Parece-me existir uma grande confusão entre a nossa personalidade sempre imutável, sua inerente responsabilidade, e o pecado que habita em nós, bem como os pecados que cometemos. O homem é espírito, alma e corpo (Gn 2:7), um ser responsável. O pecado foi introduzido nele na queda como uma coisa distinta, um princípio do mal (Gn 3; Rm 5:12). O resultado foram os pecados, os frutos maus. Estando sob o poder do pecado, a tendência foi a carne tornar-se predominante, e assim o termo carne foi estampado em sua condição moral. “Então disse o Senhor: Não contenderá o meu Espírito para sempre com o homem; porque ele também é carne” (Gn 6:3), e no que se refere a Deus, o homem se tornou morto em ofensas e pecados. Ora, a Epístola aos Romanos revela de forma distinta esse triplo conceito. Existe o homem responsável, os pecados que comete, e o pecado que entrou nele na queda.
Do capítulo um, versículos 18 ao 22, de Romanos, até o capítulo 2, versículos 1 ao 16, temos diante de nossos olhos a responsabilidade dos pagãos, como consequência da luz da Criação que brilha sobre eles e de sua consciência por terem o conhecimento do bem e do mal. “Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei; os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os” (Rm 2:14-15). O julgamento de Deus é contra os pagãos por não andarem de acordo com esse conhecimento que possuem. Portanto Deus se indigna com o homem responsável por seus pecados (o pecado não é responsável), e Deus julgará o homem por ser responsável por seus pecados e por rejeitar a tolerância e bondade de Deus.
As passagens de Romanos 2:2-6 e 3:1-20 abordam as responsabilidades do judeu, como também seus privilégios, trazendo a Lei como a medida dessas responsabilidades, e ele, o judeu responsável, como sendo julgado pela lei que, além de provar ser ele culpado de pecados, lhe dá o conhecimento do pecado. “Ora, nós sabemos que tudo o que a lei diz, aos que estão debaixo da lei o diz, para que toda a boca esteja fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus. Por isso nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado” (Rm 3:19-20). O caráter moral universal do homem é descrito da cabeça aos pés na passagem de Romanos 5:10-18, depois a lei é aplicada, provando ser ele culpado de pecados e dando-lhe o conhecimento do pecado.
Assim, as três coisas são claramente destacadas na história da responsabilidade do homem. Existe ele próprio – o seu “eu” responsável – culpado de pecados e, se ele aprender, a lei dará a ele o conhecimento do pecado. “Porque, como pela desobediência de um só homem, muitos foram feitos pecadores, assim pela obediência de um muitos serão feitos justos. Veio, porém, a lei para que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado abundou, superabundou a graça” (Rm 5:19-20).
Em Romanos capítulo 3, versículo 21, e o capítulo 5 inteiro temos a doutrina da salvação do homem dessa condição perdida. Ele é salvo de seus pecados e do poder do pecado. Deus é revelado em três aspectos, que correspondem às três condições em que o homem é visto. Deus é o Justificador do culpado nos capítulos 3 e 4 de Romanos; ele é o Reconciliador do homem, seu inimigo, em Romanos 5, versículos 1 ao 12, e é o Libertador do homem nascido em pecado em Romanos 5:12 e em todo o capítulo 8 da mesma carta.
O assunto até Romanos 5:12 são os pecados, e a partir do capítulo 5, versículo 12 e em Romanos 8 o assunto é o pecado. O sangue de Cristo é apresentado a Deus, pois todos pecaram; e Deus, com base nisso, revela a sua justiça, justificando a todos que creem em Jesus. Os pecados, representados como dívidas nas escrituras, são remidos ou perdoados, e o homem é justificado ou libertado da culpa (Rm 3:23–26). O pecador que crê é perdoado, seus pecados são cobertos, o pecado não lhe é imputado. “Bem-aventurados aqueles cujas maldades são perdoadas, e cujos pecados são cobertos. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputa o pecado.” (Rm 4:7-8). Todos os seus pecados foram levados por Jesus na cruz e, portanto, nunca lhe poderão ser imputados. Ele é liberado de toda acusação e considerado justo. “Ora, não só por causa dele está escrito, que lhe fosse tomado em conta, mas também por nós, a quem será tomado em conta, os que cremos naquele que dentre os mortos ressuscitou a Jesus nosso Senhor; o qual por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa justificação… E não somente isto, mas também nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual agora alcançamos a reconciliação” (Rm 4:23-25; 5:11).
De Romanos 5:12 ao final do capítulo 8 o homem é visto como conectado a Adão, nascido em pecado, e Deus é visto como seu Libertador – primeiro do atual poder do pecado, no que diz respeito à sua alma; depois quanto ao seu corpo quando o Senhor vier. Mas aqui veremos claramente a distinção entre o “eu” responsável (o homem, composto de espírito, alma e corpo) e o pecado que nele habita, seja em seu estado não convertido ou salvo. “Como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram” (Rm 5:12). Isso claramente traz à tona, em primeiro lugar os homens, em segundo a entrada do pecado, e em terceiro o fato de que todos pecaram.
A figura sempre usada é a do pecado como um mestre ou rei que governa o homem, e o homem é visto como seu escravo. Em Romanos 5:12, o pecado entrou no mundo; em Romanos 5:21, o pecado reinou até a morte; em Romanos 6:23, ele paga um salário aos seus servos, os homens, a saber, a morte.
Ora, tudo isso se refere aos que não foram despertados, ao homem nascido em pecado. O homem, portanto, é escravo do pecado até ser libertado. Romanos 5:18-19 mostra a base da libertação; o capítulo 6 mostra a libertação aplicada: na morte de Cristo o homem morreu para o pecado e está vivo para Deus em uma nova condição. Portanto agora o pecado já não tem mais domínio sobre ele, ele não está mais sob a lei, mas sob a graça. Ele era servo do pecado, mas, tendo obedecido à forma de doutrina que lhe foi confiada, foi libertado. O pecado ainda está nele, mas ele não deve deixá-lo reinar. Tendo agora se tornado um servo de Deus, ele tem seus frutos para a santidade e no final a vida eterna no que diz respeito ao seu corpo.
“Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça. Pois que? Pecaremos porque não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça? De modo nenhum. Não sabeis vós que a quem vos apresentardes por servos para lhe obedecer, sois servos daquele a quem obedeceis, ou do pecado para a morte, ou da obediência para a justiça? Mas graças a Deus que, tendo sido servos do pecado, obedecestes de coração à forma de doutrina a que fostes entregues. E, libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça. Falo como homem, pela fraqueza da vossa carne; pois que, assim como apresentastes os vossos membros para servirem à imundícia, e à maldade para maldade, assim apresentai agora os vossos membros para servirem à justiça para santificação. Porque, quando éreis servos do pecado, estáveis livres da justiça. E que fruto tínheis então das coisas de que agora vos envergonhais? Porque o fim delas é a morte. Mas agora, libertados do pecado, e feitos servos de Deus, tendes o vosso fruto para santificação, e por fim a vida eterna. Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm 6:14:23).
Romanos 7 mostra como a lei, aplicada à condição do homem nascido em pecado, não poderia nem libertá-lo e nem justificá-lo. Tão útil quanto um professor que ensina, ela poderia dar ao homem o conhecimento do pecado como um princípio maligno distinto existente nele, caso suas lições fossem aprendidas, mas ao invés de libertá-lo ela só poderia condená-lo. Ela é representada como um marido, do qual, da mesma forma como o mestre no caso do pecado, o pecador que crê é libertado pela morte de Cristo.
A lei não é pecado, ela é santa, justa e boa; e isso por duas razões – ela dá o conhecimento do pecado e condena à morte o homem que dá lugar aos seus primeiros movimentos e comete pecados. O homem na carne é a árvore má, produzindo fruto para a morte, e o pecado é a seiva venenosa na árvore. Mas, exceto no versículo 5 de Romanos 7, a figura usada é sempre a de um mestre e um escravo, e eu não conheço nenhum lugar das escrituras onde o pecado seja representado por uma árvore. O homem é representado por uma árvore, mas não o pecado. Então no versículo 8 o pecado opera no homem todo tipo de luxúria; no versículo 11, o pecado me enganou e me matou; no versículo 13 o pecado, por meio do mandamento, se tornou extremamente pecaminoso. Mas em todos esses versículos, o pecado é visto como distinto do homem, que é o ser responsável.
Em Romanos 7, nos versículos 14–25, temos uma alma vivificada, que chega ao conhecimento da libertação: “Porque bem sabemos que a lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido sob o pecado. Porque o que faço não o aprovo; pois o que quero isso não faço, mas o que aborreço isso faço. E, se faço o que não quero, consinto com a lei, que é boa. De maneira que agora já não sou eu que faço isto, mas o pecado que habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem. Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço. Ora, se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o pecado que habita em mim. Acho então esta lei em mim, que, quando quero fazer o bem, o mal está comigo. Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra lei, que batalha contra a lei do meu entendimento, e me prende debaixo da lei do pecado que está nos meus membros. Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte? Dou graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor. Assim que eu mesmo com o entendimento sirvo à lei de Deus, mas com a carne à lei do pecado.”.
Primeiro, ao se comparar com as reivindicações espirituais da Lei, ele se vê carnal, vendido sob o pecado, um escravo. Mas então, ao descobrir que deseja fazer o certo, ele encontra uma distinção entre o seu eu vivificado e o pecado que habita nele, mas é uma questão de conhecimento e experiência. Então, em Romanos 7:18 ele descobre que não tem poder sobre o mal, apesar de ter sido vivificado, pois em sua carne não habita bem algum. ” Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem.”. A luta continua até que ele descubra ser um homem miserável, mesmo que vivificado; e quem o livrará? Ele volta o seu olhar para Deus e encontra em Deus um Libertador que lhe deu a Cristo como sua vida, o qual, pela morte, abriu um caminho livre através da morte. Então ele descobre que está em Cristo, e não mais em Adão. Isto porque o Espírito de vida do Cristo ressuscitado e glorificado, agora comunicado a ele, o liberta, no presente, da lei do pecado e da morte. O pecado na carne é condenado na cruz, mas não há condenação para o homem que está em Cristo Jesus. Ora, em todas estas passagens encontramos o homem em sua personalidade distinta, seja ele não convertido, vivificado ou totalmente liberto, mas mesmo assim elas se referem ao homem, sendo o pecado um princípio distinto dentro dele. É uma questão entre o pecado, quando o homem chega ao conhecimento dele, ou de Deus como Libertador por intermédio de Cristo, já que a lei, como vimos, não tem poder de libertar.
O homem, então, permanece sempre em sua personalidade distinta – primeiro, visto em Romanos capítulos 1, 2 e 3:20 como objeto de juízo e diretamente responsável perante Deus; segundo, de Romanos 3:12 até o capítulo 8, encontrando a justificação de seus pecados, a reconciliação de sua inimizade, a libertação do poder do pecado em Deus por intermédio de Cristo, para finalmente, quando o Senhor vier, ele ser liberto, no que diz respeito ao seu corpo, da presença do pecado. Mas é a mesma pessoa que é justificada, reconciliada, libertada e redimida, ainda que inteiramente criada de novo e no final feita como o Senhor Jesus quando ele vier. Os pecados dessa pessoa, vistos como dívidas, são perdoados no momento em que ela confia no sangue de Cristo, não porque ela tenha morrido com Cristo, mas porque Cristo morreu por ela. Ela é libertada de seu pecado por ter morrido com Cristo, e por Cristo ter ressuscitado e sido glorificado, sendo o presente de Deus para ela a vida eterna. A palavra de Deus, por meio da morte de Cristo, purifica sua alma do pecado – ela morreu para o pecado —, além de produzir nela uma nova natureza distinta, de modo que o “eu” agora é distinto da carne; essa pessoa tem agora duas naturezas.
Além disso, pela comunicação a ela do Cristo glorificado, ela está agora liberta em espírito, aguardando a libertação plena que será aplicada ao seu corpo quando o Senhor Jesus vier. “E, se o Espírito daquele que dentre os mortos ressuscitou a Jesus habita em vós, aquele que dentre os mortos ressuscitou a Cristo também vivificará os vossos corpos mortais, pelo seu Espírito que em vós habita… E não só ela, mas nós mesmos, que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós mesmos, esperando a adoção, a saber, a redenção do nosso corpo. Porque em esperança fomos salvos. Ora a esperança que se vê não é esperança; porque o que alguém vê como o esperará? Mas, se esperamos o que não vemos, com paciência o esperamos” (Rm 8:11, 23-25). Então ela será libertada da presença do pecado e, graças a Deus, haverá um verdadeiro brado, ” Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei. Mas graças a Deus que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Cor 15:55-57).
Caro leitor, espero que você esteja entre este povo feliz, e confio que alguns queridos filhos de Deus serão esclarecidos em suas almas, e o senso de sua responsabilidade também será despertado quando virem nas Escrituras a distinção entre o “eu”, o pecado e os pecados.
Lord Adalbert Cecil (1841-1889).