“Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Marcos 1.15) – Supõe-se, geralmente, que o arrependimento e a fé são somente as portas da religião (Tg 1.26-27); que apenas são necessários no começo da carreira cristã, ao penetrarmos no caminho que leva ao Reino. Isto parece ser confirmado pelo grande apóstolo quando, exortando os cristãos hebreus a “andarem rumo à perfeição“, ensina-lhes a deixar os “primeiros rudimentos da doutrina de Cristo“, “não pondo outra vez o fundamento do arrependimento, das obras mortas e de fé para com Deus“, o que afinal significa que eles deveriam deixar, de certo modo, as coisas que primeiro lhes empolgaram todos os pensamentos, para “avançarem em direção ao prêmio da alta vocação de Deus em Cristo Jesus“.
É indubitavelmente certo que há um arrependimento e uma fé que são mais especialmente necessários no começo: o arrependimento que consiste na profunda convicção de nossa pecaminosidade, culpa e desamparo – que precede ao ato de recebermos o Reino de Deus que, segundo nosso Senhor observa, está “dentro de nós”; e a fé, pela qual recebemos esse Reino, ou sejam – “a justiça, a paz e o gozo no Espírito Santo”.
Mas, não obstante isto, há também um arrependimento e uma fé (tomando as palavras em outro sentido, sentido que, não sendo rigorosamente o mesmo, também não é inteiramente diverso), que se exigem após termos “crido no Evangelho” e em todo o estágio subsequente de nossa vida cristã, sem que não poderemos “correr a carreira que nos está proposta”. E este arrependimento e fé são absolutamente necessários à nossa perseverança e crescimento na graça, como arrependimento e a fé primitivos o foram a nosso ingresso no Reino de Deus.
Em que sentido, entretanto, devemos arrepender-nos e crer, depois de justificados? Esta é uma questão importante e digna de ser considerada em a maior atenção.Primeiro, em que sentido devemos arrepender-nos?
O arrependimento frequentemente significa mudança de mente, mudança do pecado para a santidade; mas falamos agora do arrependimento no sentido inteiramente diverso, isto é, como uma espécie de conhecimento próprio, de conhecermo-nos como pecadores, como culpados e desamparados pecadores, conservando, todavia, a condição de filhos de Deus.
Na verdade, quando primeiro conhecemos isto; quando primeiro encontramos redenção no sangue de Jesus; quando o amor de Deus primeiro se derrama em nossos corações e seu Reino aí se estabelece, – é natural supor que já não somos pecadores, sendo que todos os nossos pecados são, além de cobertos destruídos.
Como não sentimos nenhum mal em nosso coração, prontamente imaginamos que nele já nenhum mal exista. Assim, alguns homens experimentados entenderam que essa ausência de mal se verifica não só no início da fé, mas depois, persuadindo-se a si mesmos de que, ao sermos justificados, foram também inteiramente santificados: isto assentaram como regra geral, a despeito das Escrituras, da razão e da experiência. Esses tais sinceramente creem e sustentam ardorosamente que todo pecado é destruído quando somos justificados, e que não há pecado no coração do crente, sendo este purificado inteiramente desde aquele momento. Apesar, porém, de firmemente crermos que “o que crê é nascido de Deus” e “o que é nascido de Deus não comete pecado”, não podemos concordar em que o crente não sinta em si o pecado: este não domina, mas permanece. E a convicção do pecado que permanece em nosso coração é um grande ramo do arrependimento de que estamos tratando.
Não é raro que, mais cedo do que imaginava, aquele que supunha que todo o pecado se tivesse ido, sinta que ainda há orgulho em seu coração. Ele se convence, ao mesmo tempo, de que, em muitos sentidos, tem pensado de si mesmo mais altamente do que deveria pensar, e de que aceitou louvores a propósito de algum dom alcançado, nele se gloriando como se o não houvera recebido do Alto; todavia reconhece que se acha na graça de Deus – e não pode nem deve “lançar fora sua confiança”. Ainda “o Espírito testifica com “seu espírito”, que ele é filho de Deus”.
Desde cedo sente obstinação em sua alma; sente uma vontade contrária à vontade de Deus. Vontade própria todo homem deve tê-la, desde que possua entendimento. Esta é uma parte essencial da natureza humana, da natureza de todo ser inteligente. Nosso bendito Senhor tinha, como homem, uma vontade própria; se assim não fora, não seria homem. Mas sua vontade humana estava invariavelmente subordinada à vontade de seu Pai. Em todos os tempos e em todas as ocasiões, mesmo nas aflições mais profundas, podia Ele dizer: “Não como eu quero, mas como tu queres”. Mesmo com o verdadeiro crente isto não se dá, entretanto, a todo o momento. Frequentemente acontece que o crente exalta mais ou menos sua vontade, pondo-a em conflito com a vontade de Deus. Deseja alguma coisa por ser agradável à natureza, sendo, todavia, do desagrado de Deus; às vezes não quer uma coisa, (tendo aversão a ela), porque é repugnante à natureza, embora desse lado esteja a vontade de Deus. Na verdade, supondo que continua na fé, ele combate contra ela de todas as suas forças; mas este próprio fato implica na existência dessa fé e em ser ele cônscio dessa existência.
Ora, a voluntariedade, como o orgulho, é uma espécie de idolatria; ambos são contrários ao amor de Deus. A mesma observação pode-se fazer no tocante ao amor do mundo. Mas isso mesmo os verdadeiros crentes estão sujeitos a sentir em si próprios, e cada um deles deve senti-lo, mais ou menos, mais tarde ou mais cedo, de um ou de outro modo. É certo que, quando ele “passa da morte para a vida”, nada deseja senão a Deus, podendo verdadeiramente dizer: “Todo meu desejo é para ti e para a lembrança do teu nome”. “A quem tenho nos céus senão a ti? e ninguém há sobre a terra a quem eu deseje em competição contigo”. Mas isto não é sempre assim. Com o correr do tempo o crente sentirá de novo, embora talvez por poucos momentos, seja “o desejo da carne”, seja “o desejo dos olhos” ou a “vaidade da vida”. Além disso, se não vigiar e orar continuamente, poderá sentir o repontar da concupiscência; sim, e dando-lhe este impiedoso combate para que caia, afinal nenhuma força lhe resta com que resistir. Pode sentir os assaltos das afeições desordenadas, uma forte propensão para “amar a criatura mais do que ao Criador”, seja aquela um filho, o pai, esposo ou esposa, ou “o amigo que é como sua própria alma”. Pode sentir, por mil modos diversos, o desejo das coisas ou dos prazeres terrenos. Na mesma proporção se esquecerá de Deus, não procurando nele sua felicidade e tornando-se em consequência, “mais amante dos prazeres do que de Deus”.
Se o crente não vigiar a todo momento, cairá de novo na “cobiça dos olhos”, no desejo de deleitar a própria imaginação com alguma coisa de grandioso, belo ou invulgar. E quão variados são os meios de que se serve essa cobiça para assaltar a alma! Talvez a contemplação dos mais pobres bens, como vestidos e alimentos, coisas que jamais serviram para satisfazer o apetite do espírito imortal. Todavia, quão natural nos é, mesmo depois de termos “provado os poderes do mundo vindouro”, incorrermos naqueles insensatos e baixos desejos de coisas que perecem pelo uso! Quão difícil é, mesmo aos que sabem em quem tem crido, dominar um gênero só que seja de cobiça dos olhos! – seja, por exemplo, a curiosidade, tê-la constantemente calcada debaixo dos pés, nada desejar sob o pretexto de novidade! E quão difícil é, mesmo aos filhos de Deus, dominar inteiramente a vaidade da vida! Através desta expressão, S. João parece querer dizer aproximadamente o mesmo que o mundo designa pelo nome de sentimento de honra. Isto não é mais do que o desejo da “glória que vem dos homens” e o deleite posto nela, a ambição e o amor do elogio, e, o que sempre se une as coisas em medida igual: o “medo de desagradar”. Proximamente relacionado com esse medo de desagradar, surge o falso pudor, envergonhando-se o homem daquilo em que deveria gloriar-se. O falso pudor dificilmente se divorcia do temor do homem, que arma à alma um milhar de laços. Agora, onde está o homem, mesmo dentre os mais fortes na fé, que não encontre em si mesmo, em qualquer medida, algum desses maus pendores? Mesmo os mais vigilantes na guarda da verdade se encontram apenas meio “crucificados para o mundo”, porque a raiz má ainda permanece em seu coração.
E acaso não sentimos outras revelações de caráter tão contrário ao amor ao próximo como o são aquelas ao amor de Deus? O amor do próximo “não suspeita mal”. Não encontramos em nós algo que a isso se equipare? Não encontramos ciúmes, suspeitas do mal, quaisquer suspeitas infundadas ou desarrazoadas? O que for inculpável a esse respeito, atire a primeira pedra contra seu próximo. Quem jamais deixou de sentir alguma vez outras inclinações ou movimentos íntimos, que sabemos serem contrários ao amor fraternal? Se nada há de malícia, ódio ou amargura, não haverá algum toque de inveja, particularmente em relação àqueles que desfrutam de algum bem real ou suposto, que desejáramos ter, sem que possamos alcançá-lo? Não encontramos jamais em nós qualquer espécie de ressentimento, ao sermos injuriados ou ofendidos, principalmente por aqueles a quem amávamos com predileção, e a favor de quem muito havíamos trabalhado, na ânsia de os ajudar ou favorecer? A injustiça ou a ingratidão não excita jamais em nós qualquer desejo de vingança, algum desejo de retribuir mal por mal, em vez de “vencer o mal com o bem”? Isto também mostra quanto ainda há em nosso coração, que é contrário ao amor do próximo.
A cobiça, de qualquer espécie, certamente que é tão contrária ao amor do próximo como ao amor de Deus; seja Φιλαργυρία, o amor do dinheiro, que muito frequentemente é “a raiz de todos os males”, seja πλεονεξίο, literalmente o desejo de ter mais, ou o desejo de aumento de fortuna. E quão poucos são, mesmo entre os reais filhos de Deus, os que se mostram livres de ambas as espécies de cobiça! Na verdade um grande homem, Martinho Lutero, costumava dizer que “nunca tivera qualquer cobiça em si”, (não somente em sua condição de convertido, mas) “mesmo a contar de quando nasceu”. Se assim foi, não tenho escrúpulo de dizer que esse exemplo foi o único, entre os homens nascidos de mulher (excetuando-se aquele que era Deus e homem), de pessoa que não tivera cobiça, tendo nascido sem ela. Ainda mais: creio que nunca houve alguém, nascido de Deus, que nessa condição tivesse vivido por tempo considerável, e que não sentisse, mais ou menos, por várias vezes, a cobiça, principalmente no último dos sentidos apontados. Podemos, pois, assentar como verdade indubitável, que a cobiça, unida à vaidade, à obstinação e à ira, permanece mesmo no coração dos que são justificados.
É a experiência disto que tem inclinado tantas pessoas sérias a compreenderem a última parte do 7º capítulo de Romanos, não como um ensino positivo do apóstolo em referência aos que estão “debaixo da lei” e que se acham convencidos de pecado, mas com advertência feita aos que “estão debaixo da graça”, que são “justificados livremente através da redenção que há em Cristo”. E é certíssimo; até aí eles tem razão: deve permanecer ainda, mesmo nos que são justificados, a mente que em certo sentido é carnal (assim o apóstolo trata os crentes de Corinto: “sois carnais”); um coração inclinado à apostasia, pronto a “apartar-se do Deus vivo”; pendores para o orgulho, voluntariedade, ira, vingança, amor ao mundo, sim, e para todo o mal; uma raiz de amargura que, se um momento deixasse de ser refreada, imediatamente brotaria; uma tal profundeza de corrupção que, sem a clara luz de Deus, dificilmente poderíamos conceber. E a convicção de todo esse pecado que permanece em seus corações é o arrependimento que pertence aos que são justificados.
Devemos, entretanto, estar convencidos de que, assim como o pecado permanece em nosso coração, assim ele se insinua em todas as nossas palavras e obras. É para temer, realmente, que muitas de nossas palavras sejam mais do que misturadas com o pecado; que elas sejam pecaminosas, visto que tal caráter possui, inegavelmente, toda conversação descaridosa, tudo que não brote do amor fraternal, tudo que não concorde com a regra áurea: “Aquilo que quereríeis que os homens vos fizessem, assim fazei-o também a eles”. Desse gênero são todas as maledicências, todas as anedotas picantes, todas as murmurações, toda má ausência, isto é, a divulgação de defeitos de pessoas ausentes, porque ninguém ficaria satisfeito com o fato de outrem, em sua ausência, lhe divulgar as faltas. Ora, como são poucos os que, mesmo entre os crentes, não se acham incursos nesta falta, respeitando estritamente a boa regra antiga: “de mortos e ausentes, nada, senão o bem!” Suposto que essa regra seja observada, observam eles a abstinência da conversação sem proveito? Tudo isso é inquestionavelmente pecaminoso e “ofende o Espírito Santo de Deus”, acarretando, além disso, o juízo, visto que “de toda palavra ociosa que os homens falarem, darão contas no dia de juízo”.
Suponha-se, porém, que os crentes continuamente “vigiem e orem” e, assim fazendo, não “entrem” nessa “tentação”; que eles constantemente ponham vigia diante de sua boca e guardem a porta de seus lábios; suponha-se que se exercitem em que “toda sua conversação seja em graça, temperada com sal, e própria para ministrar graça aos ouvintes”: ainda assim não incidem eles, diariamente, em palavras inúteis, apesar de toda sua precaução? Ainda mesmo quando intentem falar em nome de Deus, suas palavras são puras, livres de toda mistura de impiedade? Nada de mau encontram eles em sua própria intenção? Não falam, por ventura, em parte para agradar a Deus e em parte para agradar a si mesmos? Falam para fazer totalmente a vontade de Deus, e não sua própria vontade também? Ou, começando com olhos simples, “olham para Jesus”, com Ele falam, durante todo o tempo em que falam com o próximo? Quando reprovam o pecado, não sentem pendores para a ira ou malevolência, no tocante ao pecador? Instruindo o ignorante, não sentem nenhum orgulho, nenhum ar de superioridade? Confortando o aflito, ou incitando o homem ao amor e às boas obras, não sentem interiormente a voz do elogio a dizer: “Agora falaste bem”, ou qualquer vaidade – desejo de que os outros pensem assim e os estimem por esse motivo? Em algum ou em todos esses respeitos, quanto de pecado se mistura mesmo à melhor conversação, e conversação de crentes! Tal convicção é outro aspecto do arrependimento que pertence aos que são justificados.
E quanto pecado podem em si mesmos achar os crentes, de envolta com suas ações, se sua consciência estiver inteiramente desperta! E muitos não há que, embora o mundo não os condene, todavia não se podem recomendar, nem escusar se forem julgados pela Palavra de Deus. Não há muitas de suas ações que, segundo eles próprios sabem, não tendem para a glória de Deus; muitas através das quais nem eles revelam tal objetivo e outras que nem mesmo são empreendidas tendo a Deus em vista? Em não há muitas que, empreendidas com os olhos postos em Deus, não tem somente a Deus como alvo, sendo obras através das quais os crentes fazem sua própria vontade, ou, pelo menos, mais da sua vontade do que da de Deus, e buscam agradar-se a si mesmos às vezes mais do que a Deus? E, conquanto tentem fazer o bem a seu próximo, não sentem eles o peso de várias tendências más, de inclinações de diversas espécies? Daí resulta que suas boas ações, assim chamadas, estão muito longe de ser realmente boas, poluídas que são por semelhante mistura de mal: assim são suas obras de misericórdia. E não há igual mistura em suas obras de piedade? Embora estejam ouvindo a Palavra que é capaz de lhes salvar a alma, não acontece que frequentemente se entreguem a pensamentos que os tornam temerosos de que elas sirvam para sua própria condenação, em lugar de serem para sua salvação? A mesma atitude não é frequente no momento em que os crentes fazem suas orações a Deus, seja em público ou particular, ou quando se encontram a participar do culto mais solene, estando à mesa do Senhor, – não acontece que neles surjam tais pensamentos? Seus corações às vezes não vagueiam pelos confins da terra enchendo-se às vezes de fantasias tais que os levem a temer que todo seu sacrifício não seja abominação à vista de Deus? Deste modo se vexam eles muito mais de seus melhores serviços, do que outrora o faziam em face de seus piores pecados.
Ainda mais: de que multidão de pecados de omissão são eles culpados! Conhecemos as palavras do apóstolo: “Aquele que sabe fazer o bem e não o faz, para ele isto é pecado”. Mas não sabem eles de um milhar de casos, nos quais poderiam ter feito o bem a inimigos, a estranhos, a seus irmãos, tanto em relação aos corpos como às almas, e não o fizeram? De quantas omissões são eles culpados, em seus deveres para com Deus! Quantas oportunidades de transmitir ou ouvir sua Palavra, de entregar-se à oração pública ou privada, eles negligenciaram! Grande razão tinha aquele santo homem, o arcebispo Usher, de exclamar, quase no derradeiro alento, e depois de todos os seus trabalhos devotados à causa de Deus: “Senhor, perdoa os meus pecados de omissão!”.
Ao lado dessas omissões exteriores, não encontram os crentes em si mesmos defeitos íntimos inumeráveis, de toda espécie? Eles não têm amor, o temor, a confiança que deveriam ter no trato com Deus. Não tem o devido amor a seu próximo, a todo o homem, nem o que é devido a seus irmãos, a todo filho de Deus, tanto os que se acham longe como os que com eles se acham relacionados imediatamente. Não tem o caráter santo que deveriam ter; estão em falta em muitos pontos; e, na profunda convicção disto, estão prontos a exclamar com M. De Renty: “Sou um campo todo coberto de espinhos”, ou, como Jó, “Sou vil: aborreço a mim mesmo e arrependo-me em pó e cinza”.
A convicção das próprias culpas é outro daquele arrependimento que pertence aos filhos de Deus. Mas isso deve ser entendimento de modo cuidadoso e num sentido especial. Porque é certo que “não há condenação para os que estão em Cristo Jesus”, que creem em Cristo e, pelo poder da fé, “não andam segundo a carne, mas segundo o Espírito”. Agora não podem satisfazer melhor a estrita justiça de Deus do que o faziam antes de crer. Em razão das falhas apontadas, a justiça de Deus os pronuncia como dignos de morte – e seriam certamente condenados, não fora o sangue propiciador. Por isso os crentes estão perfeitamente convencidos de que ainda merecem castigo , embora deste estejam livres mediante o mesmo sangue. Mas há, de um e outro lado, rumos extremos – e poucos são os que seguem o cominho direito. Muitos homens claudicam num ou noutro sentido, já pensando estarem condenados, quando de fato não o estão, já supondo erroneamente que merecem ser absolvidos. A verdade está, porém, a igual distância de tais extremos: eles ainda merecem, estritamente falando, somente a condenação do inferno. Mas o que merecem não lhes sobrevém, “porque tem um Advogado para com o Pai”. Sua vida, morte e intercessão ainda as interpõem entre eles e a condenação.
A convicção da completa impotência é ainda ramo de seu arrependimento. Quero significar, com isto, duas coisas: primeiro, que os crentes não são agora mais capazes de nutrir, por si mesmo, bons pensamentos, de ter bons desejos, de falar boas palavras ou de fazer uma boa obra, – do que o eram antes de ser justificados; que eles ainda não possuem nenhuma espécie ou grau de força em si mesmos; nenhum poder para a prática do bem ou para a resistência ao mal; nenhuma capacidade de vencer o mundo ou de opor-se a ele, ao diabo e à sua própria natureza má. É verdade que os crentes podem fazer tudo isso, mas não pelo seu próprio poder. Eles têm poder para dominar todos aqueles inimigos, porque “o pecado não tem mais domínio sobre eles”: mas não é da natureza, nem no todo, nem em parte; é o mero dom de Deus: nem este é dado todo de uma vez, como a constituir um depósito para muitos anos, mas Deus lho concede momento após momento.
Por impotência quero dizer, em segundo lugar, a absoluta incapacidade de libertar-nos da culpa ou merecimento de punição de que somos ainda conscientes; e a incapacidade de remover, por meio de toda a graça que tenhamos (para não fazer referência aos nossos poderes naturais), seja o orgulho, a obstinação, o amor ao mundo, a ira e a propensão para separarmo-nos de Deus, qualidades estas que sabemos permanecem no coração, mesmo dos que são regenerados; ou o mal que, a despeito de todos os nossos esforços, mistura-se a todas as nossas palavras e ações. Adicione-se a tudo isso a inteira incapacidade de evitarmos totalmente a conversação descaridosa e, mais frequentemente, a conversão sem proveito, e a incapacidade de evitarmos pecados de omissão, ou de repararmos os defeitos incontáveis de que estamos convencidos, especialmente a falta de amor e de outros pendores justos, tanto no que se refere a Deus, como no que toca ao homem.
Se alguém não está satisfeito com isto; se alguém acredita que o que é justificado seja capaz de remover de seu coração e vida aqueles pecados, – que faça a experiência. Experimente se é capaz de, pela graça anteriormente recebida, expulsar o orgulho, a obstinação, ou pecado inato em geral. Experimente se é capaz de purificar suas palavras e ações de toda mistura de mal; se pode evitar toda conversação descaridosa e ociosa e todos os pecados de omissão; e, finalmente, se pode remediar os defeitos inumeráveis que ainda sente em si mesmo. Que o tal não se desanime ao cabo de uma ou duas experiências, mas tente a prova outras e outras vezes; e, quanto mais experimentar, mais profundamente se convencerá de sua completa incapacidade, – seu desamparo, a todos os respeitos.
De fato, isto é verdade tão evidente, que quase todos os filhos de Deus espelhados pelo mundo, conquanto entre si discordem em outros pontos, geralmente concordam nisto: que, embora possamos, “pelo Espírito, mortificar as obras do corpo”, resistir e vencer o pecado interior e exterior; embora possamos enfraquecer dia a dia nossos inimigos, – não os podemos expulsar. Com toda a graça recebida no momento da justificação, não podemos extirpar esses males. Por mais que vigiemos e oremos, não podemos purificar nem nossos corações, nem nossas mãos. O certo é que não podemos conseguir isso até que seja do agrado de nosso Senhor falar outra vez a nossos corações, falar pala segunda vez: “Sê limpo”; e então, e somente então, o leproso se purificará. Somente então a raiz do mal, a mente carnal, se destrói: o pecado inato não mais subsiste. Mas se não houver segunda mudança, se não houver instantânea libertação depois da justificação, se não houver senão uma gradual obra de Deus (que haja obra gradual, ninguém contesta), então poderemos contentar-nos, tanto quanto pudermos, em permanecer cheios de pecado, até a morte, continuamente merecendo punição. Porque é impossível que a culpa e o merecimento de punição se retirem de nós, enquanto todo esse pecado permanecer em nossos corações, misturando-se às nossas palavras e aos nossos atos. Além disso, em rigorosa justiça, tudo quanto pensamos, falamos e fazemos, continuamente aumenta o vulto desse pecado.Neste sentido devemos arrepender-nos, depois de termos sido justificados. Não podemos progredir enquanto não o fizermos. Enquanto não sentiremos nossa enfermidade não admitiremos cura. Suposto, porém, que nos arrependemos, somos então chamados a “crer no Evangelho”.
Também isto se deve ser entendido em sentido especial, diferente do arrependimento pelo qual cremos para a justificação. Crer nas boas novas de grande salvação, que deus preparou para todo o povo. Crer que aquele que é “o resplendor da glória de seu Pai, a expressa imagem de sua substância”, é “capaz de salvar, até as extremidades, todo o que vem a Deus através dele”. É capaz de salvar-te de todo o pecado que se mescla a todas as tuas palavras e ações. É capaz de salvar-te de todo o pecado que ainda permanece em teu coração. É capaz de salvar-te dos pecados de omissão e de suprir o que falta em ti. É verdade que isso é possível ao homem; mas ao homem-Deus todas as coisas são possíveis. Que coisa haverá demasiadamente difícil àquele que tem “todo o poder nos céus e na terra”? Na realidade, o simples poder de fazer isso não fornece suficiente fundamento à nossa confiança em que Ele o faça, de que Ele queira assim exercitar o seu poder, a não ser que o tenha prometido. Isto, porém, Cristo fez: prometeu-o repetidamente, nos termos mais categóricos. Ele nos deu aquelas “excessivamente grandes e preciosas promessas”, tanto no Velho como no Novo Testamento. Assim é que lemos na Lei, na parte mais antiga dos Oráculos de Deus: “O Senhor teu Deus circuncidará teu coração, e o coração de tua semente, para amar ao Senhor teu Deus de todo teu coração e de toda a tua alma” (Dt 30.6). Assim nos Salmos: “Ele redimirá a Israel”, o Israel de Deus, “de todos os seus pecados”. Assim no Profeta: “Então eu derramarei água pura sobre ti e serás purificado; de todas as tuas impurezas e de todos os teus ídolos eu te purificarei. Porei meu Espírito em ti e guardarás meus juízos e os cumprirás. Também vos salvarei de todas as vossas impurezas” (Ez 36.25 e ss). Assim, igualmente, no Novo Testamento: “Bendito seja o Senhor Deus de Israel; porque visitou e redimiu a seu povo, e suscitou uma torre de salvação para nós – para cumprir o juramento que fez a nosso pai Abraão, permitindo que, sendo libertados das mãos de nossos inimigos, pudéssemos servi-lo sem temor em santidade e justiça diante dele, em todos os dias de nossa vida” (Lc 1.68, etc.).
Tendes, pois, boa razão para crer que Ele não só é capaz de fazer isto, mas quer fazê-lo: limpar-vos de todas as impurezas da carne e do espírito; salvar-nos “de todas as vossas impurezas”. Esta é a operação por que esperáveis; esta é a fé de que precisais agora em particular, isto é, – que o Grande Médico, o amante da minha alma, deseja purificar-me. Mas Ele deseja fazer isto amanhã ou hoje? Responde o Mestre por si mesmo: “Hoje, se ouvires” minha “voz não endureçais vossos corações”. Se adiardes até amanhã, vossos corações se endurecerão; vós vos recusareis a ouvir sua voz. Crede, pois, que Ele deseja salvar-vos hoje; deseja salvar-vos agora. “Este é o tempo aceitável”. Agora o Senhor diz: “Sê limpo”. Crede somente – e também verificareis, imediatamente, que “todas as coisas são possíveis aquele que crê”. Continua a crer naquele que te amou e deu-se a si mesmo por ti; que levou todos os teus pecados em seu próprio corpo para o madeiro; e Ele te salva de toda a condenação, pela contínua aplicação de seu sangue. É deste modo que perseveramos em estado de justificação – e indo nós de “fé em fé”, seguros de sermos salvos de toda nossa impureza, somos igualmente salvos de toda aquela culpa, daquele merecimento de punição que antes sentíamos. Assim, quando pudermos dizer:
“A cada momento, Senhor, preciso do mérito de tua morte”.
Diremos também, na plena certeza da fé:
“A todo momento, Senhor, tenho o mérito de tua morte!”
Porque, por essa fé em sua vida, morte e intercessão a nosso favor, renovada a cada momento, somos purificados em tudo, e agora, a par de não haver condenação que nos atinja, não merecemos punição, como dantes acontecia, purificando o Senhor nossos corações e vidas.
Sentimos pela mesma fé o poder de Cristo repousando a cada momento sobre nós, sendo que somos o que somos unicamente por esse poder, que nos habilita a perseverarmos na vida espiritual, e sem o qual, não obstante toda nossa santidade presente, seríamos, a seguir, demônios. À medida que sustentamos nossa fé em Cristo, “tiramos água das fontes da salvação”. Reclinados sobre nosso Amado, sendo Cristo em nós a esperança da glória, que habita em nossos corações pela fé, intercedendo o mesmo Cristo por nós à mão direita de Deus, – dele recebemos auxílio para pensar, falar e agir de acordo com o que é aceitável à sua vista. Assim Ele “assiste” aos que creem, em todos os “seus feitos e favorece-os com seu contínuo auxílio”, de modo que todos os seus desígnios, conversação e ações sejam “começados, continuados e terminados nele”. Desta maneira Ele “purifica os pensamentos de seus corações pela inspiração de seu Espírito Santo, para que possam amá-lo perfeitamente, e dignamente engrandecer-lhe o santo nome”.
É assim que, nos filhos de Deus, o arrependimento e a fé exatamente se completam. Pelo arrependimento sentimos o pecado que permanece em nosso coração, misturando-se às nossas palavras e ações; pela fé recebemos o poder de Deus em Cristo, purificando nossos corações e limpando nossas mãos. Pelo arrependimento somos ainda sensíveis ao fato de merecermos punição por todas as nossas tendências, palavras e ações; pela nos tornamos cônscios de que nosso Advogado para com o Pai está continuamente intercedendo por nós, e deste modo afastando toda condenação e punição. Pelo arrependimento temos a segura convicção de que não existe em nós socorro; pela fé não só recebemos misericórdia, mas “a graça para nos auxiliar” em todo “tempo de necessidade”. O arrependimento repudia toda possibilidade de qualquer outro auxílio; a fé aceita todo o auxílio de que necessitamos, da parte daquele que tem todo o poder nos céus e na terra. O arrependimento diz: “Sem Ele nada posso fazer”; a fé diz: “Tudo posso em Cristo, que me fortalece”. Nele posso não somente dominar, mas também expulsar todos os inimigos de minha alma. Através dele posso “amar ao Senhor meu Deus de todo meu coração, mente, alma e força”, e posso assim “andar em santidade e justiça diante dele, por todos os dias de minha vida”. Do que foi deito podemos aprender a sem-razão daquele conceito, segundo o qual – somos totalmente santificados quando somos justificados, sendo então nossos corações purificados de todo o pecado. Na verdade somos nessa ocasião libertados, como já observou, do domínio do pecado exterior; e, ao mesmo tempo, o poder do pecado interior se reduz a tal pondo, que não mais temos necessidade de segui-lo ou de sermos conduzidos por ele. Mas não é certo, de modo nenhum, que o pecado interior seja então totalmente destruído; e que a raiz do orgulho, da obstinação, da ira, do amor ao mundo, seja extirpada do coração; ou que a mente carnal e o pendor do coração para a apostasia seja inteiramente removidos. E supor o contrário não é, como alguns podem pensar, um inocente, inofensivo engano. Não; tal pensamento causa imenso dano: obstrui inteiramente o caminho para mudança mais profunda, porque é manifesto que “os sãos não precisam de médico, mas sim os enfermos”. Se, pois, pensamos que já nos encontramos inteiramente sãos, não há lugar para que procuremos cura. Suposto isto, é absurdo esperar ulterior libertação do pecado, seja gradual, seja instantânea.
Ao contrário, a convicção profunda de que ainda não estamos curados; de que nossos corações não estão inteiramente purificados; de que ainda existe em nós a “mente carnal”, a qual continua ser, por natureza, “inimizade contra Deus”, de que todo o corpo do pecado ainda permanece em nosso coração, enfraquecido, na verdade, mas não destruído, – indica, acima de toda possibilidade de dúvida, a necessidade absoluta de ulterior mudança. Concordamos que, no próprio momento da justificação, nascemos de novo; nesse instante experimentamos aquela mudança interior das “trevas para a maravilhosa luz”, da imagem do irracional e do demônio para a imagem de Deus; da mente terrena, sensual e diabólica para “a mente que era em Cristo Jesus”. Mas fomos então inteiramente mudados? Fomos totalmente transformados, segundo a imagem daquele que nos criou? Longe disto: ainda conservamos um abismo de pecado, e é a consciência desse fato que nos constrange a clamar, rogando uma completa libertação Aquele que é poderoso para salvar. Se assim é, os crentes, ainda não convencidos da profunda corrupção de seus corações, ou que apenas negligentemente, e por assim dizer fantasiosamente, tem essa convicção, pouco interesse nutrem pela inteira santificação. Podem talvez alimentar a opinião de que isso deva acontecer até a morte, em algum tempo, que não sabem quando, antes dela. Mas não tem grande inquietação quanto à falta da santificação completa, nem dela sentem fome ou sede. Eles não podem fazê-lo, até que se conheçam melhor, até que se arrependam no sentido acima definido, até que Deus lhe revele a face do monstro inato e lhes mostre o estado real da alma. Somente então, quando sentirem o peso da culpa, clamarão, pedindo sejam libertados. Então, e não entes, hão de gemer, na agonia profunda de sua alma:
“Rompe o jugo do pecado congênito
E liberta inteiramente meu espírito!
Não posso descansar até que, interiormente puro,
Eu por completo me abisme em ti!”
Daqui podemos aprender, em segundo lugar, que uma profunda convicção de nosso demérito, mesmo depois de sermos aceitos (demérito que, em certo sentido, pode ser chamado culpa), é absolutamente necessária, para que possamos apreciar o verdadeiro valor do sangue propiciador, para que possamos sentir que desse sangue necessitamos tanto depois de sermos justificados como necessitávamos antes. Sem tal convicção não podemos deixar de ter o sangue do concerto como coisa comum, alguma coisa de que não temos agora grande necessidade, visto que todas as nossas transgressões anteriores foram apagadas. Se, pois, nossos corações e vidas são impuros, há uma espécie de culpa em que estamos incorrendo a cada momento, e que, em consequência, a cada momento nos expõe à plena condenação, a não ser que:
“Lá no Alto viva Ele sempre
Por nós a interceder,
Seu amor todo propiciação,
Seu sangue precioso a clamar por nós”
É este arrependimento, e a fé inteiramente com ele relacionada, que se expressa nestas linhas enérgicas:
“Respiro o pecado a cada novo alento,
Nem faço tua vontade, nem guardo tua lei
Na terra, como lá no alto fazem-no os anjos:
Mas, aberta, permanece ainda a fonte,
Lavando-me os pés, o coração e as mãos,
Até que aperfeiçoado eu seja no Amor”
Podemos observar, em terceiro lugar, que uma profunda convicção de nosso profundo desamparo, de nossa incapacidade total para conservarmos qualquer coisa que tenhamos recebido, e, muito mais, para libertar-nos do mundo de iniquidade que enche nossos corações e vidas, ensina-nos verdadeiramente a viver em Cristo pela fé, nele tendo não só nosso Sacerdote, mas também nosso Rei. Por ela somos levados a “engrandecê-lo” na verdade; a “dar-lhe toda glória por sua graça”; a fazê-lo “um Cristo total, um Salvador integral, e verdadeiramente colocar a coroa sobre sua cabeça”. Estas excelentes palavras, à força de serem frequentemente repetidas, tem pequena ou nenhuma significação; todavia, elas se cumprem, em sentido forte e profundo, quando nós saímos, por assim dizer, de nós mesmos, de modo a sermos por Ele absorvidos. Então nos abismaríamos no nada, para que Ele pudesse ser tudo em todas as coisas. E depois, tendo sua graça onipotente abolido “tudo que se exalta contra Ele”, toda tendência, pensamento, palavra e obra se renderão “à obediência de Cristo”.
John Wesley – LONDONDERRY, 24 de abril de 1767.