto não o conheçamos. Na verdade, não podemos fazê-la por nenhuma de nossas faculdades naturais. Por meio de nenhuma delas poderíamos alcançar o conhecimento de Deus. Tanto podemos percebê-lo por nosso entendimento natural como podemos vê-lo com nossos próprios olhos porque “ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o filho o quiser revelar. E ninguém conhece o Filho senão o Pai, e aquele a quem o Pai o revelar”.
Lemos de um antigo rei que, desejando conhecer qual era a linguagem natural dos homens, fez, no intuito de levar o negócio a um resultado certo, a seguinte experiência: ordenou que duas criancinhas, logo que nascidas, fossem transportadas a um lugar preparado para elas, onde seriam criadas sem instrução absolutamente nenhuma e sem jamais ouvirem a voz humana. E qual foi o resultado? Aconteceu que, quando foram retirados de seu isolamento, os meninos não falavam língua nenhuma; emitiam somente sons inarticulados, semelhantes aos que emitem os outros animais. Tivessem sido os dois jovens do mesmo modo segregados desde o nascer, sem instrução religiosa de qualquer espécie, e haveria escassa probabilidade de dúvida (a não ser que se interpusesse a graça de Deus), quanto à identidade do resultado. Não teriam religião nenhuma: não teriam maior conhecimento de Deus do que as bestas do campo, do que o potro selvagem. Tal é a religião natural, “abstraindo da religião tradicional e das influências do Espírito de Deus!
Não tendo conhecimento de Deus, não podemos ter amor a Ele: não podemos amar àquele a quem não conhecemos. Os homens falam, na verdade, de amar a Deus, e talvez imaginam que o façam; pelo menos são poucos os que reconhecerão que não o amam; mas o fato é demasiadamente claro para ser negado. Ninguém por natureza ama a Deus mais do que ama a uma pedra ou à terra que ele pisa. Deleitamo-nos naquilo que amamos: mas homem algum se deleita naturalmente em Deus. Em nosso estado natural não podemos conceber como alguém poderia ter prazer em Deus. Nele não temos prazer de espécie alguma; Ele nos é absolutamente insípido. Amar a Deus! Isto se acha muito acima, muito fora de nossas vistas. Não podemos, naturalmente, alcançá-lo.
Por natureza não só não temos amor, mas não temos temor de Deus. Admite-se, de fato, que a maior parte dos homens tem, mais cedo ou mais tarde, uma espécie de temor insensível, irracional, propriamente chamado superstição, embora os desatinados epicuristas deem a isso o nome de religião. Ainda esse sentimento não é natural, mas adquirido, principalmente pela conversação ou pelo exemplo. Por natureza “Deus não entra em todos os nossos pensamentos”: deixamo-lo conduzir seus próprios negócios, assentado patriarcalmente no céu, como imaginamos, e deixando que na terra conduzamos os nossos, de modo que tão grande é o temor de Deus que temos diante de nossos olhos, como é o amor a Ele que existe em nossos corações.
Deste modo, todos Os homens são “ateístas no mundo”. Mas o próprio ateísmo nos não isenta da idolatria. Em seu estado natural, todo homem que nasce no mundo se qualifica como idólatra. Talvez que, na verdade, não o sejamos no sentido vulgar da palavra. Não prestamos culto, à maneira dos pagãos idólatras, a imagens fundidas ou esculpidas. Não nos encurvamos ante um tronco de árvore, ante a obra de nossas próprias mãos. Não rogamos aos anjos ou aos santos do céu mais do que o fazemos aos santos da terra. Mas, que tem isso? Estabelecemos nossos ídolos em nossos corações e perante eles nos encurvamos e lhes damos culto: cultuamo-nos a nós mesmos, quando tributamos à nossa pessoa oculto que somente é devido a Deus por isso, todo orgulho é idolatria; é atribuir a nós mesmos aquilo que só é devido a Deus. Embora o orgulho não fosse feito para o homem, onde se encontra, todavia, o homem que tenha nascido sem ele? Por meio dele defraudamos a Deus, roubando-lhe o direito inalienável, idolatricamente lhe usurpamos a glória.
Mas o orgulho não é a única espécie de idolatria de que todos somos por natureza culpados. Satanás também imprimiu em nosso coração sua imagem, obstinação. “Assentar-me-ei”, disse ele, antes através da expulso dos céus, “sobre os flancos do norte”: eu farei minha própria vontade e prazer, independentemente da de meu Criador. O mesmo diz todo homem que nasce no mundo, e disso há um milhar de exemplos; e ainda o confessa, sem se enrubescer em face da confissão, sem temor e sem vexame. Pergunta ao homem: “Por que fazes isto?” Ele responde: “Porque tinha a resolução de fazê-lo”: Que vem a ser isto, senão: “Porque esta era a minha vontade”? – isto é, com efeito ― porque o diabo e eu concordamos; porque Satanás e eu governamos nossas ações por um mesmo princípio. A vontade de Deus, entretanto, não entra em seus pensamentos, não inconsiderada sequer em último lugar, não obstante seja Ele o supremo Governador de toda criatura inteligente, seja no céu ou na terra, em razão da essencial, inalterável relação que todas as criaturas têm para com seu Criador.
Até certo ponto, trazemos a imagem do diabo e andamos em suas pegadas. Mas a breve trecho o deixamos para trás e corremos para uma idolatria de que Satanás não é culpado: quero referir-me ao amor do mundo, que é agora tão natural a todo homem, como o amor à sua própria vontade. Que é mais natural ao homem do que buscar a felicidade na criatura, em lugar de a procurar no Criador? – buscar a satisfação nas obras de suas mãos, satisfação que só pode ser encontrada em Deus? Que há de mais natural do que “o desejo da carne”?, Isto é, de todas as espécies de prazeres dos sentidos? Os homens, na verdade, falam pomposamente no desprezo aos prazeres inferiores, principalmente os homens eruditos e educados. Afetam pairar acima da gratificação dos apetites em que o homem se nivela com as bestas que perecem. Mas isso é mera afetação! Porque todo homem é cônscio perante si mesmo de que, a esse respeito, ele é por natureza, um verdadeiro animal. Os apetites sensuais, mesmo os de mais baixa espécie, têm mais ou menos domínio sobre ele. Esses apetites o escravizam; manobram-no para um e outro lado, a despeito de sua apregoada razão. O homem, com toda sua boa educação e outros refinamentos, não tem preeminência sobre o bode: e até é muito para duvidar que a besta não tenha preeminência sobre ele. Certamente que a tem, se pudermos dar ouvidos a um de seus modernos oráculos, que mui decentemente nos diz que:
“Uma vez em fada estação as bestas cuidam de amor;
Somente a besta racional é sua escrava
E nessa loucura se esfalfa durante o ano inteiro”.
Uma diferença considerável, que, na verdade, deve ser levada em conta, há entre homem e homem, resultante (além do que é operado pela graça habilitadora), da diferença de constituição e de educação. Mas, não obstante isso, quem é que, não sendo absolutamente ignorante de si mesmo, pode, nesse sentido lançar a primeira pedra contra outrem? Quem pode resistir ao teste do comentário de nosso bendito Senhor sobre o Sétimo Mandamento? “Aquele que olha para uma mulher para a cobiçar, já no seu coração adulterou com ela”. De modo que não se sabe que mais se há de admirar, se a ignorância ou a insolência dos homens que falam com tal desdém dos que se acham vencidos pelos desejos que todo homem sente em seu próprio íntimo; sendo próprio de todo filho do homem o desejo do prazer dos sentidos, seja inocente ou não.
E assim é o “desejo dos olhos”: o desejo dos prazeres da imaginação. Estes se levantam da grandeza, da beleza ou da invulgaridade dos objetos, se as duas primeiras qualidades não coincidem com a última: porque talvez se evidenciaria a uma indagação diligente que nem os objetos grandiosos, nem os belos, agradam, senão enquanto novos; que, passada a novidade deles, a maior parte, pelo menos, do prazer que proporcionavam, também passa; e, na proporção em que se tornam familiares, tornam-se insonsos e insípidos. Basta, porém, que os experimentemos mais espaçadamente para que o desejo deles ainda permaneça. A sede congênita permanece fixa na alma; e quanto mais é ela acariciada, mais se aumenta e incita-nos a procurar outro, e ainda outro objeto, embora deixemos cada um como uma esperança malograda e uma expectação desiludida. Sim,
“O velho louco, que por muitos dias
Lutou com aflição contínua,
Renova sua esperança e apaixonadamente transfere
A luta desesperada para amanhã!
O amanhã chega. É dia! É noite!
Este dia, como todos os dias precedentes, foge:
E ainda ele vai a procurar a ventura
Amanhã, até que à noite morre!”.
Um terceiro sintoma desta fatal doença – o amor do mundo, que está tão profundamente arraigado em nossa natureza, é “a vaidade da vida”, o desejo de louvor, da honra que vem dos homens. Isto os maiores admiradores da natureza humana confessam ser estritamente natural; tão natural como a visão ou a audição, ou qualquer outro dos sentidos externos. E envergonham-se disto, mesmo os homens de letras, os homens de entendimento polido e culto? Longe disso: eles se gloriam dessa conduta! Eles se aplaudem em razão de seu amor ao aplauso! Sim, eminentes cristãos, chamados tais, não têm dificuldade de adotar a máxima do antigo e enfatuado pagão: Animi dissoluti est et nequam negligere quid de se homines sentiant“: “Não curar do que os homens pensem de nós é sinal de ânimo ruim e descuidado”. Assim, ir-se o homem calmo e inabalável através da honra e da desonra, através da boa e da má fama, é para eles indício de inaptidão para a vida: “Fora com um tal companheiro!” Mas poderia alguém imaginar que esses homens tivessem jamais ouvido falar de Jesus Cristo, ou de seus apóstolos; ou que eles soubessem que foi dito: “Como podeis crer, vos que recebeis honra um dos outros, e não buscais a honra que somente vem de Deus”? Mas se realmente for assim, e se for impossível crer e, em consequência, agradar a Deus, enquanto recebermos ou buscarmos o louvor que os homens trocam entre si e não a honra que somente vem de Deus então, em que estado se encontra toda a humanidade, tanto cristãos como pagãos, desde que todos buscam a honra um dos outros, uma vez que isto lhes é tão natural, sendo eles próprios os juízes, como lhes é natural ver a luz que lhes fere a vista ou ouvir o som que lhes penetra os ouvidos; sim, desde que eles têm como característica do espírito virtuoso o buscar o louvor dos homens, e como indício de espírito degradado o contentar-se com a honra que somente vem de Deus!
Passo a tirar do que foi dito umas tantas inferências. Primeiro, daí podemos prender uma grande e fundamental diferença entre o cristianismo, considerado como um sistema de doutrinas, e o mais refinado paganismo. Muitos dos antigos pagãos largamente descreveram os vícios do homem privado. Falaram muito contra, sua cobiça ou crueldade, sua luxúria ou prodigalidade. Alguns se atreveram a dizer que “nenhum homem nasce sem vícios de uma ou de outra espécie”, Mas ainda assim, como nenhum deles estava informado da queda do homem, nenhum deles conhecia sua total corrupção. Eles não sabiam que todos os homens estão destituídos de todo o bem e cheios de toda espécie de mal. São totalmente ignorantes da inteira depravação de toda a natureza humana, de todo homem que vem ao mundo, em cada faculdade de sua alma, não somente pelos vícios particulares que dominam especialmente certas pessoas, mas pelo dilúvio geral de ateísmo e idolatria, de orgulho, obstinação e amor ao mundo. Este é, portanto, o primeiro e grande sinal distintivo entre o paganismo e o cristianismo. Um reconhece que muitos homens se acham contaminados de muitos vícios e nascem com inclinação para eles; mas supõe, com tudo isso, que em alguns o bom natural contrabalança com folga o mal; o outro declara que todos os homens são “concebidos em pecado” e “gerados em iniquidade”; que daí resulta que há em todo homem “a mente carnal, que é inimizade contra, Deus; que não está, nem pode estar, sujeita a” sua “lei”; e que de tal maneira infecciona toda a alma, que “não existe” no homem, “em sua carne”, em seu estado natural, “nenhum bem”, mas “toda a imaginação dos pensamentos de seu coração é má, somente má”, e isto “continuamente”.
Daí podemos, em segundo lugar, aprender que todos os que negam isto (chame-se de “pecado original” ou de qualquer outro nome), não são mais do que pagãos, no ponto fundamental que distingue o paganismo do cristianismo. Eles podem, na verdade, conceder que os homens tenham muitos vícios; que alguns nasceram conosco e que, consequentemente, não nascemos tão sensatos e virtuosos como devíamos ser, sendo poucos os que redondamente afirmam: “Nascemos com tanta propensão para o bem como para o mal; e que todo homem é, por natureza, tão virtuoso e sábio como Adão o, era ao ser criado”, Mas aí está o shibbolet: Está o homem cheio, por natureza, de toda sorte de mal? Está vazio de todo o bem? Está totalmente decaído? Toda sua alma ,está corrompida? Ou, para regressarmos ao texto, “toda a imaginação dos pensamentos de seu coração” ê “somente má”, e isto “continuamente”? Confessa-o, e chegas ao ponto de vista cristão. Nega-o, e não és ainda mais um que um pagão.
Daí podemos aprender, em terceiro lugar, qual é a própria natureza da religião, da religião de Jesus Cristo. É θεραπειαψυχης, o método divino de curar a alma, que se encontra enferma. Por este meio o grande Médico das almas aplica o remédio para curar a enfermidade; para restaurar a natureza humana, totalmente corrompida em todas as suas faculdades. Deus cura todo nosso ateísmo pelo conhecimento de si mesmo e de Jesus Cristo, a quem Ele enviou, dando-nos fé, uma: divina evidência ou convicção de Deus e das coisas, de Deus, em particular desta importante verdade: “Cristo me amou e deu-se a si mesmo por mim”. Pelo arrependimento e pela humildade de coração, a doença moral do orgulho é debelada; o mal da obstinação se cura pela resignação, brandura e grata submissão à vontade de Deus; e para o amor ao mundo em todos os seu; aspectos, o amor de Deus é o soberano remédio. Esta é propriamente a religião, a “fé” assim “operando por amor”, operando a genuína humildade pacífica, a completa morte para o mundo, com uma subordinação amorosa e agradecida a toda a vontade de Deus e a toda sua palavra, e conformando-se o homem com uma e com outra.
Na verdade, se os homens não tivessem decaído, nenhuma necessidade haveria de nada disso. Não haveria ocasião de operar-se essa obra no coração, essa renovação do espírito de nossa mente. A superfluidade da piedade seria então um modo de dizer mais exato do que a “superfluidade da maldade”. Porque uma religião exterior, sem qualquer piedade, bastaria a todos os intuitos e propósitos racionais. Consequentemente isto basta, no conceito dos que negam a corrupção de nossa natureza. Eles fazem da religião um pouquinho mais do que o famoso Hobbes fazia da razão. Segundo este, a razão é apenas “um bem combinado séquito de palavras”; de acordo com aqueles, a religião é apenas um bem combinado séquito de palavras e ações. E falam coerentemente consigo mesmos, porque, se o interior não estiver cheio de maldade, se este já for puro, que resta, senão “purificar o exterior do copo”? A reforma exterior, se sua suposição for justa, é, na verdade, a única necessária.
Mas não aprendestes isto dos Oráculos de Deus. Sabeis que Aquele que vê o que existe no homem dá uma versão muito diferente da natureza e da graça, de nossa queda e de nossa restauração. Sabeis que o grande fim da religião é renovar nossos corações à imagem de Deus, reparar aquela perda total da justiça e verdadeira piedade que sofremos pelo pecado de nossos primeiros pais. Sabeis que toda religião que não corresponde a este fim, toda religião que fique aquém disto – a renovação de nossa alma à imagem de Deus, segundo a semelhança daquele que a criou ― não é mais do que uma pobre farsa e um simples zombar de Deus, para a destruição de nossa própria alma. Oh! Guardai-vos de todos esses ensinadores de mentiras, que desejariam impingir-vos isso como cristianismo! Não atenteis para eles, embora venham a vós com todo o engano da injustiça, com toda a doçura de linguagem, toda decência, sim, toda beleza e elegância de expressão, todos os protestos de profunda boa vontade para convosco e reverência para com as Sagradas Escrituras! Conservai a clara, velha fé “uma vez entregue aos santos” e comunicada pelo Espírito de Deus aos nossos corações. Reconhecei vossa doença; conhecei vossa cura! Nascestes em pecado; portanto, “deveis nascer de novo”, nascer de Deus. Por natureza sais totalmente corruptos; pela graça sereis totalmente renovados. Em Adão todos vós morrestes: no segundo Adão todos vós fostes vivificados. A “vós, que estáveis mortos em pecados, Ele vos revivificou”: Ele já vos deu um principio de vida, ou seja, de fé naquele que vos amou e deu-se a si mesmo por vós! Agora, “ide de fé em fé” até que toda vossa enfermidade seja sanada e haja em vós “toda a mente que também havia em Cristo Jesus”.
John Wesley (Epworth, Inglaterra, 17 de junho de 1703 – Londres, 2 de março de 1791) – Foi um clérigo anglicano e teólogo cristão britânico, líder precursor do movimento metodista e, ao lado de William Booth, um dos dois maiores avivacionistas da Grã-Bretanha.