O Cânon da Bíblia

O sentido desta palavra tem diversas aplicações, dentre elas, Escrituras Sagradas, consideradas como regra de fé e prática. A palavra cânon é de origem grega. Empregou-se, nesta acepção pelos primeiros doutores da Igreja, mas a ideia é mais remota. Para que um livro tivesse lugar entre os outros livros da Bíblia, precisava ser “canônico”; outro livro, sem os requisitos necessários para tal fim, chamava-se “não canônico”.

O Cânon do Antigo Testamento

A literatura sagrada evoluiu gradativamente e foi cuidadosamente vigiada. Os dez mandamentos escritos em tábuas de pedra, e que eram a constituição de Israel, foram guardados em uma arca (Ex 40:20). Os estatutos foram registrados no livro do pacto (Ex 20, 23 – 23:33 – 24:7). O livro da lei, escrito por Moisés, era colocado ao lado da arca (Dt 31:24-26). A esta coleção se ajuntaram os escritos de Josué (Js 24. 26). Samuel escreveu a lei do reino e a depositou diante do Senhor (I Sm 10:25). Em tempo do rei Josias, o livro da lei do Senhor, o bem conhecido livro, foi encontrado no Templo e reconhecido pelo rei, pelos sacerdotes, pelo povo, pelas autoridades e pelos anciãos (II Rs 22:8-20). Do Livro encontrado se tiraram cópias (Dt 17:18-20). Os profetas reduziram as suas palavras a escrito (Jr 36:32), e eram familiarizados reciprocamente com os seus escritos que os citavam como padrões autorizados (Is 2:2-4; Mq 4:1-3). A lei e os profetas eram tidos como produções autorizadas; inspiradas pelo Espírito Santo, e cuidadosamente guardadas por Jeová (Zc 1:4; 7:7, 12). A lei de Moisés compreendendo os cinco primeiros livros da Bíblia, circulava como uma porção distinta da literatura sagrada no tempo de Esdras em cujas mãos esteve (Ed 7:14), sendo douto no conhecimento dela (6:11). A pedido do povo, ele leu publicamente no livro da Lei (Ne 8:1, 5, 8). Por este tempo, e antes de o cisma, entre os judeus e os samaritanos, chegar a seu termo, o Pentateuco foi levado para Samaria. O colecionamento dos profetas menores em um grupo de doze, é confirmado por Jesus, filho de Siraque, como em voga, no ano 200 a.C. (Ecclus 49:10). Sua linguagem dá a entender a existência do grande grupo formado pelos livros de Josué, Juizes, Samuel, Reis, Isaías, Jeremias, Ezequiel e os doze profetas menores, que formavam a segunda divisão do cânon hebreu (46-49).

A existência da tríplice divisão das Escrituras em “Lei, Profetas e os outros que os acompanharam”; ou “a Lei, os Profetas e os outros livros”, ou, “a Lei, os Profetas e o resto dos livros”, é confirmada já no ano 182 a.C. juntamente com a existência de uma versão grega da mesma época, atestada pelo neto de Jesus, filho de Siraque (Ecclua, prólogo). Em uma passagem do I Macabeus 12:9, datada do ano 100 a.C. se faz referência a livros sagrados “que estão em nossas mãos”. O judeu Filo, que nasceu em Alexan­dria no ano 20 a.C. e ali morreu no reinado de Cláudio, possuía o cânon, e citou quase todos os livros, com exceção dos Apócrifos. O Novo Testamento cita as “Escrituras” como escritos de autoridade religiosa (Mt 21:42; 26:56; Mc 14:49; Jo 10:35; II Tm 3:16); como livros santos (Rm 1:2; II Tm 3:15); e como Oráculos de Deus (Rm 3:2; Hb 5:12; I Pe 4:11); e menciona a tríplice divisão em Moisés, Profetas e Salmos (Lc 24:44); cita e faz referências a todos os outros livros, exceto Obadias e Naum, Esdras, Ester, Cântico dos Cânticos e Eclesiastes.

Josefo que foi contemporâneo do apóstolo Paulo, cujos escritos datam do ano 100 a.D., falando do seu povo, diz: “Nós temos apenas 22 livros, contendo a história de todo o tempo, livros em que “nós cremos”, ou segundo geralmente se diz, livros aceitos como divinos”, e o mesmo escritor exprime em termos bem fortes, afirmando a exclusiva autoridade destes escritos, e continua, dizendo: “Desde os dias de Artaxerxes até os nossos dias, todos os acontecimentos estão na verdade escritos; mas estes últimos registros não têm merecido igual crédito, como os anteriores, por causa de não mencionarem a sucessão exata dos profetas. Há uma prova prática do espírito em que tratamos as nossas Escrituras; apesar de ser tão grande o intervalo de tempo decorrido até hoje, ninguém se aventurou a acrescentar, a tirar, ou a alterar uma única sílaba; faz parte da natureza de cada judeu, desde o dia em que nasce, considerar estas Escrituras como ensinos de Deus; confiar nelas, e, se for necessário, dar alegremente a vida, em sua defesa” . Josefo apresenta o conteúdo das Escrituras sob três divisões:

  1. “Cinco livros pertencem a Moisés, e contêm as suas leis e as tradições sobre a origem da humanidade, até a sua morte”.
  2. Desde a morte de Moisés até Artaxerxes, escreveram os profetas que viveram depois dele, os fatos de seu tempo, em treze livros”. Josefo acompanhou o arranjo feito nos livros da Escritura pelos tradutores de Alexandria. Os treze livros são provavelmente, Josué, Juízes com Rute, Samuel, Reis, Crônicas, Esdras com Neemias, Ester, Jó, Daniel, Isaías, Jeremias com as Lamentações, Ezequiel e os doze Profetas Menores.
  3. Os quatro livros restantes, contêm hinos a Deus e preceitos de conduta para a vida humana. Sem dúvida ele se refere aos Salmos, ao Cântico dos Cânticos, aos Provérbios e ao Eclesiastes.

Até aqui, os fatos. Havia uma tradição corrente, que o cânon fora arranjado no tempo de Esdras e de Neemias. Josefo, já citado, fala da crença universal de seus patrícios de que nenhum livro havia sido acrescentado desde o tempo de Artaxerxes, isto é, desde Esdras e Neemias. Uma extravagante legenda do fim do primeiro século da era cristã deu curso a uma tradição de que Esdras havia restaurado a lei, é mesmo o Antigo Testamento inteiro por se haverem perdidos os exemplares guardados no Templo (Ne 14:21, 22, 40). Afirma a tal legenda que os judeus da Palestina, naquela época, reconheciam os livros canônicos, como sendo vinte e quatro. Uma passagem de duvidosa autenticidade e de data incerta, talvez escrita 100 anos antes de Cristo (II Macabeus 2:13), alude à atividade de Neemias em conexão à segunda e terceira divisão do cânon. Ireneu transmite a tradição assim: “De­pois que os sagrados escritos foram destruídos, no exílio, sob o domínio de Nabucodonosor, quando os judeus, depois de setenta anos, voltaram do cativeiro para a sua pátria, Ele (Deus) nos dias de Artaxerxes, inspirou a Esdras, o sacerdote, da tribo de Levi, para arranjar de novo todas as pa­lavras dos profetas dos dias passados, e restaurar para uso do povo a legislação de Moisés”. Elias, levita, escrevendo em 1588, fala da crença que o povo tinha, dizendo: “No tempo de Esdras os 24 livros ainda não estavam unidos em um volume. Esdras e seus associados fizeram deles um volume dividido em três partes, a lei, os profetas e a hagiógrafa”. Esta tradição contém verdades. Se pode ser aceita em todos os seus particulares, isso depende de determinar a data em que certo, livros foram escritos, tais como Neemias e Crônicas.

O Pentateuco, como trabalho de Moisés, compreendendo a incorporação das leis fundamentais da nação, formou uma divisão do cânon, e com direitos firmados na cronologia, ocupou o primeiro lugar na coleção dos livros.

A segunda divisão dos livros teve a designação de proféticos por serem escritos pelos seus autores assim chamados. Estes livros eram em número de oito, Josué, Juízes, Samuel, e Reis, denominados os primeiros profetas, e Isaías, Jeremias, Ezequiel e os doze profetas menores, denominados os últimos profetas. O núcleo da terceira divisão é formado de seções de livros de Salmos e Provérbios. Tinham duas feições distintas: eram essencialmente poéticos e os seus autores não eram oficialmente profetas. Atraíram para si todas as outras produções de literatura semelhante. A oração de Moisés no Salmo 90, não foi escrita por profeta, mas foi colocada nesta divisão dos livros da Escritura por ser produção poética. Pela mesma razão, as Lamentações de­ Jeremias, escritas por profeta, e sendo poesia, entraram na terceira divisão do cânon hebreu. Uma razão adicional existiu para separá-las de Jeremias, é que eram lidas por ocasião dos aniversários da destruição de ambos os templos, e por isso, foram postas com os quatro livros menores que eram lidos por ocasião de outros quatro aniversários, Cânticos, Rute, Eclesiastes e Ester, e formavam os cinco rolos, ou Megilloth. O livro de Daniel foi incluído nesta parte por ter sido escrito por homem que, posto dotado de espírito profético, não era oficialmente profeta. Com toda a probabilidade, as Crônicas foram escritas por um sacerdote e não profeta, e por esta razão, foram postas na terceira divisão do cânon.

Não sabemos por que estes livros se acham nesta divisão, quando é certo que alguns deles e partes deles que agora se acham nela, já existiam antes de Malaquias e Zacarias na segunda divisão. É conveniente que se diga que, conquanto o conteúdo das diversas divisões do cânon permanecessem inalteráveis, a ordem dos livros da terceira divisão variou de tempos em tempos; e mesmo na segunda divisão o Talmude dá Isaías entre Ezequiel e os Profetas Menores. Esta ordem dos quatro livros proféticos, Jeremias, Ezequiel, Isaías, e os Profetas Menores, foi evidentemente determinada pelo tamanho, dando a prioridade aos de maior volume. Logo no fim do primeiro século da nossa era, o direito de certos livros figurarem na terceira divisão do cânon, foi disputado. Não havia dúvida em pertencerem ao cânon. As discussões versaram sobre o conteúdo dos livros e sobre as dificuldades de harmonizá-los entre si. Estes debates, porém, eram meras exibições intelectuais. Não havia intenção de excluir do cânon qualquer destes livros, e sim tornar bem claro o direito que ele tinham aos lugares que ocupavam.

O Cânon do Novo Testamento

A igreja apostólica recebeu da igreja judaica a crença em uma regra de fé escrita. Cristo mesmo confirmou esta crença, apelando para o Antigo Testamento como a palavra de Deus escrita (Jo 5:37-47; Mt 5:17-18; Mc 12:36; Lc 16:31), instruindo os seus discípulos nela (Lc 24:45). Os apóstolos habitualmente referem-se ao Antigo Testamento como autoridade (Rm 3:2, 21; I Cor 4:6; Rm 15:4; II Tm 3:15-17; II Pe 1:21). Em segundo lugar, os apóstolos baseavam o seu ensino, oral ou escrito na autoridade do Antigo Testamento (I Cor 2:7-13; 14:37; I Ts 2:13; Ap 1:3), e ordenavam que seus escritos fossem lidos publicamente (I Ts 5:27; Cl 4:16-17; II Ts 2:15; II Pe 1:15; 3:1-2), enquanto que as revelações dadas à Igreja pelos profetas Inspirados, eram consideradas como fazendo parte, juntamente com as instruções apostólicas, do fundamento da Igreja (Ef 2:20). Era natural e lógico que a literatura do Novo Testamento fosse acrescentada à do Antigo, ampliando deste modo o cânon de fé. No próprio Novo Testamento se vê a intima relação entre ambos (I Tm 5:18; II Pe 3:1, 2, 16).

Nas épocas pós-apostólicas, os escritos procedentes dos apóstolos e tidos como tais, foram gradualmente colecionados em um segundo volume do cânon, até se completar o que se chama o Novo Testamento. Porquanto, desde o princípio, todo livro destinado ao ensino da Igreja em geral, endossado pelos apóstolos, quer fosse escrito por algum deles, quer não, tinha direito a ser incluído no cânon, e constituía doutrina apostólica. Desde os primeiros três séculos da Igreja, era baseado neste principio que se ajuntavam os livros da segunda parte do cânon. A coleção completa fez-se vagarosamente, por varias razões. Alguns dos livros só eram conhecidos como apostólicos em algumas Igrejas. Somente quando esses livros entraram no conhecimento do corpo cristão em todo o Império Romano, é que eles foram aceitos como de autoridade apostólica. O processo adotado foi lento, por causa ainda do aparecimento de vários livros heréticos e escritos espúrios, com pretensões de autoridade apostólica. Apesar da sua lentidão, os livros aceitos por qualquer igreja, eram considerados canônicos porque eram apostólicos. O ensino dos apóstolos era regra de fé, e lido nas reuniões do culto público. Já no principio do segundo século, os escritos apostólicos eram chamados Escrituras. Os Evangelhos segundo Marcos e Lucas entraram na Igreja pela autoridade de Pedro e Paulo, de que foram companheiros. Logo começaram os comentários a es­tes escritos, cuja fraseologia saturou a literatura da idade pós-apostólica.

São dignos de nota os seguintes fatos para explicar a rapidez com que a coleção dos Livros se estendeu a toda a Igreja. Os quatro Evangelhos entraram nas igrejas desde o principio do segundo século. A segunda epístola de Pedro (II Pe 3:16), mostra-nos que as epístolas de Paulo já haviam formado uma coleção de escritos familiares aos leitores das cartas de Pedro. Muito cedo aparecem as expressões “Evangelho” e “apóstolos” designando as duas par­tes do novo volume. A evidência sobre a canonicidade dos Atos Apostólicos, leva-nos à primeira metade do segundo século. Alguns livros, é certo, sofreram contestações por parte de certos grupos de igrejas, mas serve para provar que tais livros entraram no cânon depois de evidentes provas de sua autenticidade. Finalmente, vê-se que a Igreja da Síria, no segundo século, recebeu como canônicos todos os livros de que se compõe o atual Novo Testamento, exceto o Apocalipse, a epístola de Judas, a segunda de Pedro, a segunda e a terceira de João.

A Igreja Latina aceitou todos os livros, menos as epístolas de Pedro, a de Tiago, a terceira de João; a Igreja africana do norte aceitou todos os livros, exceto a epístola aos Hebreus, a segunda de Pedro e talvez a de Tiago. As coleções recebidas pelas mencionadas igrejas somente continham os livros que elas haviam recebido formalmente, como de autoridade apostólica, mas isto não prova a não existência de outros livros de igual procedência e autoridade. Os restantes eram universalmente aceitos no curso do terceiro século, apesar de opiniões diferentes a respeito de alguns deles. No decorrer dos tempos, e quando entramos na época dos concílios, o Novo Testamento aparece na lista dos livros canônicos como hoje o temos. No quarto século, dez dos padres da Igreja e dois concílios deixaram listas dos livros canônicos. Em três destas listam omitem o Apocalipse, contra o qual se levantaram objeções que desapareceram diante dos testemunhos abundantes em seu favor. As outras listas dão o Novo Testamento como hoje o temos. Em vista destes fatos, deduzimos:

  • Apesar de a formação do N.T. cm um volume ter sido morosa, nunca deixou de existir a crença de ser ele livro considerado como regra de fé primitiva e apostólica.
  • A história da formação do cânon do N.T. serve apenas para mostrar como se chegou gradualmente a conhecer os direitos que eles tinham para entrar no rol dos livros Inspirado.
  • As diferenças de opinião sobre quais os livros canônicos e sobre os graus de certeza em favor deles, veem-se nos escritos e nas Igrejas do segundo século. Este fato, pois, mais uma vez vem afirmar o cuidado e o escrúpulo das Igrejas em receber livros como apostólicos sem evidentes provas. Do mesmo modo se procedeu com referência aos livros espúrios.
  • A prova em favor da canonicidade dos livros do Novo Testamento é a evidência histórica. Quanto a isto, o juízo da Igreja primitiva em favor dos nossos vinte e sete livros é digno de inteira fé, enquanto não for provado o contrário. Não os devemos aceitar como tais, só porque os concílios eclesiásticos os decretaram canônicos, nem por causa do que eles dizem. A questão versa só e unicamente sobre a sua evidencia histórica.
  • Finalmente se nota que a palavra cânon não se aplicou à coleção dos livros sagrados antes do quarto século. Não obstante, existia, a noção que representa, isto é, que os livros sagrados eram regra de fé, contendo a doutrina apostólica.

John Davis