“O reino de Deus está próximo: arrependei-vos e crede no Evangelho” (Marcos 1.15).
ESTAS palavras mui naturalmente nos levam a considerar, primeiro, á natureza da verdadeira religião, aqui chamada por nosso Senhor – “o Reino de Deus”, que diz ele, “está próximo”; e, em segundo lugar, o caminho que conduz a esse Reino, caminho que o mesmo Senhor aponta por meio destas palavras: “Arrependei-vos e crede no Evangelho”.
Temos de considerar, primeiro, a natureza da verdadeira religião, chamada por nosso Senhor “o Reino de Deus”. Da mesma expressão usa o grande apóstolo em sua epístola aos Romanos, onde também explana as palavras de seu Senhor dizendo: “O Reino de Deus não é comida, nem bebida; mas justiça, paz, e gozo no Espírito Santo” (Rm 14.17).
“O Reino de Deus”, ou a verdadeira religião, “não é comida, nem bebida”. É bem sabido que não só os judeus não convertidos, mas grande número dos que primeiro receberam a fé em Cristo, eram, apesar de tudo, “zelosos da lei” (At 21.20), ou, particularmente, da lei cerimonial de Moisés. Tudo quanto se acha escrito na lei seja no tocante ao comer e beber coisas oferecidas em sacrifício seja acerca da distinção entre alimentos puros e impuros, eles não só observavam, mas insistiam na sua observância, mesmo por parte dos gentios (ou pagãos), “que estavam voltando-se para Deus”; e isto chegou a tal ponto, que alguns ensinavam, onde quer que se pusessem em contacto com os novos crentes, esta doutrina: “A não ser que sejais circuncidados e guardeis a lei (toda a lei ritual) não podeis ser salvos” (At 15.1, 24).
Em oposição a esses legalistas, o apóstolo, tanto na passagem citada como em numerosos outros lugares, declara que a verdadeira religião não consiste em comida e bebida, nem em quaisquer observâncias rituais, nem, na verdade, em qualquer outra prática de alcance meramente exterior, estranha ao coração; toda a substância da verdadeira religião consiste em “justiça, e paz, e gozo no Espírito Santo”.
Não se trata de qualquer coisa exterior, tais como ritos ou cerimônias, sei am embora da mais elevada simbolização. Mesmo supondo que essas cerimônias sejam decentes e significativas, representando bem as coisas íntimas; supondo que elas sejam úteis, não só ao vulgo, cujo pensamento pouco alcança para além de sua vista, também aos homens de entendimento, homens das mais altas capacidades, como indubitavelmente algumas vezes o são; supondo que elas tenham sido, como no caso dos judeus, prescritas pelo próprio Senhor – ainda assim, mesmo durante o tempo em que tais prescrições vigoraram com plena força – a verdadeira religião nunca consistiu principalmente nessas coisas, nem, estritamente falando, jamais a religião consistiu de modo algum nessas práticas. Com muito maior razão isto se dará, no caso em que tais ritos e fórmulas somente sejam de prescrição humana. A religião de Cristo se ergue infinitamente mais alto e penetra imensamente mais fundo do que tudo isso. Esses ritos são bons em seu próprio lugar; são bons no caráter estrito de subsídios, sempre subordinados a verdadeira religião. Seria supérfluo combater contra eles, se somente servissem como auxílio ocasional, requerido pela fraqueza humana. Mas não os leve mais além o homem. Que ninguém conclua tenham eles qualquer valor intrínseco, ou que a religião não possa subsistir sem eles. Isto seria fazê-los abomináveis ao Senhor.
A natureza da religião está tão longe de consistir em formas de culto, ou ritos e cerimônias, que ela nem propriamente consiste em quaisquer ações exteriores, de não importa que espécie. É verdade que o homem não pode ter religião, se é culpado de ações viciosas, imorais; ou se faz aos outros aquilo que não quereria que lhe fizessem, se estivesse nas mesmas circunstâncias. É também verdade que não pode ter real religião àquele que “sabe fazer, o bem e não o faz”. Pode o homem fazer o bem exterior, abster-se do mal – e ainda não ter religião. Mais: duas pessoas podem fazer a mesma obra exterior, por exemplo – alimentar o faminto ou vestir o nu: ao mesmo tempo pode um desses homens ser verdadeiramente religioso e o outro não ter religião alguma, porque um pode agir por amor de Deus e o outro por amor do elogio. Tão claro é isto que, embora a verdadeira religião naturalmente leve a toda boa palavra e obra, sua natureza intima alcança, todavia, profundidade ainda maior, isto é, visa “o homem oculto no coração”.
Digo no coração, porque a religião não consiste em ortodoxia, ou em opiniões corretas, que, conquanto não sejam propriamente coisas externas, não pertencem ao coração, mas ao entendimento. O homem pode ser ortodoxo em todos os pontos; pode não somente esposar opiniões corretas, mas defendê-las ardorosamente contra seus oponentes; pode pensar com justeza no tocante à Encarnação de nosso Senhor, à Santíssima Trindade e a qualquer outra doutrina contida nos Oráculos Divinos; pode aceitar os três Credos – o chamado dos Apóstolos, o Niceno e o de Atanásio; e, depois de tudo, é possível que absolutamente não tenha mais religião do que um judeu, islamita ou pagão. O homem pode ser quase tão ortodoxo como o demônio (embora, na verdade, não tanto, porque todo homem erra em algum ponto, enquanto que não podemos conceber razoavelmente que o diabo sustente qualquer opinião errônea), e pode, ao mesmo tempo, ser tão estranho quanto ele à religião do coração.
Somente esta religião verdadeiramente digna deste nome; só esta é de grande preço à vista de Deus. O apóstolo resume-a sob três característicos: justiça, paz e gozo no Espírito Santo. Primeiro, justiça. Não podemos ter dúvidas a respeito disto, se nos lembramos das palavras de nosso Senhor, ao apresentar os dois grandes ramos da justiça, dos quais “dependem toda a lei e os profetas”: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua mente, e de toda a tua alma, e de todas tuas forças: este é o primeiro e grande mandamento” (Mt 12.30); o primeiro e grande ramo da justiça cristã. Tu deleitarás no Senhor teu Deus; procurarás e acharás nele te felicidade. Ele será “teu escudo e tua excessivamente grande compensa”, no tempo e na eternidade. Todos os teus ossos diriam: “A quem tenho nos céus, senão a ti? E nada há sobre a te: que eu deseje em competição contigo”. Ouvirás e cumpriras que diz sua palavra: “Filho meu, dá-me teu coração”. E, tendo-lhe dado teu coração, tua alma, para ai reinar sem oposição podes perfeitamente clamar, na plenitude de teu espírito: “E te amarei, ó Senhor minha fortaleza. O Senhor é meu rochedo forte e minha proteção; meu Salvador, meu Deus e meu Pai em quem confio: meu escudo a haste de minha salvação e refúgio”.
O segundo mandamento é semelhante a este, sendo (segundo grande ramo da justiça cristã, estreita e inseparavelmente relacionado com o primeiro: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”. Amarás – abraçarás com a mais terna boa vontade, a mais profunda e cordial afeição, os mais calorosos desejos prevenir ou remover todo o mal e de lhe assegurar todo bem possível. Teu próximo – isto é, não somente teu amigo, parente ou teu conhecido; não somente o virtuoso, o amável que te ama, o que antecipa ou retribui tuas cortesias; mas todo homem, toda criatura humana, toda alma que Deus criou, não excetuando aquele a quem jamais viste em carne, a quem não conheces de nome nem em pessoa; não excetuando aquele e sabes ser mau e ingrato, o que procede malignamente para contigo e te persegue: a este deves amar como a ti mesmo, com mesma sede invariável de sua felicidade em todo o gênero mesmo cuidado invariável de furtá-lo a tudo quanto possa ofender-lhe ou ferir-lhe, seja a alma ou o corpo.
Não é este amor “o cumprimento da lei”, a suma de toda Justiça cristã, de toda a justiça interior? Esse amor necessariamente” (visto que “o amor não se Jacta”), “ternura, humildade, longanimidade” (porque “o amor não se irrita”, mas “tudo crê, tudo espera, tudo sofre”), e em toda a justiça exterior, porque “o amor não faz mal ao próximo”, nem por palavra, nem por atos. Não pode desejar mal ou dano a quem quer que seja. É zeloso de boas obras. Amigo de toda a humanidade; faz, segundo as ocasiões que tenha, o “bem a todos os homens”, sendo (sem parcialidade e sem hipocrisia), “cheio de misericórdia e de bons frutos”.
Mas a verdadeira religião, ou a posse de um coração reto diante de Deus e dos homens, tanto implica em felicidade como em santidade. Porque ela não consiste apenas em justiça, mas também em paz e em gozo no Espírito Santo. Que paz? “A paz de Deus”, que somente Ele pode dar e o mundo não pode tirar; paz que “excede a toda compreensão”, a toda concepção meramente racional, vindo a ser uma sensação miraculosa, uma divina emanação “dos poderes do mundo por vir”; paz que o homem natural não compreende, por mais sábio que seja em assuntos deste mundo, nem, na verdade, pode, em seu estado natural, compreender, “porque ela se discerne espiritualmente”. Já uma paz que dissipa todas as dúvidas, toda incerteza angustiosa, dando o Espírito de Deus testemunho com o espírito do cristão, de que ele “é filho de Deus”. Ela afugenta o temor, todo o temor que atormenta: o temor da ira de Deus, o temor do inferno, o temor do diabo, e, em particular, o temor da morte: o que tem paz com Deus deseja, se esta for à vontade; do Senhor, “partir e estar com Cristo”.
Com esta paz de Deus estabelecida na alma, vem também o gozo no Espírito Santo, a alegria derramada no coração pelo Espírito Santo, pelo bendito Espírito, de Deus. É o Espírito que opera em nós aquele calmo, humilde regozijo em Deus, me diante Jesus Cristo, “por quem recebemos agora a propiciação”, καταλλαγην, a reconciliação com Deus; e isto nos habilita a confirmar pessoalmente a veracidade da declaração do rei-salmista: “Bem-aventurado, (ou, melhor, feliz) é o homem cuja injustiça é perdoada e cujo pecado é coberto”. É Ele que inspira à alma cristã a sólida alegria que resulta do testemunho do Espírito, de que é filho de Deus, e que lhe concede o “alegrar-se em gozo indizível, na esperança da glória de Deus”, esperança tanto da gloriosa semelhança de Deus, agora percebida em parte e no futuro plenamente “revelada nele”, como da coroa de gloria imarcescível, que lhe esta reservada, nos céus.
Reunidas, a santidade e a felicidade são algumas vezes designadas, nos Escritos inspirados, pela expressão ― “o Reino de Deus” (como faz nosso Senhor no texto em estudo), aparecendo também, às vezes, a fórmula: “o Reino dos céus”. Dá-se a tal estada de alma o nome de “Reino de Deus” por característica o fruto imediato do domínio de Deus na alma renovada. Logo que Deus assume a completa soberania, firmando seu trono em nosso coração, este se enche imediatamente de “justiça, e paz e gozo no Espírito Santo”. É chamado “Reino dos céus” por de alguma forma, o céu aberto na alma. Desde que os homens tenham semelhante experiência, podem afirmar diante dos homens e dos anjos: “Conquistada está a vida eterna, Começou a glória na terra”. Segundo o teor constante das Escrituras, que por toda a parte ensina esta verdade, Deus “nos deu a vida eterna, e esta vida está em seu Filho”. Aquele que tem o Filho reinando seu coração, “tem a vida”, isto é, a vida eterna (1 Jo 5.11-12). Porque “esta é a vida eterna: conhecer a ti, único verdadeiro Deus, e a Jesus Cristo, aquele a quem tu enviaste” (Jo 17.3). E os homens a quem isto é dado podem confiadamente dirigir a Deus, estejam embora em meio da fornalha ardente:
E este “Reino de Deus” ou “dos céus” está próximo. Quando estas palavras foram ditas, implicavam em afirmar que “o tempo” estava cumprido, tendo Deus “se manifestado carne”, querendo assim firmar seu reino entre os homens e reinar no coração de seu povo. E o tempo não está agora cumprindo? Porque, “Eis que estou ― diz ele ― para sempre convosco”, em meio de vós que pregais remissão de pecados em meu nome “até o fim do mundo” (Mt 28.20) . Onde quer que o Evangelho de Cristo seja pregado, ai “está o Reino ao alcance da mão”. Não está longe de nenhum de vós. Nesta mesma hora nele podeis entrar, se derdes ouvidos à sua voz que insiste: “Arrependei-vos e crede no Evangelho”.
Este é o caminho: andai por ele. Primeiro, “arrependei-vos”, isto é, procurai conhecer-vos a vós mesmos. Este é o arrependimento inicial, antecedente à fé; vem a ser convicção ou conhecimento de si mesmo. Desperta, pois, tu que dormes. Conhece-te como pecador e a que espécie de pecador pertences. Reconhece a corrupção de tua natureza íntima, em virtude da qual estás muito longe da justiça original, sendo que em ti “a carne luta” sempre “contra o Espírito”, atuando através dá “mente carnal”, que “é inimizade contra Deus”, uma vez que “não é sujeita à lei de Deus, nem pode, na verdade, sê-lo”. Reconhece que és corrupto em todas as tuas faculdades, em todos os poderes de tua alma; que és totalmente corrupto em cada faculdade e cada poder da alma, estando pervertidos todos os fundamentos de teu próprio ser. Os olhos de teu entendimento estão obscurecidos, de modo que não podem discernir a Deus, nem as coisas que são de Deus. Névoas de ignorância e erro descansam sobre ti e cercam-te das sombras da morte. Tu nada conheces como devias conhecer ― nem a Deus, nem o mundo, nem a ti mesmo. Tua vontade não é a vontade de Deus, mas profundamente perversa e transviada, avessa a todo bem, a tudo quanto Deus ama, e pronta para todo mal, para toda abominação que Deus odeia. Tuas afeições se acham alienadas de Deus e derramadas sobre toda a terra. Todas as tuas paixões ― tanto teus desejos como repugnâncias, tuas alegrias e tristezas, tuas esperanças e temores ― são mal empregadas, ora manifestando-se em ardores indevidos, ora situando-se em objetos indignos. Assim é que não há santidade em tua alma, mas “do alto da cabeça à planta dos pés” (para usar as fortes expressões do profeta), somente há “feridas, pisa duras e úlceras putrefatas”.
Tal é a corrupção inata do coração, de tua própria natureza íntima. E que espécie de ramos podes esperar que brotem de semelhante raiz perversa? Daí brota incredulidade, separação do Deus vivo, impiedade que diz: “Quem é o Senhor, para que eu possa servir-lhe? Ah! Teu Deus não cuida disso”. Daí brota a independência, afetando semelhança com o Altíssimo. Dai brota o orgulho em todas as suas modalidades, incitando-te a dizer: “Sou rico, opulento em bens, e de nada tenho necessidade”. Dessa fonte só jorram as piores correntes de vaidade, sede de louvor, cobiça dos olhos e vaidade da vida; dai procedem a ira, o ódio, a malicia, a vingança, a inveja, o ciúme, as suspeitas de mal; daí decorrem os desejos loucos e insensatos, que “te traspassam de muitas dores” e que, se não forem refreados a tempo, abismarão tua alma na perdição eterna.
E que frutos podem produzir semelhantes ramos? Somente frutos cada vez mais ásperos e amargos. Do orgulho vem à contenda, a ostentação, a procura e a acolhida do louvor humano, com isto defraudando a Deus da glória que Ele não pode dividir com outrem. Da cobiça da carne Vem glutoneria ou bebedice, luxúria ou sensualidade, lascívia, impureza, poluindo de vários modos o corpo, que foi destinado a ser templo do Espírito Santo. Da descrença procede toda má palavra e obra. Faltaria, porém, o tempo, se quisesses recordar tudo: todas as palavras ociosas que proferiste, provocando o Altíssimo, ofendendo o Santo de Israel; todas as obras más que fizeste, fossem elas totalmente más em si mesmas, fossem pelo menos feitas com objetivos que não tendiam para a glória de Deus. Teus pecados atuais são em maior número do que podes expressar; são mais do que teus cabelos. Quem pode contar as areias do mar, ou as gotas da chuva, ou tuas iniquidades?
E não sabes que “o salário do pecado é a morte” ― a morte não apenas temporal, mas também eterna? “A alma que pecar, essa morrerá”; porque a boca do Senhor o disse. Morrerá da segunda morte. Esta é a sentença: ser “punido” com a morte sem fim, com, “eterno extermínio da presença do Senhor e da glória de seu poder”. Não sabes que todo pecador ― ενοχος εστι τη γεεννη πυρος, ― não está propriamente “em perigo do inferno de fogo”, o que seria demasiadamente brando, mas, antes, “está debaixo de sentença do fogo do inferno”; já condenado, prestes a ser levado à execução? Tu és réu de morte eterna, que é a justa retribuição de tua maldade interior e exterior. É justo que a sentença agora se cumpra. Não vês, não temes? Estás perfeitamente convencido de que mereces a ira de Deus e a condenação eterna? Deus te faria injustiça, mandando que a terra se abrisse neste instante para devorar-te, para desceres ao abismo, ao fogo que jamais se extingue? Se Deus agora te desse verdadeiro arrependimento, sentirias profundamente que os fatos são estes, e que se deve à pura misericórdia de Deus o não seres consumido, riscado da face da terra.
E que farás tu para apaziguares a ira de Deus, para ofereceres propiciação por teus pecados e para escapares a punição que tão justamente mereces? Ai! Tu nada podes fazer; nada que de qualquer modo repare perante Deus alguma obra, palavra ou pensamento mau! Se pudesses fazer coisas boas se deste momento até a volta de tua alma para Deus pudesses guardar perfeita, continua obediência, ainda assim não farias expiação pelo passado. O fato de não se aumentar tua dívida de modo nenhum resgata o débito primitivo: este permanece tão vultoso quanto o era dantes. Sim, a obediência presente e futura, por parte de todos os homens da terra e de todos os anjos dos céus, jamais daria satisfação à justiça de Deus por um único pecado. Quão vã seria, pois, a ideia de ofereceres propiciação pelos teus pecados, graças a qualquer obra meritória que pretendesses fazer! A redenção de uma só alma custa muito mais do que pode toda a humanidade pagar. Se nenhum auxílio viesse ao encontro do pecador culpado, este havia se perecer eternamente.
Suponhamos que, prometendo para o futuro obediência perfeita, obtivesses propiciação pelos pecados passados: isto nada te aproveitaria, porque não és capaz de cumprir a condição; não a cumpririas de modo nenhum. Comecemos desde agora: faze a experiência. Retira o pecado exterior que tão facilmente te domina: não podes fazê-lo. Como, então, mudarias tua vida, passando de todo o mal para todo o bem? Isto é, na verdade, impossível, a não ser que primeiro se mude teu próprio coração ― porque, enquanto a árvore permanece má, não pode produzir bom fruto. Mas, és capaz de mudar teu próprio coração, trocando o pecado por toda a santidade; és capaz de revivificar a alma., que está morta em pecado ― morta para Deus, e somente viva para o mundo? Mais depressa poderias ressuscitar a um cadáver, reerguendo para a vida aquele que jazia no túmulo. És tão capaz de revivificar, por qualquer processo, tua própria alma, quanto o és de infundir outra vida a um corpo que se desfaz. Nada podes fazer, pouco ou muito, neste terreno; és por completo impotente. Senti-lo profundamente; sentir quão débil, culpado e pecador és, este é “o arrepender-se de que nunca se deve arrepender”, precursor do Reino de Deus.
Se à profunda convicção de teus pecados internos e externos, de tua inteira culpabilidade e impotência, juntarem-se os sentimentos adequados: ― tristeza de coração, por teres tido pena, de ti mesmo; remorso e condenação de tua própria consciência, embargando-se tua própria voz; vergonha de levantar teus olhos para os céus; temor da ira de Deus que pende sobre ti, de sua maldição caindo sobre tua cabeça e da indignação fervente, prestes a devorar os que se esquecem de Deus e não obedecem a nosso Senhor Jesus Cristo; intenso desejo de fugir àquela indignação, de cessar de fazer o mal, de aprender a fazer o bem ― então, digo-te eu, em nome do Senhor: “Não estás longe do Reino de Deus”. Um pouco mais ― e entrarás nele. Tu “te arrependeste”; agora, “crê no Evangelho”.
O Evangelho (isto é, boas notícias, boas novas para os culpados, desalentados pecadores), vem a ser, no mais largo sentido da palavra, toda a revelação feita aos homens por Jesus Cristo; às vezes abrange tudo que nosso Senhor fez e sofreu enquanto esteve tabernaculado entre os homens. A essência do Evangelho é: “Jesus Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores”; ou: “Deus assim amou ao mundo, que lhe deu seu único Filho para que todo o que nele crê -não pereça, mas tenha a vida eterna”; ou: “Ele foi ferido por nossas transgressões, foi traspassado pelas nossas iniquidades; o castigo que nos devia trazer a paz caiu sobre Ele; e pelas suas feridas fomos sanados”.
Crê no que foi anunciado ― e o Reino de Deus te pertence. Pela fé alcanças a promessa. “Ele perdoa e absolve a todo que verdadeiramente se arrepende e sinceramente crê em seu santo Evangelho”. Logo que Deus tenha falado em teu coração: “Tem bom ânimo; teus pecados são-te perdoados”, seu Reino se :estabelece em ti: tens “justiça, paz e gozo no Espírito Santo”.
Não enganes, entretanto, a tua própria alma, em relação à natureza dessa fé. Não é, como apaixonadamente alguns têm imaginado, simples assentimento à verdade da Bíblia, dos artigos de nosso Credo ou de tudo quanto se contém no Antigo e no Novo Testamento. Os demônios creem nisto, tanto como eu ou tu, e, apesar de tudo, ainda são demônios. Mas, sobre isto e acima disto, a fé é uma segura confiança na misericórdia de Deus, mediante Jesus Cristo. É confiança no Deus perdoador; é uma divina evidência ou convicção de que “Deus em Cristo estava reconciliando o mundo consigo mesmo, não lhe imputando” suas primitivas “transgressões”; é, em particular, certeza de que o Filho de Deus me. amou e entregou-se a si mesmo por mim, e que eu, eu próprio, agora sou reconciliado com Deus pelo sangue da cruz.
Crês assim? Então a paz de Deus está em teu coração ― e os suspiros e as tristezas se esvaem. Tu já não duvidas do amor de Deus; isto é claro como a luz do meio dia. Exclamas: “Meu cântico será sempre em torno da bondade do Senhor: com minha boca sempre, cantarei tua verdade, de geração em geração”. Não mais temes o inferno, ou a morte, ou o que tem o poder da morte, o diabo; não, nenhum temor tormentoso te inspira o próprio Deus! Somente terás medo, um medo terno e filial, de ofendê-lo. Crês? Então tua “alma engrandece ao Senhor” e teu “espírito se regozija em Deus, teu Salvador”. Tu te alegras naquele em quem tens “redenção pelo seu sangue, sim, o perdão de pecados”. Tu te alegras naquele “Espírito de Adoção”, pelo qual exclamas em teu peito: “Abba, Pai”! Tu te alegras na “esperança plena da imortalidade”, alcançando o “alvo do prêmio de tua alta vocação”, na ansiosa expectativa de todas as coisas boas que Deus preparou para os que o amam.
Crês agora? Então “o amor de Deus” neste instante se “derrama em teu coração”. Tu o amas, porque ele primeiro nos amou. Amando a Deus, amas também a teu irmão; é; cheio de “amor, paz, alegria,” estás cheio também de “longanimidade, ternura, fidelidade, bondade, humildade, temperança” e todos os outros frutos do mesmo Espírito; estás, numa palavra, aquinhoado de todas as disposições santas, celestiais ou divinas. Enquanto “contemplas com a lace descoberta” (tendo sido o véu retirado) “a gloria do Senhor”, seu glorioso amor e a glorioso imagem segundo a qual toste criado, tu te transformas na comunidade da “mesma imagem, de glória em glória, pelo Espírito do Senhor”.
Este arrependimento, esta fé, esta paz, este gozo, este amor; esta ascensão de glória em glória ― eis o que a sabedoria deste mundo condenou como loucura, mero fanatismo, completa alucinação. Mas tu, ó homem de Deus, não lhes prestes atenção; não te deixes abalar por nenhuma crítica desse gênero! Sabes em que tens crido: vê que ninguém tome tua coroa. Partindo do ponto a que chegaste, prossegue até que alcances todas as grandes e preciosas promessas. E tu, que ainda não o conheces, não permitas que os homens te façam envergonhar do Evangelho de Cristo. Não te deixes atemorizar em face daqueles que dizem mal das coisas que ignoram. Deus logo volverá tua tristeza em gozo. Não te deixes abater! Ainda um pouco e Ele tirará teus temores e dar-te-á o espírito de fortaleza. Perto está “o que o justifica: quem pode condená-lo?”. “É Cristo que morreu, isto é, que ressuscitou, estando agora à mão de Deus, intercedendo” por ti. Entrega-te ao Cordeiro de Deus, com todos os teus pecados, quaisquer que eles sejam, e sem tardança “ser-te-á proporcionada uma entrada no Reino de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo!”.
John Wesley (1703-1791) – Nasceu em Epworth, na Inglaterra, no dia 17 de junho de 1703. Filho de um sacerdote anglicano foi o décimo quinto filho de uma família de dezenove irmãos. Em 1720 foi para a Christ Church College, em Oxford, e logo foi ordenado para o ministério anglicano.
Em Oxford, John se reunia com um clube cristão fundado por seu irmão Charles Wesley e o pastor Jorge Whitefield, cujos membros fizeram votos para levar uma vida santa, comungar uma vez por semana, estudar a Bíblia, orar diariamente e visitar os enfermos encarcerados com certa regularidade. O grupo passou a ser chamado pelos colegas universitários de “Santo Clube”.
Em 1736, como sacerdote da Igreja da Inglaterra, John e seu irmão viajaram para a Geórgia onde ele foi nomeado pastor da igreja em Savannah, permanecendo dois anos nos Estados Unidos, onde atraia multidões para ouvir suas pregações.
Apesar de Wesley ter a intenção de permanecer como membro da Igreja Anglicana, em 1940, quando os seus seguidores foram excluídos da comunhão, ele passou a administra-la durante as suas reuniões. Como os púlpitos da Igreja Anglicana estavam fechados para os irmãos Wesley e para Whitefield, este decidiu fazer as pregações ao ar livre, o que fez um enorme sucesso, e logo os irmãos Wesley seguiram o mesmo exemplo.
Quando surgiu a necessidade de Wesley começar a ordenar os sacerdotes, ocorreu a separação com a Igreja Anglicana, surgindo uma nova igreja que passou a se chamar Igreja Metodista. John Wesley pregou até os últimos dias de vida, falecendo em Londres, Inglaterra, no dia 02 de março de 1791.