O Meio Bíblico de Salvação
“Sois salvos pela fé” (Efésios 2.8) – NADA pode ser mais intrincado, complexo e difícil de entender do que a religião, como é com frequência apresentada. E isto é verdade não só no que se refere à religião dos pagãos, mesmo em se tratando dos mais sábios dentre eles, mas no tocante à religião dos que também são, em algum sentido, cristãos, e mesmo homens de grande nomeada no mundo cristão, homens que parece serem colunas do cristianismo. Todavia, como é fácil de entender, como é coisa clara e simples, a genuína religião de Jesus Cristo, uma vez que a tomemos em sua forma nativa, exatamente como se apresenta nos Oráculos de Deus! Foi exatamente talhada pelo sábio Criador e Governador do mundo para o entendimento fraco e a limitada capacidade do homem em seu presente estado. Quão verificável é este fato, tanto no que concerne ao fim que Ele propõe, como no tocante ao meio de alcançar aquele fim! O fim é, numa palavra, a salvação; o meio de alcançá-la é a fé.
É fácil compreender que essas duas pequenas palavras, isto é, FÉ e SALVAÇÃO, incluem a substância de toda a Bíblia; a medula, por assim dizer, de toda a Escritura. Assim sendo, devemos ter o maior cuidado possível de evitar todo engano concernente a elas e de formar um verdadeiro e acurado conceito, tanto de uma como de outra.Investiguemos, pois, seriamente:
- Que é salvação?
- Qual é a fé pela qual somos salvos?
- Como somos salvos por ela?
E, primeiro, perguntemos: Que é salvação? A salvação de que se fala aí não é aquilo que o mundo frequentemente entende por essa palavra – a ida para o céu, a eterna felicidade. Não é a ida da alma para o paraíso, chamado por nosso Senhor “o seio de Abraão”. Não é uma bênção que se encontre do outro lado da morte, ou, como usualmente dizemos, no outro mundo. As próprias palavras do texto tiram toda duvida a este respeito: “Vós sois salvos”. Não é alguma coisa remota: é uma coisa presente; uma bênção de que, pela livre misericórdia de Deus, estais de posse agora mesmo. Aquelas palavra podem até ser traduzidas, com igual propriedade, desta maneira: “Vós tendes sido salvos”, de modo que a salvação de que se trata aí pode estender-se a toda a obra de Deus, desde o primeiro toque da graça na alma até sua consumação na glória.
Se tomarmos a palavra em sua derradeira extensão, ela incluirá tudo quanto se opera na alma por meio do que com frequência se chama “consciência natural”, e que mais propriamente vem a ser a “graça preventiva”; todas as atividades do Pai; as aspirações de Deus, as quais, se atendermos a elas, aumentar-se-ão cada vez mais; toda aquela luz com que o Filho de Deus “alumia a todo que vem a este mundo”, ensinando a todo homem a “praticar a justiça, a amar a misericórdia e a andar humildemente com seu Deus”; todas as convicções que seu Espírito, de tempo em tempo, Infunde em todos os filhos dos homens, posto seja verdade que a generalidade dos homens as sufocam tão depressa quanto possível, e em breve tempo esquecem, ou pelo menos negam que jamais as tenham recebido por qualquer meio.
Mas estamos presentemente preocupados somente com aquela salvação de que o apóstolo diretamente fala. Esta abrange duas partes gerais – Justificação e santificação. A justificação é outra palavra que designa o perdão. É o perdão de todos o nosso pecados; e, o que se acha necessariamente implícito neste fato, nossa aceitação da parte de Deus. O preço pelo qual essa salvação nos foi adquirida (comumente chamado “causa meritória de nossa justificação”), é o sangue e a justiça de Cristo; ou, para nos expressarmos um pouco mais claramente, tudo que Cristo fez e sofreu por nós, até que “derramou sua alma pelos transgressores”. Os efeitos imediatos da justificação são a paz de Deus, “paz que excede a toda compreensão”, e o “regozijo na experiência da glória e Deus”, “com gozo indizível e cheio de glória”.
E ao mesmo tempo que somos justificados, sim, no próprio momento, a santificação começa. Naquele instante somos nascidos de novo, nascidos de cima, nascidos do Espírito: há uma real mudança, assim como uma relativa mudança. Somos Interiormente renovados pelo poder de Deus. Sentimos “o amor de Deus derramado em nosso coração pelo Espírito Santo que nos é dado”, produzindo amor a toda a humanidade e mais especialmente aos filhos de Deus; expelindo o amor do mundo, o amor do prazer, de comodidades, de honras, de dinheiro, juntamente com o orgulho, a ira, a obstinação e qualquer outra disposição perversa; em uma palavra, substituindo a mente terrena, sensual e diabólica pela “mente que havia em Cristo Jesus”.
Quão natural é que os que experimentam tal mudança imaginem que todo pecado se tenha Ido; que ele se tenha completamente desarraigado de seu coração e nele já não tenha nenhum lugar! Quão facilmente tiram eles esta inferência: “Eu não sinto pecado; portanto, não tenho pecado; ele não se excita, portanto, ele não tem existência!”.
Mas raramente acontece que decorra multo tempo para serem desenganados, verificando que o pecado estava somente suspenso e não destruí do. As tentações voltam e o pecado revive, mostrando que antes estava apenas aturdido e não morto. Agora os homens sentem em si mesmos dois princípios inteiramente contrários um ao outro: “a carne cobiçando contra o Espírito”, a natureza opondo-se à graça de Deus. São podem negar que, embora sintam ainda forças para crer em Cristo e para amar a Deus; embora seu “Espírito” ainda “testifique com seus espíritos, que eles são filhos de Deus”, contudo ainda sentem em si mesmos orgulho ou obstinação, as vezes ira ou incredulidade. Acham um ou mais dentre eles agitando-se em seu coração, embora não vencendo: sim, talvez “ferindo-os para que possam cair”; mas o Senhor é seu auxílio.
Quão exatamente descreveu Macário, há catorze séculos, a presente experiência dos filhos de Deus! “O incapaz – ou inexperiente – quando se dá à operação da graça, no presente imagina que não tem mais pecado, enquanto que os discretos não podem negar que mesmo os que temos a graça de Deus, podemos ser ainda molestados. Porque nós temos tido com frequência exemplos de alguns entre os irmãos, que têm experimentando semelhante graça, afirmando que não têm pecado em si mesmos; e ainda, depois de tudo, quando se. julgavam inteiramente livres do pecado, a corrupção que jazia no seu interior se agitou de novo e bem depressa se tornaram abrasados”.
A partir da época de nosso novo nascimento, tem lugar à obra de santificação gradual. Somos habilitados “pelo Espírito Santo” a “mortificar as obras da carne”, de nossa natureza má; e, sendo cada vez mais inteiramente mortos ao pecado, cada vez mais vivificados somos para Deus. Avançamos de graça em graça, se tivermos cuidado em “abster-nos de toda aparência do mal” e sermos “zelosos de boas obras”, segundo tivermos oportunidade, fazendo o bem a todos os homens; se andarmos sem tropeço em todas as suas ordenanças, prestando culto a Deus em espírito e verdade; se tomarmos nossa cruz e negarmos a nós mesmos todo prazer que nos não conduza a ele.
É assim que esperamos pela inteira santificação; por uma completa salvação de todos os nossos pecados: do orgulho, da obstinação, da ira, da incredulidade; ou, como se expressa o apóstolo, “chegar à perfeição”, Mas, que é perfeição? A palavra tem vários sentidos: aí ela significa perfeito amor. É o amor que exclui o pecado; amor que enche o coração, empolgando todas as capacidades da alma. É o amor que “se regozija sobremodo, ora sem cessar, em todas as coisas dando graças”. Mas, qual é a fé pela qual somos salvos? Este é o segundo ponto a ser considerado.
A fé, em sentido geral, é definida pelo apóstolo como πραγματων ελεγχος ου βλεπoμενων – uma evidência, uma divina evidência e convicção (a palavra significa uma e outra coisa), das coisas não vistas; não visíveis, não perceptíveis pelos olhos, ou por qualquer outro sentido exterior. Implica tanto em sobre natural evidência de Deus como das coisas de Deus; uma espécie de iluminação espiritual patenteada à alma e uma visão sobrenatural ou percepção dela consequentemente, a Escritura fala de Deus a conceder, ora iluminação, ora poder de a discernir. Assim S, Paulo: “Deus, que manda a luz brilhar nas trevas, brilhou em nossos corações, para dar-nos iluminação do entendimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo”. E em outro lugar o mesmo apóstolo fala de “os olhos de” nosso “entendimento sendo abertos”. Por esta dupla operação do Espírito Santo, tendo os olhos de nossa alma abertos e iluminados, vemos as coisas que os “olhos” naturais “não viram, nem os ouvidos ou viram”. Temos uma perspectiva das coisas invisíveis de Deus; vemos o mundo espiritual, que nos rodeia, e que nossas faculdades naturais distinguiam tanto como se ele não existisse. E vemos o mundo eterno insinuando-se através do véu que se interpõe entre o tempo e a eternidade. Nuvens e escuridão não mais descansam sobre ele, mas estamos preparados para ver a glória que será revelada.
Tomando a palavra em sentido mais restrito, a fé é uma divina evidência e convicção não só de que “Deus em Cristo estava reconciliando o mundo consigo mesmo”, mas também de que Cristo me amou e deu-se a si mesmo por mim. É por esta fé (se considerarmos a essência, ou, antes, uma propriedade dela), que recebemos a Cristo; que o recebemos em todos os seus ofícios, como nosso Profeta, Sacerdote e Rei. É por esta fé que Cristo se torna, por obra de Deus, “nossa sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção”.
“Mas esta é a fé de certeza, ou fé de aderência?”. A Escritura não menciona tal distinção. Diz o apóstolo: “Há uma fé, e uma esperança de nossa vocação”; uma fé cristã, salvadora; “como há um Senhor”, em quem nós cremos, e “um Deus e Pai de todos nós”. E é certo que esta fé necessariamente Implica em certeza (que aqui é apenas outra palavra designativa de evidência, sendo difícil dizer qual seja a diferença entre elas), de que Cristo me amou e deu-se a si mesmo por mim. Porque “o que crê” com verdadeira e viva fé, “tem o testemunho em si mesmo”: “o Espírito testifica com seu espírito que ele é filho de Deus”. “Porque é filho, Deus enviou o Espírito de seu Filho a seu coração, clamando: Abba, Pai”; dando-lhe certeza de que ele é filho e uma confiança filial nele. Observe-se, porém, que, pela própria natureza das coisas, a certeza vai adiante da confiança. Porque o homem não pode ter confiança final em Deus enquanto não se reconhece como filho de Deus. Portanto, a confiança, crença, segurança, adesão, ou qualquer que seja o nome por que se chame, não é o primeiro, como supõem alguns, mas o segundo ramo ou ato de fé.
É por essa fé que somos salvos, justificados e santificados, tomando aquela palavra em seu sentido mais elevado. Mas, como somos justificados e santificados pela fé? Este é o nosso terceiro objeto de indagação. E sendo este o ponto principal em debate, e um ponto de importância invulgar, não é fora de propósito dar-lhe mais destacada e particular consideração.
Primeiro, como somos justificados pela fé? Em que sentido isto se deve entender? Respondo: a fé é a condição, e a única condição, da justificação. É a condição: ninguém é justificado, senão o que crê: sem fé ninguém é justificado. E é a única condição: só ela é suficiente para a justificação. Todo o que crê é justificado, qualquer que seja o mais que possua, ou que não possua. Em outras palavras: ninguém é justificado enquanto não crer; todo homem, quando crê, é justificado.
“Mas Deus não manda que nos arrependamos também? E ainda, “produzir frutos dignos de arrependimento”? – cessar, por exemplo, de fazer o mal e aprender a fazer o bem? E uma e outra coisa não são da maior necessidade, tanto mais que, se negligenciarmos deliberadamente alguma delas, de modo nenhum poderemos razoavelmente esperar ser Justificados? Se assim é, como se pode dizer que a fé seja a única condição da justificação”? Indubitavelmente Deus tanto nos manda que nos arrependamos e produzamos frutos dignos de arrependimento que, se voluntariamente os negligenciarmos, de modo nenhum poderemos razoavelmente esperar ser justificados: por isso, tanto o arrependimento como os frutos dignos de arrependimento são, em certo sentido, necessários à justificação. Mas eles não são necessários no mesmo sentido em que o é a fé, nem no mesmo grau. Não no mesmo grau: porque aqueles frutos somente são necessários condicionalmente; se houver tempo e oportunidade para a realização deles. De outro modo, um homem pode ser justificado sem eles, como foi o ladrão na cruz (se pudermos tratá-la por este nome; porque um escritor moderno descobriu que ele não era ladrão, mas uma pessoa muito honesta e respeitável!); mas não pode ser justificado sem fé; isto é impossível. Por outro lado, tenha o homem todo o arrependimento, e todos os frutos possíveis do arrependimento; todavia, nada disso lhe aproveita de modo nenhum; não será justifica do até que creia. Mas no momento em que crê, com ou sem aqueles frutos, com maior ou menor arrependimento, será justificado. Não no mesmo sentido: porque o arrependimento e os frutos apenas são remotamente necessários; necessários em relação à fé, enquanto que a fé é a única condição que é imediata e proximamente necessária à justificação.
“Credes, porém, que somos santificados pela fé? Sabemos que credes que somos Justificados pela fé; mas não credes, e consequentemente ensinais, que somos santificados pelas nossas obras?”. Assim tem sido franca e veementemente afirmado nestes vinte e cinco anos, mas eu tenho constantemente declarado exatamente o contrário, e isto por todos os modos. Tenho constantemente testificado, em público e em particular, que tanto somos santificados como justificados pela fé. E na verdade uma destas grandes verdades abundantemente ilustra a outra. Exatamente como somos justificados pela fé, somos santificados pela fé. A fé é a condição, e a condição única, da santificação, exatamente como o é da justificação. É a condição: ninguém é santificado, senão o que crê que sem fé ninguém será santificado. E é a única condição: só ela é suficiente para a santificação. Todo o que crê é santificado, tenha alguma coisa mais ou não tenha. Em outras palavras: ninguém é santificado enquanto não crer; todo homem é santificado quando crê.
“Mas não há um arrependimento consequente à justificação, assim como um arrependimento prévio? E não compete a todos os que são justificados serem zelosos de boas obras? Sim, estas não são tão necessárias que, se o homem voluntariamente as negligenciar, não poderá razoavelmente esperar que jamais seja santificado, no pleno sentido da palavra, isto é, aperfeiçoado em amor? Demais, poderá ele crescer plenamente em graça, no amável conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo? E pode ele conservar a graça que Deus já lhe tenha dado? Pode ele perseverar na fé que recebeu, ou no favor de Deus? Não reconheceis isto e constantemente o afirmais? Mas, se assim é. Como se pode dizer que a fé seja a única condição da santificação?”.
Reconheço tudo isso e constantemente o sustento como a verdade de Deus. Reconheço que há um arrependimento consequente à justificação, assim como há um arrependimento prévio. E cabe a todos os que são justificados serem zelosos de boas obras. Estas são tão necessárias, que se o homem voluntariamente as negligenciar, não poderá razoavelmente esperar que jamais seja santificado; ele não pode crescer em graça, na imagem de Deus, na posse da mente que havia em Cristo Jesus; não pode conservar a graça que já tenha recebido, nem pode perseverar na fé ou no favor de Deus. Qual a inferência que podemos tirar daí? Que tanto o arrependimento, corretamente entendido, como a prática de todas as boas obras – obras de piedade e obras de misericórdia (agora propriamente assim chamadas, desde que elas procedam da fé), são, em certo sentido, necessárias à santificação.
Digo: “arrependimento corretamente entendido”, porque este não se deve confundir com o primeiro arrependimento. O arrependimento consequente à justificação é muitíssimo diferente do que a precede. Aquele não implica em culpa, em nenhum sentimento de condenação, em nenhuma consciência da ira de Deus. Não pressupõe qualquer dúvida do favor de Deus ou qualquer “temor que produza tormento”. É propriamente uma convicção, operada pelo Espírito Santo, do pecado que ainda permanece em nosso coração; ó φρνημασαρκος – a mente carnal que “ainda permanece” (como diz nossa igreja), “mesmo nos que são regenerados”; embora ela não mais reme, nem agora tenha domínio sobre eles. É a convicção de nossa inclinação para o mal, de um coração propenso à apostasia, da perdurável tendência da carne a cobiçar contra o espírito. Algumas vezes a não ser que constantemente vigiemos e oremos, ele deseja orgulhar-se; outras vezes quer irar-se; outras, ambiciona amar o mundo, amar o descanso, amar as honras, ou amar os prazeres mais do que a Deus. É uma convicção da tendência de nosso coração para a obstinação, para o ateísmo ou idolatria; e, acima de tudo, para a incredulidade, pela qual, por um milhar de meios e sob um milhar de pretexto, estamos sempre nos desgarrando, mais e mais, do Deus vivo.
A essa convicção do pecado que permanece em nossos corações, junta-se uma clara convicção do pecado que permanece em nossas vidas, misturando-se ainda a todas as nossas palavras e ações. Nas melhores palavras e obras agora discernimos certa mistura de mal, seja no seu espírito, na sua matéria ou no seu modo de ser; algo que não poderia suportar o reto juízo de Deus, se Ele fosse ao extremo de assinalar o que se faz erroneamente. Onde menos esperando, ai achamos um traço de orgulho, de obstinação, de incredulidade, ou idolatria, de modo que mais nos envergonhamos agora de nossas melhores ações do que primitivamente o faríamos em face de nossos piores pecados; e daí não podemos deixar de sentir que elas estão tão longe de ter em si mesmas qualquer coisa de meritório, sim, tão longe estão de ser capazes de suportar os olhares da divina Justiça, que em razão delas também nós seriamos culpados diante de Deus, se não tivessem por si o sangue do testamento.
A experiência mostra que, juntamente com a convicção do pecado que permanece em nossos corações e mistura-se a todas as nossas palavras e atos, assim como da culpa em que, por essa causa, deveríamos incorrer, se não fôssemos constantemente aspergidos pelo sangue propiciador, mas uma coisa, se acha implícita nesse arrependimento: a convicção de desamparo, de nossa inteira incapacidade de nutrir um bom pensamento, ou de conceber um bom desejo, e muito menos de dizer uma palavra justa ou realizar uma boa ação, a não ser através da graça de Deus, de sua graça poderosa, primeiro advertindo-nos e depois acompanhando-nos a todo momento.
“Mas quais são as boas obras cuja prática afirmais ser necessária à santificação?”. Primeiro, todas as obras de piedade, tais como culto público, culto doméstico, oração privada; participação da ceia do Senhor; estudo das Escrituras, ouvindo-as, lendo-as, meditando-as; e uso do jejum e abstinência até o limite permitido pela saúde de nosso corpo.
Em segundo lugar, todas as obras de misericórdia, quer se relacionem com o corpo, quer com a alma dos homens, tais como: alimentar os famintos, vestir os nus, dar pousada ao peregrino, visitar os que estão presos ou enfermos, ou que por qualquer outro modo estejam aflitos; procurar instruir os ignorantes, despertar o pecador sonolento. vivificar os indiferentes, confirmar os vacilantes, confortar os conturbados, socorrer tentado, ou contribuir de qualquer maneira para salvar as almas da morte. Esse é o arrependimento, tais são os “frutos dignos de arrependimento”, necessários à plena santificação. Este é o caminho no qual Deus determinou que seus filhos esperassem pela completa salvação.
Daí resulta a maldade extrema daquele conceito, inocente em aparência, segundo o qual não há pecado no crente; que todo pecado é destruído, raiz e ramos, no momento em que o homem é justificado. Por entravar inteiramente aquele arrependimento, tal conceito obstrui inteiramente o caminho da santificação. Não há lugar para o arrependimento naquele que acredita não haver pecado em sua vida, nem em seu coração: consequentemente, não há lugar para o aperfeiçoamento em amor, ao qual aquele arrependimento é absolutamente necessário.
Dai pode igualmente resultar que não há perigo possível em esperar assim pela completa salvação. Porque, suposto que estivéssemos enganados, suposto que tais bênçãos Jamais fossem ou pudessem ser alcançadas, ainda assim nada perderíamos: aquela expectação até nos vivifica mediante o uso dos talentos que Deus nos deu; sim, utilize-se o homem de todos eles, de modo que, quando nosso Senhor vier, Ele receba o que é seu com acréscimo.
Mas, retrocedendo um pouco: embora se admita que tanto esse arrependimento como seus frutos sejam necessários à plena salvação, não são, todavia, necessários no mesmo sentido da fé, nem no mesmo grau. Não no mesmo grau: porque aqueles frutos são necessários apenas, condicionalmente, se houver tempo e oportunidades para eles; se não houver, o homem pode ser santificado sem eles. Mas não pode ser santificado sem fé. De outro lado, tenha o homem o máximo arrependimento e o máximo de boas obras: tudo isto de nada lhe aproveitará – não será santificado enquanto não crer: Mas no momento em que ele crer, com ou sem esses frutos, e ainda com maior ou menor quantidade desse arrependimento, ele é santificado. Não no mesmo sentido: porque esse arrependimento e esses frutos são necessários apenas remotamente, necessários à continuidade de sua fé, como ao seu aumento, enquanto que a fé é imediata e diretamente necessária à santificação. Permanece de pé a afirmativa de ser a fé a única condição imediata e proximamente necessária à santificação.
“Mas, qual é a fé pela qual somos santificados; salvos do pecado e aperfeiçoados em amor?”. É uma divina evidência ou convicção, primeiro, de que Deus o prometeu nas Santas Escrituras. Até que tenhamos perfeitamente cumprido isto, não há um passo dado para frente. E alguém podia imaginar que não haja necessidade de nenhuma palavra mais para convencer o homem razoável, do que a promessa antiga: “Então eu circuncidarei teu coração, e o coração de tua semente, para amares ao Senhor teu Deus de todo teu coração, e de toda tua alma, e de toda tua mente”. Como isto expressa, claramente o aperfeiçoamento em amor! Como implica fortemente em salvação de todo o pecado! Porque, enquanto o amor empolga todo o coração, que lugar haverá ali para o pecado?
É, em segundo lugar, uma divina evidência ou convicção de que Deus é capaz de cumprir o que prometeu. Mesmo admitindo, portanto, que “aos homens é impossível” “tirar uma coisa pura de uma coisa impura”, purificar o coração de todo o pecado e enchê-lo de toda a santidade; ainda isto não traz dificuldade ao caso, visto que “a Deus tudo é possível”. E certamente ninguém jamais imaginou que isso fosse possível a qualquer poder a não ser ao do Todo-poderoso! Se Deus, pois, fala, será feito: Deus disse: “Haja luz e” há “luz”!
É, em terceiro lugar, uma evidência divina, ou convicção, de que Deus pode e quer fazê-lo agora. E por que não? Um momento para Ele não é o mesmo que mil anos? Ele não precisa de mais tempo para cumprir o que seja de sua vontade. E Ele não pode ter necessidade de merecimento ou aptidão da parte das pessoas a quem seja de seu agrado honrar, nem precisa esperar por essas qualidades. Podemos, pois, literalmente dizer em qualquer tempo: “Hoje é o dia da salvação!”. “Hoje, Se ouvirdes sua voz, não endureçais os vossos corações!”. “Eis que todas as coisas já estão preparadas: vinde às bodas”!
A esta confiança, em que Deus tanto pode como quer santificar-nos agora, precisa ser acrescentada mais uma coisa: uma divina evidência ou convicção de que Ele o faça naquela hora isto se faz: Deus diz no íntimo da alma: “Faça-se-te segundo tua fé!”. Então a alma se torna limpa de toda mancha do pecado; é purificada “de toda injustiça”. O crente então experimenta a profunda significação daquelas solenes palavras; “Se andarmos na luz como Ele está na luz, temos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo pecado”.
“Mas Deus opera na alma essa grande obra gradual ou instantaneamente?”. Talvez possa ser gradualmente operada em alguns: quero significar que neste sentido – eles, os crentes, não atentam para o momento particular em que o pecado deixa de existir. Mas seria infinitamente desejável que, sendo esta a vontade de Deus, a santificação se desse instantaneamente; que o Senhor destruísse o pecado “pelo sopro de sua boca”; em um momento, num piscar de olhos. E isto E, geralmente faz, sendo este um fato de que há suficiente evidência para satisfazer a qualquer pessoa destituída de preconceitos. Tu, pois, espera por isto a todo momento. Espera pela santificação no caminho acima descrito, em todas aquelas boas obras para as quais foste “criado de novo em Cristo Jesus”, Não há, então, perigo algum: não serás pior, caso não fores melhor, por causa daquela expectação. Porque mesmo que fosses desiludido em tua esperança, ainda não perderias coisa alguma. Mas não serás decepcionado em tua Esperança: ela virá e não tardará. Espera por ela cada dia, a cada hora, a todo momento! Por que não nesta hora, neste momento? Certamente que podes esperá-la agora, se creres que ela vem pela fé. E por este sinal podes seguramente conhecer se a procuras pela fé ou pelas obras. Se for pelas obras, tens necessidade de fazer alguma coisa primeiro, antes que possas ser santificado. Pensas: devo primeiro ser ou fazer isto ou aquilo. Então, até este dia estás buscando a santificação pelas obras. Se a buscares pela fé, podes esperar por ela como és; e, se esperas como estás, então esperas por ela agora mesmo. É importante observar que há uma conexão inseparável entre estes três pontos: esperá-la pela fé, esperá-la como estás e esperá-la agora. Negar um destes pontos é como negar os demais; concordar com um deles é concordar com todos. Crês que és santificado pela fé? Sê, logo, fiel a teus princípios – e espera por esta bênção exatamente como estás, nem melhor, nem pior: como um pobre pecador que ainda nada tem com que pagar nada a alegar, senão que “Cristo morreu”. E se esperas por ela como estás, então espera-a agora. Não te detenhas por coisa alguma: por que o farias? Cristo está pronto – e Ele é toda tua necessidade. Ele está esperando por ti: Ele está à porta! Diz” do intimo de tua alma:
“Então, entra, Hóspede celestial,E nem daqui te retires nunca;Ceia comigo, e permite que o banqueteSeja um amor que dure para sempre!”
John Wesley (1703-1791) – Foi um pastor metodista e teólogo cristão britânico. Foi o líder e precursor do movimento metodista ocorrido na Inglaterra no século XVIII.