O orgulho é um pecado que tem interesse demasiado naquilo que temos de melhor, e mais odiento e indesculpável em nós mesmos do que em outros homens. No entanto, prevalece de tal maneira, que condena nossos sermões, escolhe nossa companhia, molda nosso semblante, coloca enunciação e ênfase em nossas palavras. Enche a mente das pessoas com desejos e aspirações e domina a alma com pensamentos invejosos e amargurados. Lança-as contra os que permanecem na sua luz ou contra quem quer que possa eclipsar o brilho de sua própria reputação! Que companheiro constante, que comandante tirano, que inimigo sutil e surpreendente é o pecado do orgulho! Acompanha os homens à loja, ao armazém e ao alfaiate: escolhe o tecido de suas roupas, enfeites e moda. Sem o domínio de tal tirano vício, haveria menos pastores a se ocupar primariamente com cabelos e vestes enfeitadas.
Quando elabora o sermão, o orgulho vai conosco ao púlpito. Determina o tom da mensagem, anima-nos na entrega e retira dela o que poderia parecer desagradável ainda que necessário, tudo com vistas ao aplauso vão. Em suma, o orgulho obriga aos homens a buscarem a si mesmos, tanto no estudo quanto na pregação. Desse modo, muitos pregadores negam Deus, quando deveriam estar buscando a negação de si mesmos em favor da glória divina. Deveríamos nos perguntar: “O que devo dizer? Como dizer? O que mais agrada ao Senhor e produzirá maior benefício?”. No entanto, continuamos perguntando: “O que devo dizer para que pensem que sou homem letrado, exímio pregador e merecedor do aplauso de todos os ouvintes?”.
Ao término do sermão, o orgulho ainda os acompanha. Em casa, desejam saber dos familiares como as pessoas reagiram à pregação, se gostaram e quais os elogios feitos. Alegram-se quando percebem que foram tidos em alta conta, pois julgam ter alcançado sua finalidade. Se, porém, acham que foram tomados por pregadores medíocres ou fracos, desagradam-se porque não receberam o prêmio almejado.
Isso ainda não é tudo nem o pior! Há pastores que são contados como piedosos e que acham lugar na alta estima dos homens, que, não obstante, invejam os nomes e os talentos de irmãos que recebem preferência. Agem como se o louvor dado a outrem tivesse sido roubado deles. Andam no mundo como homens de reputação, mas pisam e vilipendiam os dons de Deus a outros concedidos, quando estes lhes parecem impedir a própria honra! Será possível que um santo pregador de Cristo inveje outro portador da imagem e dos dons de Cristo, o único merecedor de glória, só porque lhes parecem impedir a própria glória? Não é certo que todo cristão verdadeiro é membro do corpo de Cristo e, portanto, participante das bênçãos do corpo e de cada membro em particular? Não é certo também que cada membro deve ser grato a Deus pelos dons de seu irmão, não só porque se beneficia deles, tal como o corpo todo usufrui a direção do olho, mas também porque os fins de Deus são atingidos pelo exercício dos dons em mútuo benefício? Se a glória de Deus e o benefício da Igreja não forem seu alvo, tal homem não estará vivendo como um cristão. Poderá, um trabalhador, falar mal de seus pares que partilham da realização da obra do Mestre? No entanto, tal crime hediondo é comum entre os ministros de Cristo! Podem macular silenciosamente a reputação de seus colegas quando sentirem que lhes barram o caminho. O que não fazem abertamente, por vergonha, para não serem comprovadamente mentirosos e caluniadores, farão dissimuladamente, por meio de sugestões maliciosas, suspeição e, até mesmo, por omissão. Alguns chegam a não permitir que pregadores mais hábeis ocupem seus púlpitos, para que não sejam mais elogiados do que eles mesmos.
Temerária coisa é que homens com um mínimo temor do Senhor invejem de tal maneira dos dons de Deus dados à Igreja. Preferem que seus ouvintes carnais permaneçam sem conversão e que cristãos permaneçam no sono, a que outros pregadores recebam reconhecimento. Isso é tão prevalecente que muitas congregações grandes sequer veem necessidade da ajuda de pregadores auxiliares. E difícil achar lugares em que dois co-pastores vivam em amor, harmonia e calma, trabalhando juntos para desenvolver, unânimes, a obra de Deus. A não ser que um seja mais bem considerado e o outro se disponha a lhe ser inferior, não haverá trabalho. Um será senhor e tutor do outro, contenderão ambos pela precedência, invejando e estranhando um ao outro para vergonha do ministério e para o mal da Igreja. Tenho vergonha de dizer que, quando tento convencer pessoas da liderança de grandes congregações sobre a necessidade de ter mais do que um só pastor, os próprios pastores me dizem que não daria certo. Espero que se trate, na maioria das vezes, de opinião infundada, mas é triste que em alguns casos isto seja verdade. Alguns homens são tão orgulhosos que, quando poderiam ter um co-pastor para desenvolver a obra do Senhor, preferem tentar levar o fardo sozinhos, ainda que a carga seja mais pesada do que consigam carregar, só para não compartilharem a honra e para que não lhes diminua a estima do povo.
Outro mal, igualmente pecaminoso, é que muitos homens valorizem demais as próprias opiniões, criticando diferenças mínimas esposadas por outras pessoas, agindo como se diferenciassem do próprio Deus. Esperam que todos se conformem ao seu juízo, como se reinassem sobre a fé da Igreja. Muitos deles denunciam a falibilidade papal, desejando ser, eles mesmos, papas infalíveis aos quais todos deferem. Exibem modéstia, pretendendo que suas razões sejam evidências da verdade às quais esperam que os homens acedam. Para eles, zelo é sempre em nome da verdade e não em função deles mesmos, mas, de fato, tudo que parte deles tem de ser prontamente visto como verdadeiro e válido. Entretanto, quando suas razões são examinadas, e evidenciadas as suas falácias, tornam-se excessivamente lerdos para acolher a crítica. Assumem que sejam razões pessoais e julgam injusto o fato de terem sido publicamente expostos. Defendem seus erros como se fossem causas pessoais. Assumem que as críticas lhes atingem o âmago do próprio ser.
Nosso espírito é tão altivo que, quando alguém, por dever, nos reprova ou contradiz, tornamo-nos impacientes com a questão levantada e com o modo como a questão é colocada. Amamos o homem que compartilha nossa opinião, repete o que dizemos e promove a nossa reputação. Poderá ser que em outros aspectos ele seja menos digno de nossa apreciação. Porém, contra aquele que de nós difere e nos contradiz, certamente o consideraremos ingrato, até mesmo, quando fala a verdade sobre nossos erros e defeitos. Quando os olhos do mundo estão sobre nós, especialmente no gerenciamento de nossa argumentação pública, não suportamos contraditos ou claras críticas. Sabemos que temos de desprezar a linguagem perversa e que devemos ser zelosos em relação à reputação uns dos outros, tanto quanto nos permitir a fidelidade à verdade. Mas o orgulho obriga muitos de nós a pensar que todo aquele que não nos admira nos condena. Além disso, queremos tanto que admirem o que dizemos, que tentamos submeter o juízo das pessoas aos nossos erros mais palpáveis. Somos exageradamente sensíveis; uma pessoa mal nos toca, e sentimo-nos feridos. Somos tão altivos que uma pessoa menos hábil nas artes do elogio não saberá como atingir nossas expectativas fugidias sem que haja uma palavra ou omissão a que nosso espírito se apegue, tomando-a como injuriosa.
Tenho me perguntado, muitas vezes, sobre como é possível que um pecado tão odiento como o orgulho seja tratado com leviandade e, até mesmo, aceito por pessoas de corações e vida santas, enquanto outros pecados bem menores são proclamados em nosso meio, como objeto de alta condenação. A esse respeito, pergunto ainda sobre qual seja a diferença entre pregadores piedosos e pecadores ímpios. Quando nos dirigimos aos pecadores não-convertidos, mundanos e ignorantes, tratamo-los com desprezo e falamos claramente sobre seu pecado, vergonha e miséria. Esperamos que suportem com paciência as nossas palavras e que sejam, além disso, agradecidos. A maioria daqueles com os quais eu trato realmente aceita com paciência a confrontação. Muitos dos grandes pecadores atendem melhor a pregação veemente, dizendo, até mesmo, que preferem a franqueza ao temor de tratar claramente sobre seu pecado. Entretanto, quando nos dirigimos a pastores que têm aparência de piedade, para falar contra seus erros e pecados, se não usarmos de excessiva honra e reverência, de exagerada afabilidade e, até mesmo, misturando recomendações e repreensões, se o aplauso não prevalecer sobre a força da repreensão, tais pastores se sentem extremamente injuriados.
Certamente, não envolvo todos os pastores em tal acusação de orgulho. Para louvor da graça divina, devo enfatizar que há, entre nós, eminentes pastores realmente piedosos, humildes e modestos, que servem de exemplos para o rebanho e para nós mesmos. Vivem para a glória de Deus, e esta lhes será a própria glória. É o que os faz verdadeiramente honrados ante os olhos de Deus e dos homens de bem e, até mesmo, aos olhos dos ímpios. Que o restante de nós seja assim como eles! Infelizmente, não é o caso de todos.
Quisera o Senhor nos colocasse a seus pés em lágrimas de sincera tristeza por causa do pecado do orgulho! Irmãos, seria preciso alongar mais o tratamento do caso do meu e do seu coração, para que nos reformemos? Não é o orgulho o pecado do diabo, o primogênito do inferno? Não é este o reflexo da imagem do inimigo? Porventura deveria ser tolerado, especialmente no coração de homens engajados na luta contra Satanás e suas hostes?
É da própria natureza do Evangelho a nossa humilhação; a obra da graça começa e termina na humildade. Humildade não é apenas mero ornamento da vida cristã, mas um aspecto essencial na vida da nova criatura. Ser cristão sem ser humilde é uma contradição de termos. Todo aquele que quiser ser cristão precisará ser discípulo de Cristo: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me” (Mt 16.24); “Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11.29). Quantos preceitos e exemplos admiráveis a esse respeito o nosso Senhor e Mestre nos deu! Poderíamos, vendo-o lavar os pés dos discípulos, prosseguir sendo orgulhosos? Receberia ele as pessoas mais simples, e nós as evitaríamos como se a ambos fôssemos superiores? Quantos de nós nos encontramos mais na casa dos nobres do que no lar dos pobres – quem mais precisa de nossa ajuda? Há, entre nós, muitos que consideram uma indignidade o passar o dia com os mais necessitados para instruí-los no caminho da vida e da salvação. Seríamos responsáveis apenas pelas almas dos ricos! Que tão grandes feitos temos realizado para que nos orgulhemos tanto?
De que nos orgulhamos? Do nosso corpo? Não é ele composto do mesmo material que os corpos dos homens que discriminamos? Em pouco tempo, não será um cadáver em repugnante decomposição? Ou teríamos orgulho de nossas graças? Quanto mais nos orgulharmos, menos teremos de que nos orgulhar. É absurdo que abriguemos orgulho espiritual no coração, sabendo que a humildade é parte essencial da natureza da graça. Seria em função de nosso conhecimento e preparo intelectual? Se realmente temos algum conhecimento, deveríamos conhecer as razões para nossa humilhação. Se realmente conhecemos mais do que os outros, deveríamos conhecer mais as razões para sermos humildes. Quão pouco sabemos mais do que os ignorantes, diante da imensidade do saber! O fato de termos consciência de quanto foge à nossa capacidade para conhecer, e de quanto somos ignorantes, não deveria ser motivo de orgulho. Os demônios porventura não conhecem mais do que nós? Deveríamos ter orgulho daquilo em que os demônios nos excedem? Nosso mister é o de ensinar ao povo a grande lição da humildade – deveríamos ter orgulho disso? Havemos de estudar a humildade, pregara humildade,possuirá humildade, praticando a humildade! Um pregador orgulhoso da própria humildade a si mesmo condena naquilo que aprova.
Desejo tratar, de modo íntimo e sincero, com seu e meu próprio coração. Rogo aos irmãos que considerem isto: haverá salvação em nossa pregação sobre a graça da humildade, se nós mesmos não a possuirmos? De que nos adiantará falar contra o pecado do orgulho quando somos, nós mesmos, orgulhosos? Muitos de nós teríamos de fazer diligente autoexame para saber se nossa sinceridade é congruente com a medida de orgulho que sentimos. Dizemos ao alcoólatra que ele tem de se arrepender para a salvação, e ser moderado; dizemos ao fornicador que ele não poderá ser salvo a menos que se arrependa e abandone o pecado; não teríamos boa razão para dizer a nós mesmos que nossa humilhação evidencia nossa salvação? Na verdade, o orgulho é pecado maior do que o da embriaguez ou da lascívia. A humildade é tão necessária como a sobriedade e a castidade. Como pode o homem andar nos caminhos do inferno enquanto prega insinceramente o Evangelho e o aparente zelo de uma vida santa, tal como se estivesse no caminho da embriaguez e da imundícia? O que é santidade, senão devoção a Deus e dedicação à pureza de vida? O que é falta de santidade senão devoção ao ego e dedicação à satisfação dos desejos da carne? E quem vive mais para si mesmo e menos para Deus do que o homem orgulhoso?
Não é possível que um pregador pareça suplantar a todos no estudo, na oração e na pregação, e esteja vivendo para si mesmo, motivado pelo orgulho? Sem os princípios e fins acertados, nenhuma obra testificará nossa retidão. A obra será a de Deus, mas poderá ser que não a realizemos para Deus, mas para nós mesmos. Confesso sentir tal perigo nesse sentido, e permaneço vigilante para que não estude por mim mesmo nem pregue por mim mesmo, ou escreva por mim mesmo em vez de viver por e para Cristo. Não justifico a mim mesmo quando tenho de condenar o pecado.
Tenham zelo de si mesmos e, entre todos os estudos, estudem sobre a humildade. “Quem se exaltar será humilhado, e aquele que se humilhar, será exaltado” (Mt 23.12). Observo que quase todo homem, bom ou mau, despreza o orgulhoso e ama o humilde. O orgulho é tão incongruente que, consciente de sua própria deformidade, muitas vezes, empresta as roupas simples da humildade. Temos maior razão de zelar pela humildade, porque o orgulho é um pecado firmemente arraigado à natureza humana e difícil de ser extirpado da alma.
Richard Baxter (1615-1691) – Extraído do “Manual pastoral de discipulado”, da Editora Cultura Cristã ] Notável pastor-discipulador, nasceu em Rowton, na Inglaterra. Foi autor de “The Saints Everlasting Rest” (1650), “The Reformed Pastor” (1656), “A Call to the Unconverted” (1658), “A Christian Directory” (1673) e 131 trabalhos. Escreveu também “Reliquiae Baxterianae”, autobiografia, editado por M. Sylverter (1696), mais cinco livros publicados postumamente e muitos tratados não-publicados.