“Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou, juntamente com Cristo (pela graça sois salvos), e nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus; para mostrar nos séculos vindouros as abundantes riquezas de sua graça pela sua benignidade para conosco em Cristo Jesus” (Ef 2:4-7).
Já examinamos esta majestosa e emocionante declaração de maneira mais ou menos geral. Observamos como o apóstolo a introduz, e especialmente a palavra “Mas”, que introduz o ponto de transição do desamparo e desespero do homem em pecado para a esperança e consolação do Evangelho. Esta é a única esperança; fora dela não há absolutamente nenhuma esperança.
Quando nos vemos numa condição inteiramente perdida e perigosa, de repente nos chega esta mensagem, inesperada e surpreendentemente, de uma esfera diferente, que nos impulsiona a levantar os nossos rostos. Além disso, a sua grande ênfase é que foi Deus que fez isso. Foi quando estávamos mortos e não podíamos fazer nada, que Deus fez o que somente Ele podia fazer. É o poder de Deus. Vemos também aí, com muita clareza, o contraste entre Deus e nós: Ele é rico em misericórdia, tem grande amor por nós, Sua graça é sobremodo rica, e a Sua disposição para conosco é sempre bondosa e benigna.
Mas o apóstolo não se contenta em meramente introduzir o Evangelho e em meramente pintar estes contrastes extraordinários e maravilhosos. Também está desejoso de que tenhamos clara ideia do feito grandioso que Deus realizou por nós. Que é que pode ser mais maravilhoso do que o modo como, ao vermos como somos em pecado, reagimos a este bendito “Mas”? Todavia, não devemos ficar simplesmente admirados e espantados, devemos aprender e compreender exatamente o que Deus fez por nós. Por isso o apóstolo expõe isso diante de nós em detalhe. Há um sentido em que podemos dizer acertada e verdadeiramente que temos aqui uma das declarações mais profundas com respeito à condição e à situação do cristão que se pode achar em qualquer parte das Escrituras. O que aconteceu é que, “estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois salvos), e nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus” (Ef 2:5-6).
Pois bem, há, obviamente, algumas observações preliminares que se deve fazer sobre uma declaração como essa.
A primeira que me sinto constrangido a fazer é que isto é cristianismo verdadeiro.
Essa é a própria essência do cristianismo, e nada menos que isso. O que estas palavras descrevem é o centro vital de toda essa matéria. É o que Deus fez para nós e por nós, e não primariamente algo que tenhamos feito. Noutras palavras, o cristianismo não significa apenas que eu e vocês tomamos uma decisão. Naturalmente isso está incluído, mas não é a essência do cristianismo. As pessoas podem decidir parar de fazer certas coisas e começar a fazer outras; isso não é cristianismo. As pessoas podem acreditar que Deus lhes perdoa os seus pecados; porém, isso, em si, não é cristianismo. A essência do cristianismo é a verdade que temos aqui – e este é o fato real, e nada menos que isso é o fato real.
Gostaria de acentuar também que isto é verdade quanto a todos os cristãos.
Mais adiante veremos que aqui nos defrontamos com o maravilhoso ensino e doutrina acerca da união do cristão com o Senhor Jesus Cristo. Com efeito, há certas escolas de pensamento cristão que têm feito grande dano neste ponto, dando-nos a impressão de que se trata de algo a que somente certos cristãos chegam, de que se você realmente se entregar ao cultivo da vida cristã, poderá esperar chegar finalmente a esta união com Cristo. É óbvio que eles pensam que existem muitos cristãos que ainda não ocupam esta posição e que precisam ser exortados e concitados e estimulados a lutar até alcançarem essa condição. Ora, isso está inteiramente errado, é inteiramente falso. Você não pode ser cristão, de modo nenhum, sem a verdade que estamos examinando agora; é esta verdade que nos faz cristãos; sem ela não estamos na posição cristã absolutamente.
Portanto, é importante que entendamos imediatamente que de fato estamos tratando aqui de algo que é básico e fundamental e primordial. Ao mesmo tempo, naturalmente, a doutrina é tão gloriosa e grandiosa que inclui a totalidade da vida cristã. A vida cristã é um todo, e você tem, por assim dizer, o todo no início, e depois passa a apropriar-se de suas várias partes e a entendê-lo cada vez mais. Isto é cristianismo, que “estando nós ainda mortos em nossas ofensas, Deus nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois salvos), e nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus”. Que acontece, pergunto, quando nos examinamos à luz dessa declaração? Poderíamos dizer que sempre pensamos a nosso respeito como cristãos nestes termos? Seria como eu penso de mim como cristão? Ou ainda me inclino a pensar em mim como cristão nos termos daquilo que estou tentando fazer, lutando para fazer, e daquilo em que estou tentando me tornar ou que estou tentando fazer de mim mesmo? Ora, isto é evidentemente básico, porque toda ênfase do apóstolo aqui é que a coisa primordial, a primeira coisa, é esta que Deus faz para nós, não primariamente o que eu e você fazemos pessoalmente.
Há duas maneiras de examinar esta grande declaração. Há alguns que têm uma ideia puramente objetiva dela. Pensam nela exclusivamente em termos da nossa situação, ou da nossa posição, na presença de Deus. O que quero dizer é que eles pensam nela como sendo algo que, num sentido, já é verdade a nosso respeito em Cristo, mas não é verdade a nosso respeito na prática. Consideram esta como uma declaração do fato de que após a morte ressuscitaremos e participaremos da vida da glória que está à espera de todos os que estão em Cristo Jesus. Afirmam que a verdade é que o Senhor Jesus Cristo já ressuscitou dos mortos; Ele foi vivificado quando estava morto na sepultura, foi ressuscitado, apareceu a certas testemunhas, subiu ao céu e está na glória, nos lugares celestiais. Pois bem, dizem eles, isso aconteceu com Ele, e, se crermos n’Ele, acontecerá conosco.
Eles afirmam que essa verdade quanto a nós é pela fé agora, porém realmente só pela fé. Não é real em nós agora, é inteiramente real n’Ele, mas se tornará real em nós no futuro. Pois é isso que eu considero uma ideia puramente objetiva desta declaração. E, naturalmente, como declaração, está perfeitamente certa, exceto que não vai suficientemente longe. Tudo isso é verdade quanto a nós. Chegará a hora em que todos nós, cristãos, seremos ressuscitados, a menos que o nosso Senhor volte antes de morrermos. Os nossos corpos serão transformados e glorificados; e nós viveremos e reinaremos com Ele, e entraremos em Sua glória e dela participaremos com Ele. Isso é perfeitamente verdadeiro.
No entanto, me parece que interpretar esta declaração unicamente dessa maneira é interpretá-la de maneira gravemente errônea. E isso eu posso provar. Há dois argumentos que a tornam uma interpretação completamente inadequada. O primeiro é que todo o contexto aqui é experimental. O apóstolo não está tão interessado em lembrar a estes efésios algo que lhes irá acontecer; o seu grande interesse aqui é lembrá-los do que já lhes aconteceu, e da sua posição atual. É importante que sempre levemos conosco o contexto. O interesse do apóstolo, mostrado em toda esta declaração, é que podemos conhecer “a sobre-excelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a operação da força do seu poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos” (Ef 1:19-20).
Noutras palavras, ele está orando no sentido de que estes efésios tenham os olhos do seu entendimento iluminados de tal modo que possam saber o que Deus está fazendo por eles agora, nesse exato momento, não alguma coisa que Ele vai fazer no futuro. É importante termos claro entendimento sobre a morte, para que percamos o medo da morte, para que estejamos tão certos da ressurreição e da nossa glorificação que possamos sorrir em face da morte; está certo, entretanto não é isso que o apóstolo está ensinando aqui. Ele está interessado em que eles apreciem agora, em meio a todas as suas dificuldades, aquilo que é a concreta verdade a respeito deles.
Contudo, há uma prova mais forte, parece-me, no versículo cinco. Diz o apóstolo que, “estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou com Cristo”, e então, entre parêntesis, “(pela graça sois salvos)”. Ele diz, noutras palavras: o que estou falando é sobre a sua salvação neste momento. “Pela graça sois salvos” significa “pela graça vós já fostes salvos”. Esse é o tempo verbal, “fostes salvos”. Evidentemente é algo experimental. É algo subjetivo, não puramente objetivo.
A tragédia é que muitas vezes as pessoas colocam estas coisas como elementos opostos, ao passo que, na realidade, as Escrituras sempre mostram que ambas as coisas devem andar juntas. Há um lado objetivo da minha salvação, mas, graças a Deus, há também um lado subjetivo. É um erro ensinar, como o moderno movimento bartiano tende a ensinar, que tudo é objetivo, que tudo está em Cristo e que em mim não há absolutamente nada. Isso me parece um grave erro, porque as Escrituras, felizmente para nós, sempre acentuam o experimental, o pessoal, o subjetivo, o que eu desfruto aqui e agora.
Minha salvação não está completa e exclusivamente em Cristo; uma vez que eu estou em Cristo, ela está em mim também. É isso que o apóstolo está desejoso de que entendamos. Noutras palavras, esta realidade deve ser interpretada espiritual e objetivamente, deve ser entendida experimentalmente. O que Deus fez por nós espiritualmente, diz o apóstolo, é comparável ao que Ele fez ao Senhor Jesus Cristo no sentido físico quando O ressuscitou dentre os mortos e O levou para Si para que Ele Se assentasse nos lugares celestiais.
Devemos retornar ao fim do capítulo primeiro. O poder que está operando para conosco e em nós, os que cremos, é o mesmo poder que Deus “manifestou em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos, e pondo-o à sua direita nos céus, acima de todo o principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo nome que se nomeia, não só neste século, mas também no vindouro; e sujeitou todas as coisas a seus pés, e sobre todas as coisas o constituiu como cabeça da igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todos” (Ef 1:20-23).
Agora, diz Paulo, quero que vocês saibam que exatamente o mesmo poder que fez isso está operando em vocês espiritualmente. Isso, então, nos capacita a dizer tudo o que aconteceu conosco, se somos cristãos, aconteceu por esse mesmo poder de Deus. Todos os tempos verbais que o apóstolo emprega justamente nestas palavras que estamos estudando estão no passado; ele não diz que Deus vai nos ressuscitar, vai nos vivificar, vai fazer-nos sentar nos lugares celestiais; ele afirma que Ele já o fez, que quando estávamos mortos Ele nos vivificou. E o tempo aoristo, o passado, é algo que se completou, e uma vez por todas já foi feito. Assim é que temos que dizer de nós mesmos, como cristãos, que fomos vivificados, fomos ressuscitados, e estamos sentados nos lugares celestiais. Ou, talvez, numa colocação melhor, possamos dizer – e seguramente é o que o apóstolo tinha em mente – que a situação do cristão é exatamente o oposto da situação do não cristão.
O não cristão é alguém que está morto em ofensas e pecados, está sendo levado de acordo com o curso deste mundo, de acordo com o príncipe das potestades do ar, do espírito que agora opera nos filhos da desobediência; ele vive segundo os desejos da carne, fazendo a vontade da carne e da mente; ele está, por natureza, sob a ira de Deus. Esse é o não cristão. E o cristão, que é? O exato oposto disso – vivificado; vivo; ressurreto; sentado nos lugares celestiais; inteiramente diferente, contraste completo.
O “mas” assinala em toda parte este aspecto de contraste. E, obviamente, não poderemos entender verdadeiramente a nossa posição como cristãos, se não compreendermos que é um completo contraste com o que éramos antes. Vocês veem como, na interpretação das Escrituras, é importante tomar tudo em seu contexto. Temos que ter claro entendimento acerca do nosso estado em pecado porque, se não, jamais teremos claro entendimento acerca do nosso estado na graça e na salvação.
Se essa é a verdade acerca de nós como cristãos agora, há duas importantes questões que devem ocupar a nossa atenção. Eis a primeira: como foi que tudo isso nos aconteceu? Como foi que isso passou a ser verdade a meu respeito como cristão? O apóstolo responde: é “juntamente com Cristo”. Vocês notam sua ênfase constantemente repetida? – “quando estávamos mortos em pecados, vivificou-nos junto com Cristo, ressuscitou-nos juntos e nos fez sentar juntos nos lugares celestiais em Cristo Jesus” (VA).
Aqui sem dúvida nos vemos face a face com uma das mais grandiosas e mais maravilhosas doutrinas cristãs, uma das mais gloriosas, fora de toda e qualquer contestação. Trata-se do ensino completo das Escrituras com respeito à nossa união com Cristo. É um ensino que vocês encontrarão em muitos lugares. Remeto-os ao capítulo cinco da Epístola aos Romanos, que, de muitas maneiras, é a mais extensa exposição da doutrina. Mas igualmente ela pode ser encontrada no capítulo seis da Epístola aos Romanos. Também se encontra em 1 Coríntios, capítulo 15, o grandioso capítulo frequentemente lido nos funerais; todavia igualmente se vê em 2 Coríntios, capítulo 5. Similarmente o ensino se acha naquelas belas palavras do fim do capítulo dois da Epístola aos Gálatas – “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim”.
Esta é a coisa mais maravilhosa e mais espantosa, e, para mim, é sempre uma questão que me causa grande surpresa que esta bendita doutrina receba tão pouca atenção. Por uma outra razão o povo cristão parece temê-la. Não tenho dúvida que é principalmente pela razão que já dei, que o ensino católico (seja romano ou anglicano ou de qualquer outro tipo) sempre propenso a dar a impressão de que esta é uma realização final do místico, a meta suprema do maior santo, mas nada tem a ver com o resto de nós, cristãos comuns. A nossa réplica é que, de acordo com este ensino, em Efésios, capítulo 2 e noutros lugares, vocês não são cristãos enquanto não estiverem unidos a Cristo e “n’Ele”. Esta doutrina da nossa união com Cristo não deveria vir no fim da doutrina cristã, deveria vir no início, onde o apóstolo a coloca.
Que significa estarmos unidos a Cristo? Esta expressão é empregada em dois sentidos. O primeiro é o que se pode chamar sentido federal, ou, noutras palavras, sentido pactual. Esse é o sentido do capítulo cinco de Romanos, versículos 12-21. Adão foi constituído e considerado por Deus como o chefe e o representante da raça humana; ele foi o chefe federal, o representante federal, o cabeça pactual. Deus fez uma aliança com Adão, fez um acordo com ele, fez certas declarações a ele quanto ao que Ele pretendia fazer, e assim por diante. Pois bem, esse é o primeiro sentido em que é ensinada esta doutrina da união. E, portanto, o que se diz acerca do Senhor Jesus Cristo é que Ele é nosso Chefe Federal, nosso Representante. Adão, o nosso representante, rebelou-se contra Deus; pecou e foi punido, e certas consequências se seguiram. Mas devido Adão ser o nosso representante e o nosso chefe ou cabeça, o que aconteceu com Adão aconteceu por isso com toda a sua posteridade e conosco.
Ora, esse é um aspecto da questão, e muito importante. Conhecemos algo sobre isso na vida e no viver comum. O embaixador deste país num país estrangeiro representa todo o país, e se envolve em ações nas quais nos envolvemos, queiramos ou não. Como cidadãos deste país nós todos sofremos as consequências de resoluções que foram tomadas, até mesmo antes de nascermos. Vocês não podem abstrair-se de sua nação, estão federalmente envolvidos nas atividades da sua nação, e o que o líder ou o representante oficial de uma nação faz impõe-se a todos os cidadãos dessa nação. Muito bem, essa é a verdade com relação a Adão. Também é a verdade com relação ao Senhor Jesus Cristo. Adão foi o primeiro homem; Jesus Cristo é o segundo homem. Vocês têm o primeiro Adão; vocês têm o último Adão. Agora, de acordo com este ensino, Jesus Cristo é o representante desta nova humanidade; e, portanto, o que Ele fez e o que Ele sofreu é algo que se aplica à totalidade desta nova raça que veio a existir n’Ele. Dessa maneira, deve-se pensar na união do crente com Cristo em termos desse sentido federal.
Mas a coisa não fica nisso. Há outro aspecto da união, que podemos chamar místico ou vital. É algo que o nosso Senhor ensinou pessoalmente, nas famosas palavras do capítulo quinze do Evangelho Segundo João, onde Ele diz: “Eu sou a videira verdadeira, vós as varas”.
A união entre as varas e a videira não é mecânica, é vital e orgânica. Estão unidas; a mesma seiva, a mesma vida no tronco e nos ramos. Contudo, essa não foi a única ilustração utilizada. No final do capítulo primeiro desta Epístola Paulo diz que a união entre o cristão e o Senhor Jesus Cristo é comparável à união das diversas partes do corpo com o corpo todo, e especialmente com a cabeça. Pois bem, qualquer dos meus dedos é parte vital do meu corpo. Não foi simplesmente amarrado nele; há uma união viva, orgânica, vital. O sangue que corre através da minha cabeça, corre através dos meus dedos. Isso indica uma espécie de unidade interna essencial, e não uma união meramente federal ou legal ou pactual. Há, de fato, mais uma ilustração empregada nesta Epístola aos Efésios, no capítulo cinco, onde se nos diz que a união entre a Igreja e Cristo, e, portanto, entre todo membro da Igreja e Cristo é comparável à união entre um marido e sua esposa – “ambos serão uma só carne”. Essa união é mística. Essa é a união entre Cristo e a Igreja.
Todas estas bênçãos que usufruímos tornaram-se nossas porque estamos ligados a Cristo dessa maneira dupla – de maneira forense, federal, pactual, porém também desta maneira vital e viva. Podemos afirmar, pois, que o que aconteceu com Cristo aconteceu conosco. Este é o mistério e a maravilha da nossa salvação, e é a realidade mais gloriosa que jamais podemos contemplar. O Filho de Deus, a Segunda Pessoa da Deidade eterna, desceu do céu à terra; assumiu a nossa natureza humana, compartilhou da natureza humana; e como resultado da Sua obra, nós, seres humanos, compartilhamos da Sua vida e estamos n’Ele, e somos participantes de todos os benefícios que d’Ele vêm. Meus amigos, eu os fiz lembrar-se logo no princípio, e devo repeti-lo, que o cristianismo é isso, e nada menos que isso. E se não compreendemos isso, eu pergunto: que é o nosso cristianismo? Isto não é algo a que você chega, é algo com que você começa. Você não obtém nenhum benefício de Cristo, a não ser em termos da sua união com Ele – “todos nós recebemos também da sua plenitude”, diz João, “e graça por graça” (Jo 1:16).
Ora, neste ponto, o apóstolo está primariamente interessado em salientar o aspecto positivo disso tudo, e não o negativo. Ele tratará do aspecto negativo um pouco mais adiante, neste capítulo. Mas, necessariamente, é preciso ter em mente o negativo também. No entanto, o que o apóstolo está primariamente interessado em salientar é que, ao passo que estávamos mortos, agora estamos vivos. A pergunta que surge de imediato é: como é que isto pode acontecer? Algo precisa acontecer antes que nós, que estamos mortos e sob a ira de Deus, possamos passar a estar vivos. Não posso auferir nenhum benefício, de espécie alguma, enquanto não se faça algo para satisfazer a ira de Deus, pois não apenas estou morto e não apenas sou uma criatura de desejos e domínios pelo deus deste mundo, eu estou sob a ira de Deus – “éramos por natureza filhos da ira, como os outros também”. E, graças a Deus que alguma coisa aconteceu! Cristo tomou sobre Si a nossa natureza, levou sobre Si os nossos pecados, foi ao local de punição; a ira de Deus foi derramada sobre Ele.
Esse é todo o significado da Sua morte na cruz, é o pecado sendo punido, é a ira de Deus se manifestando contra o pecado. E se não vemos isso na cruz do Calvário, estamos olhando para aquela cruz sem os olhos do Novo Testamento. Há nesse terrível aspecto da cruz, e nós nunca devemos esquecê-lo. Jamais devemos esquecer o brado de desamparo: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” Isso aconteceu porque Ele estava experimentando a ira de Deus contra o pecado, nada menos que isso. Mas aqui o apóstolo está muito mais interessado em acentuar o aspecto positivo. Cristo não somente morreu e foi sepultado; Ele ressuscitou. Deus agiu “ressuscitando-o dentre os mortos, e pondo-o à sua direita nos céus, acima de todo o principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo o nome que se nomeia”. Tudo isso envolveu uma vivificação, uma ressurreição e uma exaltação.
E a mesma coisa, diz o apóstolo, é verdade a nosso respeito, porque estamos em Cristo – “nos vivificou juntamente com ele”. Isto aconteceu com todo aquele que é cristão. É ação de Deus. Certamente isto não requer nenhuma demonstração. O homem que está morto em pecados e sob a ira de Deus, que pode fazer? Nada. Deus o faz para ele, Deus o vivifica. Como Ele vivificou o corpo morto do Seu Filho no túmulo, assim Ele nos vivificou espiritualmente.
Que é que significa “vivificar”? Significa “tornar vivo”, significa “infundir vida”. Então, a primeira coisa que é verdadeira quanto ao cristão é que ele chegou ao fim da sua morte – estávamos mortos em ofensas e pecados, não tínhamos nascido espiritualmente. Não há nenhuma centelha divina em ninguém que nasceu neste mundo; todos os nascidos neste mundo, porque são filhos de Adão, nascem mortos, nascem mortos espiritualmente. Toda essa ideia de uma centelha divina remanescente no homem é uma contradição, não somente nesta passagem das Escrituras, mas de todas as Escrituras. A situação de todos os que nascem neste mundo é a de um morto. A comparação utilizada para ilustrar este fato é o corpo morto do Senhor Jesus Cristo, sepultado numa tumba e com uma pedra rolada sobre a boca da tumba. Esta é, pois, a primeira verdade positiva. Cheguei ao fim da minha morte. Não mais estou morto em ofensas e pecados, não mais estou morto espiritualmente. Por quê? Porque morri com Cristo; morri com Cristo para a lei de Deus e para a ira de Deus. Ora, o cristão é alguém que tem que afirmar esta verdade. O princípio do cristianismo é dizer: “Portanto agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8:1).
O cristão não é alguém que está esperando ser perdoado; não é alguém que espera que finalmente será capaz de satisfazer as exigências da lei e de estar na presença de Deus. Se é um cristão que entende o cristianismo, ele diz: já estou lá, não estou mais morto, estou vivo, fui vivificado, vida me foi dada. E o primeiro aspecto importante dessa declaração é o negativo, que afirma que não estou mais morto. Deixei de ser morto; estou morto para o pecado, estou morto para a lei, estou morto para a ira de Deus. “Portanto agora nenhuma condenação há”. Você pode dizer isso? É a declaração que todo cristão deveria ser capaz de fazer. E se você não tem essa segurança, é simplesmente porque você não entende as Escrituras. As Escrituras fazem esta asserção definida: não sou cristão, não posso ser cristão sem estar em Cristo. Segue-se que, se estou em Cristo, o que é verdade a respeito d’Ele é também verdade a meu respeito. Ele morreu uma vez para o pecado, e eu, n’Ele, morri uma vez para o pecado.
Quando o Senhor Jesus Cristo morreu naquela cruz no Monte Calvário, eu estava morrendo com Ele tão definida e certamente (e ainda mais) como sou responsável pelas ações da Grã-Bretanha, por exemplo, na China, no último século, quando a sua gente introduziu lá, vergonhosamente o comércio do ópio. Embora eu não o tenha feito pessoalmente, embora tenha sido feito antes de eu nascer, sou responsável porque sou britânico, e me sinto responsável e sinto vergonha. Exatamente da mesma maneira, quando Cristo morreu na cruz e sofreu a ira de Deus contra o pecado, eu estava participando nisso; eu estava n’Ele, eu estava morrendo com Ele. Estou morto para a lei, estou morto para a Ira de Deus, eu posso dizer com Augustus Toplady:
Os terrores da lei, os terrores de Deus
Comigo nada têm, nada podem fazer-me;
A obediência e o sangue do meu Salvador
Escondem da visão as minhas transgressões.
Mais que isso, porém, Ele nos vivificou, Ele nos tornou vivos; e se você está vivo, não está mais morto. Uma coisa ou outra – você não pode esperar tornar-se vivo; ou está vivo ou está morto. Você está espiritualmente morto, ou está espiritualmente vivo? Mas examinemos o caso mais profundamente. Quer dizer que Deus colocou um novo espírito de vida em mim. “A lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, ‘me’ livrou da lei do pecado e da morte” (Rm 8:2).
“A lei do Espírito de vida, em Cristo” está no cristão. Isto é o oposto da morte e da inércia. Antes de entrar em nós este espírito de vida em Cristo Jesus, estávamos mortos em ofensas e pecados, e sujeitos a um espírito muito diferente – “o príncipe das potestades do ar, o espírito que agora opera nos filhos da desobediência”. Todavia a verdade já não é essa. Há um novo espírito de vida.
Que é “vivificação”? Vivificação é regeneração, e nenhuma outra coisa. Quando o apóstolo diz aqui, “Vos vivificou”, ele quer dizer, Ele vos regenerou; Ele vos deu nova vida, nascestes de novo, fostes ciados de novo, vós vos tornastes participantes da natureza divina. Que é regeneração? Não posso pensar numa definição melhor do que esta: regeneração é um ato de Deus pelo qual um novo princípio de vida é implantado no homem, e a disposição dominante da alma é tornada santa. Isso é regeneração. Significa que Deus, por Sua ação poderosa, põe nova disposição em minha alma. Notem que digo “disposição”, não faculdades; o de que necessita o homem não são faculdades; necessita é de uma nova disposição. Qual a diferença, vocês perguntarão, entre faculdades e disposição? Pode-se dizer que é algo assim: a disposição é aquilo que determina a tendência e o uso das faculdades. É a disposição que governa e organiza o uso das faculdades, que faz de um homem um músico, de outro um poeta e de outro alguma outra coisa.
Assim, a diferença entre o pecador e o cristão, entre o incrédulo e o crente, não é que o crente, o cristão, tem certas faculdades que faltam ao outro. Não, o que acontece é que esta nova disposição dada ao cristão dirige as suas faculdades de maneira inteiramente diversa. Não lhe é dado um novo cérebro, não lhe é dada uma nova inteligência, ou alguma outra coisa. Ele sempre teve essas coisas; são seus servos, seus instrumentos, seus “membros”, como lhes chama Paulo no capítulo seis de Romanos; o que é novo é uma nova tendência, uma nova disposição. Ele mudou de direção, há agora um novo poder agindo nele e guiando as suas faculdades.
É isso que faz de um homem um cristão. Há nele este princípio de vida, há esta nova disposição. E esta afeta o homem todo; afeta a sua mente, afeta o seu coração, afeta a sua vontade. É algo que sucede instantaneamente ao homem, não gradativamente. O nascimento é repentino, o nascimento é instantâneo, não é um processo gradual. Lá estava o homem, em dado momento morto, no momento seguinte vivo. Ele foi vivificado; esta disposição, este princípio de vida penetrou nele. E, obviamente, é algo que acontece no nosso subconsciente. O nosso Senhor deixou isso claro (não deixou?) para Nicodemos naquela famosa declaração: “O vento assopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito”.
É secreto, não se pode ver nem entender, não é possível explicá-lo plenamente; tudo o que se sabe é que aconteceu. “Eu era cego, e agora vejo” (VA e ARA). Não entendo isso, não posso explicar, nem fisiologicamente, nem anatomicamente, nem de nenhuma outra maneira; tudo o que eu sei é que eu era cego, não podia ver, mas agora posso ver. Eu estava morto, agora estou vivo. É secreto, é misterioso, é miraculoso, é maravilhoso, é incompreensível; porém conheço os efeitos, aprecio os resultados, estou ciente do fato de que isso aconteceu. Então, que será? É um ato criador de Deus. É por isso que vocês veem este apóstolo e outros se referindo muitas vezes a esse fato como uma nova criação – “Se alguém está em Cristo, nova criatura é (nova criação); as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo”.
Sim, ele tem os mesmos olhos, olha para as mesmas coisas para as quais olhava antes, contudo não as vê como costumava vê-las. O pobre ébrio tinha olhos e podia olhar para um bar, e via certas coisas; ele continua tendo olhos, continua vendo o mesmo bar, e, todavia, não é a mesma coisa, é inteiramente diferente. Ele está olhando para a mesma coisa, mas vê uma coisa absolutamente diferente. Por quê? – não foi o bar que mudou. Ele mudou, ou melhor, foi mudado. Um novo homem, uma nova disposição, um novo princípio dominante, nova vida!
Você está vivo? Deus colocou em você este princípio de vida? Precisamente como você é neste momento, você sabe se isto aconteceu com você, que há esta diferença essencial entre você e o homem do mundo? Terei que entrar nesse assunto em detalhe mais adiante. Mas este é o começo de tudo. Veja aquela criança que acabou de nascer. Ela não pode raciocinar, não pode pensar, não pode dar conta de si, dos seus gostos e do que lhe desagrada; não obstante, ela manifesta vida: está viva, e tão viva como sempre estará. O seu entendimento e tudo mais se desenvolverão, mas ela está viva e mostrando que está. Vivificados! Estávamos mortos, sem vida, não podíamos mover-nos espiritualmente, não tínhamos apetite espiritual, não tínhamos apreensão nem entendimento, espiritualmente. No entanto, se somos cristãos, isso não é mais verdade; fomos vivificados juntamente com Cristo, o princípio de vida entrou, fomos regenerados. Não há cristianismo sem isso. Meramente crer que você está perdoado não é suficiente. Cristianismo é isto: crer e saber que, devido estarmos unidos a Cristo, algo da Sua vida está em nós como resultado desta união vital e indissolúvel, desta conexão íntima, mística. A vida da Cabeça passa pelos membros – “vós sois o corpo de Cristo, e seus membros em particular” (1 Cor 12:27).
Você tem consciente percepção d’Ele? Você sabe que Ele está em você e você n’Ele? Você pode dizer: “Eu vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim”? Você tem vida? Você foi vivificado? Este é o começo do cristianismo. Não há cristianismo sem isso. Não é que eu e você não devemos estar lutando. Claro que devemos lutar, estudar, jejuar, suar e orar. Temos que fazer estas coisas; mas isso é algo que vem na sequência. A primeira coisa é este conhecimento da vida. Porventura você tem consciência de um princípio que está agindo dentro de você, por assim dizer, a despeito de você mesmo, influenciando você, moldando você, guiando você, convencendo-o (do pecado), levando você avante? Você está ciente de que é possesso? – se posso dizê-lo assim, sob o risco de ser mal entendido. O cristão é um homem possesso; este princípio de vida entrou nele, esta nova disposição o possui. Ele tem consciência de uma ação que se efetua dentro dele. “Vivificados juntamente com Cristo”! Que coisa tremenda! É algo objetivo; porém, graças a Deus, também é subjetivo. Não é uma coisa que está totalmente n’Ele e que me deixa onde eu estava. Nada disso! Deus começou em mim uma boa obra, e eu a conheço. Ele colocou esta nova vida em mim – em mim! Nasci de novo e estou em união com Cristo.
Queira Deus, por Seu Espírito, iluminar os olhos do nosso entendimento, para que comecemos a compreender esta estupenda operação do poder de Deus em nós.
David Martyn Lloyd-Jones