Incredulidade: Uma Maravilha

Ele admirou-se da incredulidade deles” (Marcos 6:6) – O texto que encabeça esta página é uma passagem muito notável. De todas as expressões nos quatro Evangelhos que mostram o Senhor Jesus Cristo que era verdadeiramente Homem, nenhuma talvez seja mais surpreendente do que esta. Que Ele que nasceu da Virgem Maria, e teve um corpo como o nosso, sentiu fome e sede, chorou e se alegrou, se cansou e teve dor – tudo isso nós podemos, em certo grau, entender. Mas que ele que era verdadeiramente Deus assim como verdadeiramente Homem, Ele “em quem habita corporalmente toda a plenitude da divindade“, Ele em quem foram “escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência“, Ele que “sabia o que estava no homem” – que Ele se “admiraria” com qualquer coisa aqui embaixo, pode muito bem nos encher de admiração. Mas o que dizem as Escrituras? Lá está escrito em claras palavras, as quais nenhuma inventividade criativa pode justificar – “Ele admirou-se da incredulidade deles“.

Ao tratar deste assunto, eu não planejo, em nenhum momento, discutir estes profundos e misteriosos artigos da fé que é a base do Cristianismo, quero dizer: a doutrina da Trindade na Unidade, e a união das naturezas Divina e humana na Pessoa de Cristo. Se eu tentasse isto, eu não poderia adicionar nada ao que os mestres da teologia já disseram, e provavelmente deixaria o assunto onde eu o encontrei, caso eu não “escurecesse o conselho com palavras sem conhecimento”.

O que eu desejo fazer é dizer algo prático sobre o assunto geral da incredulidade. Deve ser algo espantoso, se até mesmo nosso Senhor Jesus Cristo admirou-se dela. Deve ser uma coisa importante, uma vez que ouvimos e lemos tanto sobre ela nos dias atuais. Tentarei fazer algumas simples observações a respeito disso.

I. Consideremos a natureza da incredulidade. “O que é isso?”

II. Perguntemos por que a incredulidade é tão admirável. “Porque o Senhor Jesus admirou-se dela?”

I. O que é, então, a incredulidade?

A palavra assim traduzida é encontrada doze vezes no Novo Testamento e sempre, na medida em que posso ver, com um significado. Em seu sentido completo, com certeza, ela somente existe em terras onde homens desfrutam da luz da revelação. Em terras pagãs, onde pouco é conhecido, pode haver comparativamente pouca incredulidade. Ela consiste em não acreditar em alguma coisa ou outra que Deus disse – alguma advertência que Ele deu, alguma promessa que Ele fez; algum conselho que ele dá; algum julgamento com que ele ameaça; alguma mensagem que Ele envia. Em resumo, recusar-se em admitir a verdade da Palavra revelada de Deus, e viver como se nós não pensássemos que era para dependermos desta Palavra, é a essência da incredulidade.

Incredulidade é a mais antiga de muitas doenças espirituais pelas quais a natureza humana é afligida. Ela começou no dia em que Adão e Eva comeram o fruto proibido, e trouxeram o pecado para o mundo. Eles não acreditaram no que Deus havia lhes dito que seria a consequência da desobediência, e acreditaram no Tentador dizendo “Certamente não morrereis”. Ela arruinou milhões no dia do dilúvio de Noé: eles não quiseram ouvir ao grande “pregador da justiça”, quando ele os advertiu por cento e vinte anos a fugir da ira vindoura. Ela matou milhares no dia em que Sodoma e Gomorra foram destruídas pelo fogo do céu. Quando o justo Ló chamou seus genros para que fugissem por suas vidas, “foi tido por zombador” (Gênesis 19:14). Ela manteve Israel perambulando quarenta anos no deserto, até que uma geração inteira estivesse morta. É-nos expressamente dito “E vemos que não puderam entrar por causa da sua incredulidade”. Ela trouxe, finalmente, a destruição da Igreja e do Estado Judeu, cerca de cinquenta anos após Cristo ter deixado o mundo. Eles não queriam acreditar n’Ele ou recebê-Lo como o Messias, mas sim O crucificaram e O mataram. A causa primária de Jerusalém ter sido destruída, o Templo queimado, e o antigo povo de Deus banido e espalhado sobre a face da Terra, foi a incredulidade.

Incredulidade, somos ensinados em toda parte no Novo Testamento, é a grande razão pela qual multidões de cristãos e cristãs professos de qualquer idade não são salvos, e morrem despreparados para encontrar a Deus. Ela fecha o caminho para o céu, e torna as gloriosas promessas de misericórdia de Deus inúteis e infrutíferas. “Quem não crê já está condenado”. “Quem não crer será condenado”. “aquele que não crê no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus sobre ele permanece” “Se não crerdes que eu sou, morrereis em vossos pecados” (João 3:18,36; Marcos 16:16; João 8:24). Lembre-se, qualquer um para quem este papel possa chegar, lembre-se e nunca se esqueça – tanto mais a incredulidade do que o pecado é o que arruína as almas. “Todo o pecado e blasfêmia se perdoará aos homens:” – “O sangue de Jesus Cristo purifica de todo pecado”. “Ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve” (Mateus 12:31; 1 João 1:7; Isaías 1:18). Mas se um homem não tiver fé em Cristo, ele se coloca fora do alcance da misericórdia. Eu ouso dizer que até mesmo Judas Iscariotes poderia haver encontrado absolvição, se, após sua negação, ele tivesse se arrependido e crido. A verdadeira causa da ruína eterna está contida naquelas solenes palavras que nosso Mestre falou perante o Sinédrio judeu, “E não quereis vir a mim para terdes vida” (João 5:40).

Mas o fato mais triste fica para trás. Incredulidade é uma das doenças espirituais mais comuns nestes últimos dias. Ela nos encontra em cada esquina e em cada companhia. Assim como a praga egípcia das rãs, ela abre seu caminho para dentro de cada família e lar, e parece não haver afastamento dela. Entre os grandes e pequenos, ricos e pobres, na cidade e no campo, em universidades e em cidades industriais, em castelos e em casas no campo, encontrar-se-á continuamente alguma forma de incredulidade. Não é mais uma peste que caminhava nas trevas, mas uma destruição que aflige à luz do dia. É até mesmo considerada inteligente e intelectual, e uma marca de uma mente atenta. A sociedade parece impregnada por isto. Aquele que confessa sua crença em tudo que está contido na Bíblia deve se dispor a receber sorrisos desdenhosos e ser considerado um homem fraco e ignorante.

(a) Para alguns a base da incredulidade parece ser a cabeça. Eles se recusam a aceitar qualquer coisa que eles não possam entender. Inspiração, Milagres, a Trindade, Encarnação, Expiação, o Espírito Santo, a Ressurreição, o Reino Futuro, todas estas poderosas verdades são vistas com fria indiferença como pontos discutíveis, caso não sejam absolutamente rejeitados. Podemos explicá-los completamente? Podemos satisfazer suas faculdades racionais sobre eles? Se não, eles devem ser desculpados, se ficarem em dúvida. O que eles não podem entender completamente, eles nos dizem que não podem crer inteiramente.

(b) Para alguns, a base da incredulidade é o coração. Eles amam os pecados e hábitos de vida que a Bíblia condena, e estão determinados a não abandoná-los. Eles se refugiam de uma consciência pesada ao tentarem convencer a si mesmos de que o antigo Livro não é verdadeiro. A medida de sua crença é a sua afeição. No que quer que seja que condene suas inclinações naturais eles se recusam a crer. O famoso Lorde Rochester, a princípio libertino e infiel, mas depois um verdadeiro penitente, e lembrado por ter dito ao Bispo Burnet, conforme se aproximava de seu fim: “Não é a razão, mas sim uma vida ruim, o grande argumento contra a Bíblia”. Um verdadeiro e importante dito! Muitos, estou convencido, professam que não creem, porque eles sabem que se eles cressem, eles deveriam abandonar seus pecados favoritos.

(c) Mas, de longe, para o maior número de pessoas a base da incredulidade é uma vontade preguiçosa, indolente. Eles não gostam de nenhum tipo de problema. Porque deveriam eles negar a si mesmos, se esforçarem para ler a Bíblia, orar, observar o Dia de Descanso, e exercer vigilância diligente sobre pensamentos, palavras e ações quando, afinal, não é certo que a Bíblia é verdadeira? Esta, eu tenho poucas dúvidas, é a forma de incredulidade que prevalece mais frequentemente entre os jovens. Eles não são agitados por dificuldades intelectuais. Eles frequentemente não são escravos de quaisquer concupiscências ou paixões, e vivem vidas toleravelmente decentes. Mas no fundo de seus corações há uma indisposição para se decidirem e serem determinados sobre qualquer coisa em religião. E assim, eles flutuam pelo rio da vida abaixo, como peixes mortos, e flutuam desamparados, e são atirados para lá e para cá mal sabendo no que eles acreditam. E ao mesmo tempo em que eles se recuariam em dizer que não são cristãos, eles não tem qualquer suporte em seu Cristianismo.

Em dias como estes, nós não devemos considerar uma coisa estranha se nos depararmos com uma vasta quantidade de incredulidade no mundo. Antes, acostumemo-nos a esperá-la, e a vê-la sob os mais ilusórios e plausíveis aspectos. Ser prevenido é ser premunido. Não há dúvidas que é surpreendente quando um jovem deixa uma pacata e isolada casa de campo, e se lança sobre as ondas deste mundo problemático em alguma cidade agitada, para ouvir doutrinas e princípios serem negados ou zombados, os quais ele nunca sonhou que alguém questionaria quando ele morava em casa. Mas certamente isto não é mais no que sua velha Bíblia deveria tê-lo ensinado a esperar. Não está escrito: “Nos últimos dias virão escarnecedores?” “Quando porventura vier o Filho do homem porventura achará fé na terra?” (2 Pedro 3:3; Lucas 18:8). Um homem tão jovem deve dizer a si mesmo quieta e calmamente: “Esta incredulidade é precisamente o que a Bíblia do meu pai me disse para esperar. Se eu não me deparasse com nenhuma incredulidade este Livro não seria verdadeiro”.

Afinal, é algum conforto lembrar que há provavelmente menos de real, completa e fundamentada incredulidade do que parece haver. Milhares, podemos ter certeza, não creem em seu íntimo em tudo no que dizem com seus lábios. Para muitos, um ditado cético nada mais é do que um artigo emprestado, apanhado e distribuído por aquele que o diz porque soa inteligente, quando na realidade não é esta a linguagem de seu homem interior. Mágoa, doença, e aflição, frequentemente revelam o estranho fato de que os ditos céticos não são céticos de jeito nenhum, e que muitos falam de ceticismo meramente por um desejo de parecerem inteligentes, e para ganhar o aplauso temporário de homens inteligentes. Que há uma imensa quantidade de incredulidade no mundo eu não questiono; mas que muito disto é mero espetáculo e fingimento, é para minha mente, claro como o meio-dia. Nenhum homem, eu penso, pode fazer o trabalho pastoral, se aproximar das almas, visitar os doentes e assistir os moribundos, sem chegar a esta conclusão.

II. Perguntemos agora, porque a incredulidade é tão admirável. O que há nela que fez até mesmo o Senhor Jesus Cristo o Filho de Deus se admirar?

Não há dúvidas de que havia algo peculiar e extraordinário na incredulidade dos Judeus. Que os filhos de Israel, educados desde a infância no conhecimento da lei e dos profetas, treinados desde os seus primeiros anos a olhar para o Messias e esperar um poderoso “profeta semelhante a Moisés”, ensinados a crer na possibilidade dos milagres, e familiarizados com a história de homens operadores de milagres – que eles rejeitariam Jesus de Nazaré e não fossem tocados pelas maravilhas as quais ele operou entre eles, tudo isto era verdadeiramente extraordinário e surpreendente. Extraordinário que eles teriam tais privilégios e ainda assim fariam tanto mau uso deles! Extraordinário que a porta da vida estaria aberta e o céu tão perto, e eles se recusariam a entrar!

Mas, eu suspeito, o Espírito Santo quer que olhemos mais para além disto. Ele quer que saibamos que se nos assentarmos e calmamente considerarmos a incredulidade, nós não poderemos evitar a conclusão de que há algo singularmente incrível nela e nunca tanto como nestes últimos dias do mundo. Deixe-me tentar mostrar o que eu quero dizer.

(1) Por um lado, incredulidade é uma doença espiritual peculiar aos filhos de Adão. É um hábito da alma inteiramente confinada ao homem. Os anjos acima no céu e os espíritos caídos no inferno, santos aguardando pela ressurreição no paraíso, pecadores perdidos esperando pelo julgamento naquele lugar em que o verme nunca morre, e o fogo nunca se apaga – todos estes tem um ponto em comum, eles todos creem. O homem rico da parábola, quando ergueu seus olhos em tormento, e pediu por uma gota de água para refrescar sua língua, e pediu firmemente por seus cinco irmãos havia dado adeus eterno à incredulidade. “os próprios demônios”, diz Tiago “creem e tremem” (Tiago 2:9). Odioso, detestável, malicioso, assassino, mentiroso como Satanás é chamado nas Escrituras, lemos que seus agentes gritaram, “Bem sei quem és: o Santo de Deus” “Vieste aqui atormentar-nos antes do tempo?” (Mateus 8:29). Mas o homem, o homem vivente, é a única criatura inteligente que é incrédula! Eu digo homem vivente deliberadamente. Ai, que despertar é para muitos o momento do último suspiro! Não há incredulidade no túmulo. Voltaire agora sabe que há um Deus que odeia o pecado; e David Hume agora sabe se há um inferno eterno. A criança de poucos dias, por simplesmente morrer adquire um conhecimento que os mais sutis filósofos, enquanto na terra, professam sua incapacidade de alcançar. Hotentote [1] morto sabe mais do que Sócrates vivo. Certamente um hábito da alma tão absoluto e inteiramente confinado ao “homem vivente” pode muito bem ser chamado de incrível.

(2) Por outro lado, a incredulidade é incrível quando se considera sua arrogância e presunção. Pois, afinal, quão pouco o mais sábio dos homens sabe; e nenhum é mais pronto a confessá-lo do que eles mesmos. Quão enormemente ignorante a maior parte da humanidade é, se examinada a medida de seu conhecimento. A educação da grande maioria das pessoas é miseravelmente escassa e superficial. A maioria de nós cessa de aprender aos vinte e um anos, e então mergulha em alguma profissão na qual nos temos pouco tempo para reflexão e leitura e somos anualmente mais absorvidos em cuidados e problemas familiares e menos para nosso estoque de conhecimento. Cinquenta ou sessenta anos após isto nosso papel termina e nós nos retiramos do palco, raramente deixando o mundo mais sábio do que quando nós nascemos! E será que a incredulidade se torna uma criatura como esta? É conveniente para ele falar em um tom cético e zombeteiro sobre a revelação a qual o Deus Eterno teve o prazer de fazer d’Ele mesmo, e o futuro não visto, naquele maravilhoso Livro, a Bíblia? Eu apelo ao senso comum para uma resposta. “Dúvida honesta” é uma bela coisa sobre a qual falar, e os homens gostam de dizer que é “melhor que a metade das crenças”. Mas quando um homem fala que ele está incomodado com um sentimento cético e descrente sobre o Cristianismo, quando ele provavelmente nunca estudou uma dúzia de páginas de Butler, ou Paley, ou Chalmers, ou McIlvaine, ou o Bispo Daniel Wilson, e nunca pensou profundamente sobre religião, absolutamente, é impossível evitar a conclusão de que uma das coisas mais curiosas em tanta incredulidade é uma incrível presunção.

(3) Por outro lado, a incredulidade é admirável quando se considera sua injustiça e unilateralidade. Quem não teve conhecimento de que alguns dos menores fatos e milagres da Bíblia são as razões ostensivas as quais muitos atribuem a razão pela qual eles não podem receber o Livro como verdadeiro, e fazê-lo sua regra de fé e prática. Eles apontam para a Arca, e a passagem do Mar Vermelho, e a mula de Balaão, e Jonas na barriga do peixe, e perguntarão sarcasticamente se você realmente acredita que estas coisas são verossímeis e historicamente verdadeiras. E todo este tempo eles se recusam a olhar para três grandes fatos os quais nunca podem ser negados, e o quais nenhuma grande crítica pode justificar.

(a) Um destes fatos é a Pessoa histórica do Próprio Jesus Cristo. Como ele pode ter sido o que Ele foi na terra, viver como ele viveu, ensinar como ele ensinou, e feito a marca que ele certamente fez no mundo, se ele não era verdadeiramente Deus e Aquele milagrosamente enviado do céu, é uma questão a qual aqueles que zombam da mula de Balaão, acham conveniente evitar.

(b) Outro fato é a própria Bíblia. Como este Livro, com todas as suas supostas dificuldades, escrito por alguns judeus em um canto do mundo, que não escreveram nada mais que valha a pena ler, pode ser o Livro que é tão imensurável e incomparavelmente superior a qualquer coisa escrita pelo homem, e manter a posição que ela matem depois de 1900 anos de uso, como tudo isto pode ser, se o Livro não foi milagrosamente dado pela inspiração de Deus, é um nó que não pode ser desfeito.

(c) O terceiro e último fato é o efeito que o Cristianismo teve na humanidade – a incrível mudança que teve lugar na situação mundial antes do Cristianismo, e desde o Cristianismo, e a diferença hoje em dia entre estas partes do mundo onde a Bíblia é lida e aqueles onde ela não é conhecida. Nada pode justificar isto a não ser a origem Divina da religião Bíblica. Nenhuma outra explicação irá prevalecer.Agora, estes três grandes fatos são friamente ignorados por muitos incrédulos professos! Eles irão falar por horas sobre muitas pequenas dificuldades no caminho da fé, enquanto eles se recusam a tocar os importantes e evidentes pontos que eu acabei de nomear. As dificuldades da infidelidade são um vasto e interessante assunto, o qual merece mais atenção dos defensores da Revelação do que ele recebe. Mas a injusta e irracional extensão à qual muitos hoje em dia concentram suas mentes em pequenos pontos discutíveis da religião revelada, enquanto eles se recusam a olhar as grandes permanentes evidências da verdade de Deus, é para a minha mente uma das mais admiráveis características da incredulidade moderna.

(4) Em quarto e último lugar, a incredulidade é admirável quando você considera como a vasta maioria daqueles que a professam a deixam e finalmente desistem dela. Poucos talvez tenha a menor ideia de quão raramente um homem deixa o mundo como um incrédulo. A aproximação da morte tem um poderoso efeito nas consciências, e traz em temeroso alívio na total superficialidade de muito do que é chamado ceticismo. As próprias pessoas que passam a vida zombando e escarnecendo do Cristianismo e daqueles que o apoiam, continuamente desistem em suas horas finais, e se contentam o suficiente em mandar chamar os ministros da religião, e buscar conforto na velha doutrina dos credos desprezados. Alguns, com um forte movimento do pêndulo, vão de um extremo ao outro, e, depois de anos vivendo céticos, saem do mundo em servil credulidade, na mais humilde submissão às piores superstições da Igreja de Roma. Outros que não vão tão longe estão desejosos de que se leia para eles, e se orem com eles, e receberem a Ceia do Senhor, depois de negligenciar todas as ordenanças cristãs e desprezar a casa de Deus por dezenas de anos. Miseráveis de fato devem ser os sistemas, que se provam tão inúteis e sem conforto na hora em que o conforto é mais desejado.

Mas a maravilha das maravilhas é que estas falhas da incredulidade são tão notória e constantemente ocorrendo, e ainda assim os homens não as veem, e as fileiras do ceticismo são perpetuamente cheias de novos recrutas. Se aqueles que professam negar a Revelação geralmente morreram mortes felizes e deixaram o mundo em grande paz e alegria, mantendo suas opiniões até o fim, nós podemos muito bem esperar que eles tenham seguidores. Mas quando, ao contrário, é a coisa mais rara ver um incrédulo morrer calmamente da incredulidade sem dar nenhum sinal de desconforto, enquanto a vasta maioria dos incrédulos baixam suas armas no final, e buscam pela verdadeira consolação religiosa, a qual eles a princípio fingiram desprezar, é impossível evitar uma clara conclusão. Esta conclusão é que de todas as doenças espirituais pelas quais o homem caído é afligido, não há nenhuma verdadeiramente admirável e irracional como a incredulidade.

Agora deixe-me concluir este assunto, com algumas poucas palavras de gentil conselho para todos os meus leitores e principalmente para os jovens. Eu mesmo não sou mais jovem. Faz trinta e cinco anos desde que eu comecei a escrever sobre assuntos religiosos. Mas ainda agora eu penso que eu conheço o coração de um homem jovem. Eu posso me lembrar dos dias quando eu tentava firmemente ser um incrédulo, porque a religião havia cruzado o meu caminho e eu não gostei de sua exigência religiosa. Eu fui liberto deste poço, eu creio, pela graça de Deus me levando a um livro o qual, nos últimos anos, imerecidamente saiu de vista, eu falo do “Dificuldades da Infidelidade” de Faber. Eu li aquele livro e senti que não poderia ser respondido. Mas a lembrança da luta que eu atravessei naqueles dias ainda está fresca na minha mente e eu sempre tenho um forte sentimento de compaixão quando ouço a respeito dos conflitos mentais dos jovens.

Alguns dos meus leitores, eu ouço dizer, são frequentemente incomodados por dúvidas céticas sobre a verdade do Cristianismo. Vocês não são incrédulos professos; Deus não permita que eu diga isto. Mas você vê muitas coisas na Bíblia as quais você não pode entender muito bem. Você vê não poucos homens de intelecto poderoso e dominante rejeitando o Cristianismo quase que inteiramente. Você ouve muitos desrespeitando coisas ditas e observações depreciativas feitas de modo inteligente e espertamente sobre os fatos e doutrinas da Bíblia, as quais você é incapaz de responder. Tudo isto confunde você. Você fica em dúvida. É realmente válido orar em secreto, ler a Bíblia, manter o Domingo santificado e participar da Mesa do Senhor? É necessário? Questões como esta são os primeiros passos na estrada em direção descendente. A não ser que você tome as rédeas, elas podem levá-lo à infidelidade. Ouçam-me enquanto eu lhes ofereço alguns conselhos amigáveis.

(a) Em primeiro lugar, deixe-me suplicar-lhes a lidarem honestamente com sua alma sobre pecados secretos. Você tem certeza de que não há algum mau hábito, concupiscência, paixão, os quais, quase insensivelmente a você, que você gostaria de satisfazer, se não fosse por alguns escrúpulos religiosos remanescentes? Você tem certeza de que suas dúvidas não surgem de um desejo de se livrar da limitação? Você gostaria, se você pudesse, de fazer algo que a Bíblia proíbe, e que você tem olhado em volta buscando razões para desconsiderar a Bíblia. Ah! Se este é o caso, com qualquer um de vocês, acordem para uma noção de seu perigo! Quebre as correntes que estão gradualmente se fechando em torno de você. Arranque o olho direito, se necessário for; mas nunca seja servo do pecado. Eu repito que o amor secreto de alguma satisfação viciosa é o verdadeiro princípio de uma vasta quantidade de infidelidade.

(b) Em seguida, deixe-me pedir-lhes para lidar honestamente com sua alma sobre o uso de meios para adquirir conhecimento religioso. Você pode colocar sua mão no coração e dizer que você realmente se esforça em saber o que é a verdade? Não se envergonhe de orar pela luz. Não se envergonhe de ler algum livro importante sobre os Credos e Confissão de sua própria Igreja, e, acima de tudo, não se envergonhe de regularmente estudar o texto da sua Bíblia. Milhares, eu estou convencido, nestes dias, não sabem nada do Santo Livro o qual eles fingem desprezar e são totalmente ignorantes a respeito da verdadeira natureza que aquele Cristianismo o qual eles fingem que não podem acreditar. Não deixe que este seja o caso com você. Aquela famosa “dúvida honesta” a qual muitos dizem que é melhor do que metade das crenças, é uma bela coisa sobre o que falar. Mas eu tenho uma forte suspeita de que muito do ceticismo dos dias atuais, se peneirado e analisado, seriam encontrados à brotar da total ignorância das primárias evidências do Cristianismo. De minha parte, eu me posiciono nas palavras de Salomão: “Filho meu, se aceitares as minhas palavras, e esconderes contigo os meus mandamentos, Para fazeres o teu ouvido atento à sabedoria; e inclinares o teu coração ao entendimento; Se clamares por conhecimento, e por inteligência alçares a tua voz, Se como a prata a buscares e como a tesouros escondidos a procurares, Então entenderás o temor do SENHOR, e acharás o conhecimento de Deus”. (Provérbios 2:1-5). Eu temo que muitos incrédulos professos nunca seguiram o caminho aqui recomendado por Salomão.

(c) Por último, mas não menos importante, deixem-me suplicar-lhes para lidarem honestamente com a religião da fé, e com aqueles que a professam. Que há tal religião que está entre nós, e que há milhares que a professam são fatos simples os quais ninguém pode negar. Esses milhares acreditam sem duvidar em certas grandes verdades do Cristianismo e vivem e morrem na sua fé. Admita-se que em alguns pontos estes homens de fé não concordem – tais como a Igreja, ministério e os sacramentos. Mas depois de cada dedução, ainda restam uma imensa quantidade de teologia comum, sobre a qual sua fé é uma. Sobre pontos tais como o pecado, Deus, Cristo, a expiação, a autoridade da Bíblia, a importância da santidade, a necessidade da oração, a autonegação, o valor da alma, a realidade do céu e do inferno, o julgamento, a eternidade; sobre tais pontos, eu digo, estes homens de fé são muito mais unânimes. Agora, eu pergunto, é honesto dar as costas a estes homens e sua religião com desprezo porque eles têm muitas fraquezas e enfermidades? É justo desprezar a sua religião e envolver-se com a incredulidade, por causa das controvérsias e lutas, sua débil literatura e seu espírito partidário? Note os frutos da paz, esperança, conforto, os quais eles gostam. Marque a sólida obra a qual, com todas as falhas deles, eles fazem no mundo, diminuindo a tristeza e o pecado, e aumentando a felicidade e melhorando seus companheiros. Quais frutos e obras pode a incredulidade mostrar que irão poder ser comparados com os frutos da fé? Encare estes fatos e lide honestamente com eles. Os sistemas devem ser julgados por seus frutos e resultados. Quando os chamados sistemas da incredulidade moderna, do ceticismo e do livre pensamento puderem apontar para tanto bem feito no mundo por seus adeptos, quanto a fé simples tem feito pela mão de seu amigos, nós poderemos dar a eles alguma atenção. Mas até que eles o façam, eu ouso dizer que a simples e antiquada religião da fé ganhou nosso respeito, estima e obediência, e não deve ser desprezada.

Afinal, devo concluir que com a humilde e pesarosa observação que nós que professamos a fé e não somos nunca incomodados com a incredulidade, não estamos completamente livres de culpa. Muito frequentemente nossa fé é pouca coisa melhor do que um mero assentimento ocioso, para certas proposições teológicas, mas não um vivo e ardente princípio que trabalha pelo amor, purifica o coração e vence o mundo. Não é a fé que fez os cristãos primitivos regozijarem sob a perseguição romana, e fez Lutero levantar-se corajosamente diante da Dieta de Worms, e fez Ridley e Latimer “não amarem suas vidas até a morte”, e fez Wesley desistir de sua posição em Oxford para se tornar o Evangelista da Inglaterra. Nós somos, de fato, culpados nesta matéria. Se houvesse mais fé real na terra, eu suspeito que haveria menos incredulidade. O ceticismo, no caso de muitos, iria encolher, diminuir e derreter, se visse a fé mais despertada, viva, ativa e em movimento. Que nós, pelo amor de Cristo, e pelo amor às almas, corrijamos nossos caminhos nesse sentido. Oremos, diariamente: “Senhor, aumenta-nos a fé”, e vivamos, e nos movamos, existamos, e lidemos com os homens como se nós realmente crêssemos em cada jota e til de nossos credos, e como se um morto, ressurreto, intercessor e vindouro Cristo estivesse continuamente diante dos nossos olhos.

Isso, eu estou firmemente convencido, é a forma mais certa de opor e reduzir a incredulidade. Que o tempo passado nos baste de termos vivido contentes com um frio e manso consentimento aos credos. Que o tempo porvir nos encontre crentes vivos, ativos. Foi um dito solene que saiu dos lábios de um eminente ministro de Cristo em seu leito de morte – “Nós não somos, nenhum de nós, mais do que meio despertos!”. Se os crentes fossem mais cuidadosos, reais e sinceros em sua fé, haveria bem menos incredulidade no mundo!

John Charles Ryle – “Unbelief a Marvel”, traduzido de “Evangelical Tracts” | Projeto Ryle – Anunciando a Verdade Evangélica | Todo direito de tradução em português protegido por Lei Internacional de Domínio Público.

Nota:

[1] Hotentote: uma tribo africana tida como sinônimo de ignorância religiosa nessa época (nota do rerisor).

Folhetos de J. C. Ryle – Estes folhetos são clássicos da Verdade do Evangelho que leitores de J. C. Ryle se habituaram a esperar de todos os seus escritos. Seus folhetos são “ouro puro”. Eu lhes ofereço algumas dessas obras inspiradoras exatamente palavra por palavra conforme elas foram inicialmente publicadas pelo Drummond’s Tract Depot, Stirling, Escócia no século XIX.

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