É difícil superestimar a importância da doutrina da criação. Nas Escrituras, Deus se identifica, primeiramente, como o soberano Criador e, por isso, o Senhor do Universo. Muitos cristãos são naturalmente interessados na doutrina da salvação, mas, sem o Deus de criação e providência, não há cristianismo como a Bíblia o descreve. Na verdade, as bases teológicas para a doutrina da salvação estão arraigadas no fato de que o Deus que existe – o Senhor pessoal, soberano e trino que existe desde toda a eternidade – em um momento, falou e trouxe este Universo à existência, a partir do nada. E, como tal, tudo e todos são completamente dependentes dele e responsáveis a ele.
A doutrina da criação, juntamente com a providência, deve ser vista como o resultado e a execução do plano e do decreto eterno de Deus. A Escritura mostra com clareza que o plano de Deus é o seu plano eterno pelo qual, antes da criação do mundo, ele preordenou fazer acontecer todas as coisas que chegam a acontecer (Sl 139.16; Is 14.24-27; 37.26; 46.10-11; At 2.23; 4.27-28; 17.26; Rm 8.28-29; 9.1-33; Gl 4.4-5; Ef 1.4, 11-12; 2.10). A criação é a realização desse plano eterno no que diz respeito à origem do Universo e de tudo que existe, incluindo os seres angelicais e humanos. A providência, por outro lado, é a realização do eterno plano de Deus, no tempo, em relação ao mundo que ele criou, em termos de sua preservação e governo de todas as coisas para cumprirem os propósitos a que foram designadas, para a sua própria glória (Sl 103.19; 136.25; 145.15; Dn 4.34-35; At 17.28; Rm 11.36; Ef 1.11; Cl 1.17; Hb 1.3). Deus, ao identificar-se a si mesmo como o Deus soberano de criação e providência, deixa bastante claro que somente ele é Deus e que nenhum outro é Deus, que ele não compartilhará sua glória com nenhuma coisa criada e que merece toda a nossa adoração, louvor e obediência (Is 40-48; Jr 10.1-16; Jo 17.3; 1 Tm 1.17).
Além disso, quando afirmamos que Deus é o Criador, estamos enfatizando, pelo menos, três verdades. Primeira, estamos ressaltando o fato de que Deus criou o Universo a partir do nada (creatio ex nihilo). As Escrituras começam com a afirmação de que, “no princípio, criou Deus os céus e a terra” (Gn 1.1). Antes de o Universo ser criado, nada existia, exceto o Deus trino. Entretanto, em um momento, o Deus eterno falou e trouxe este Universo de espaço e tempo à existência, “a partir do nada”, ou seja, sem o uso de quaisquer materiais previamente existentes. É por causa deste fato que a Escritura e a teologia cristã afirmam que a matéria não é eterna, mas apenas uma realidade criada. Em outras palavras, somente Deus é o Deus auto existente, e tudo mais é dependente dele. Segunda, estamos afirmando que Deus criou o Universo espontaneamente.
A Escritura não diz, em nenhuma de suas passagens, que Deus teve necessidade de criar todas as coisas motivado por algum tipo de necessidade que havia fora ou dentro dele mesmo. Em vez disso, ele, como o Deus trino, que é auto existente e autossuficiente, decidiu espontaneamente criar todas as coisas. Neste sentido importante, Deus não teve de criar o Universo; pelo contrário, devido à sua soberana e livre escolha e para seu próprio prazer, Deus se propôs a criar. Essa é a razão por que a Escritura afirma que Deus não precisa do mundo, e sim que o mundo e tudo que há nele são total e completamente dependentes de Deus. Terceira, dizer que Deus é o Criador significa que a criação é um ato do Deus trino. A criação é não somente a obra do Pai (Gn 1.1; Sl 19.1-2; 33.6, 9; Is 40.28; At 17.24-25; Ap 4.11), ela é também a obra do Filho (Jo 1.1-3; 1 Cor8.6: Cl 1.15-17; Hb 1.2) e a atividade do Espírito Santo (Gn 1.2; Jó 33.4; Sl 104.30). E, como um ato do Deus trino, a razão para a existência do Universo é, em última análise, a glória de Deus.
Assim como é importante afirmar o que queremos dizer positivamente com a doutrina da criação, também é necessário enfatizar o que não queremos dizer. A definição bíblica da criação é contrária tanto às opiniões antigas quanto às contemporâneas sobre as origens. Em específico, a Bíblia rejeita os seguintes pontos de vista falsos referentes à origem do Universo e dos seres humanos.
- Primeiramente, a Bíblia rejeita todos os pontos de vista naturalistas e evolucionistas quanto às origens. Em seu âmago, o naturalismo tenta ver as origens apenas à luz de processos naturalistas que envolvem a evolução da matéria, por acaso, durante um período de tempo. É por meio desta ideia que as pessoas tentam explicar toda a complexidade e ordem do Universo, incluindo os seres humanos. Neste ponto de vista, a matéria é entendida como eterna ou, pelo menos, geradora de si mesma, independente da soberana vontade de Deus. A Escritura rejeita francamente esta ideia;
- Em segundo, a Escritura rejeita todos os pontos de vista panteístas sobre a criação. Neste ponto de vista, não há uma distinção crucial entre o Criador e a criação; Deus e o mundo são, essencialmente, um. Além disso, o mundo é frequentemente explicado como uma emanação ou efusão necessária de toda a realidade – o Único. A Escritura deixa claro que o Deus eterno e transcendente não será reduzido à sua ordem criada e que a distinção entre a criatura e o Criador, negada pelo panteísmo, é fundamental para um ponto de vista cristão sobre o mundo;
- Em terceiro, a Escritura rejeita todos os entendimentos dualistas quanto ao Universo. No dualismo, há duas substâncias ou princípios distintos e coeternos dos quais tudo mais é derivado e que são frequentemente vistos como duas forças antagonistas – o bem e o mal. Outra vez, a Escritura mostra com clareza que somente Deus é Deus, que ele não tem rivais e não compartilhará a sua glória com ninguém.
O que cada um destes três pontos de vista falsos têm em comum é o fato de que tentam negar o glorioso Deus da criação. O apóstolo Paulo refletiu sobre esta situação infeliz em Romanos 1.8-32, argumentando que a existência do Deus da criação é manifestada claramente para todas as pessoas, mas, devido à rebeldia do coração humano, a verdade de Deus tem sido voluntariamente suprimida e distorcida por nós. Em vez de glorificarmos a Deus, que nos criou, e dar-lhe graças, temos mudado a glória de Deus pelas realidades criadas. O resultado final é, correta e tristemente, a ira justa, santa e perfeita de Deus que nos sobrevém devido ao nosso pecado e depravação. Nesta situação, a única esperança para nós é a soberania de Deus em graça e redenção.
A Importância Prática e Teológica da Doutrina da Criação
Qual é a importância prática e teológica da doutrina da criação? Há muitos pontos que poderiam ser desenvolvidos, mas pelo menos três reflexões são apropriadas.
Primeira, a doutrina da criação identifica para nós o nosso Deus glorioso. A criação nos lembra que o Deus que criou não é uma deidade pequena e insignificante. Não, ele é o Senhor sobre tudo, a fonte de tudo que existe e aquele que é o único soberano. Além disso, a criação nos lembra que ele não é uma deidade distante. Antes, Deus é o “Senhor da aliança”, aquele que é o Deus vivo e ativo, envolvido intimamente em e com a sua criação, sustentando, mantendo e governando constantemente a sua criação e entrando num relacionamento de aliança com seu povo. O nosso Deus é verdadeiramente grande, cheio de majestade, glória, sabedoria, força e poder, devido ao fato de que ele é o Deus criador.
Segunda, a doutrina da criação nos diz algo sobre nós mesmos, como criaturas de Deus. É precisamente porque somos criaturas de Deus, feitos à sua imagem, que os seres humanos desfrutam de um papel singular na criação. Ironicamente, quando as pessoas tentam viver à parte de Deus e negam seu Criador tanto em sua vida como em seu pensamento, elas descobrem que não podem entender a si mesmas corretamente. Assim, acabam vendo a si mesmas como menos do que são, ou seja, como animais ou máquinas humanas, que têm pouca ou nenhuma importância e valor. Mas o ponto de vista cristão sobre os seres humanos, vinculado à doutrina da criação, nos diz que Deus nos fez com dignidade e valor e que isto, em última análise, é a única base para um entendimento apropriado dos seres humanos. Além disso, o fato de que fomos criados por Deus também serve como fundamento para toda a ética, para a responsabilidade humana e para um entendimento correto de nosso lugar, em sujeição a Deus, na sua criação. Mas, outra vez, devido à nossa rejeição intencional de nosso Senhor e Criador, temos nos posicionado contra ele e, assim, somos necessitados de redenção, uma redenção que somente Deus pode realizar e consumar soberanamente.
Terceira, a doutrina da criação nos diz algo sobre o nosso mundo em pelo menos duas áreas importantes. A primeira área está relacionada a como devemos ver este mundo em termos de valores. Visto que Deus criou este mundo, é importante enfatizar que ele tem valor. Isto é evidenciado em Gênesis 1 pelo julgamento de valor “era bom” (4, 10, 12, 18, 21, 25), da parte de Deus, e pela sua avaliação conclusiva “era muito bom” (31). Neste contexto, “bom” indica que o mundo era não somente o que Deus planejara e tencionara, mas também que ele tinha grande valor. Deus falou “Sim!” para o que havia criado. Uma implicação importante disto para a teologia cristã é não elevarmos, em nosso pensamento e em nossa prática, o “espiritual” acima do “físico”. Isto foi um problema no passado e produziu vários entendimentos errados na igreja. Ao criar este mundo, Deus valoriza tanto a realidade física como a espiritual. Infelizmente, como resultado da Queda, ambas estão agora corrompidas. Mas, na redenção, Deus fez uma obra em Cristo que salva não somente a nossa alma, mas também o nosso corpo. Por isso, há nas Escrituras a ênfase sobre a ressurreição de nosso corpo, para vivermos em novos céus e uma nova terra, na presença de Deus, para sempre (1 Cor 15; Ap 21-22).
A segunda área está relacionada ao entendimento cristão da relação e envolvimento contínuo de Deus com seu Universo e das implicações disto para um ponto de vista cristão quanto à ciência. É claro que muito poderia ser dito neste assunto. Entretanto, basta dizer que, uma vez que a ordem criada é o resultado da decisão espontânea do Senhor soberano e pessoal, ela é também planejada, ordenada, estruturada e governada por leis. Mas, em sua estrutura, a criação nunca deve ser vista meramente em termos mecânicos. A teologia cristã rejeita qualquer noção ou de um Universo “aberto” ou de um Universo “fechado”. Um Universo “aberto” é o ponto de vista representado pelo animismo. O animismo não entende o Universo como que estando sob o controle soberano de Deus, mas, em vez disso, ele é controlado por forças e espíritos caprichosos. Um ponto de vista de Universo “fechado” é aquele representado pela ciência moderna. Neste ponto de vista, o Universo é concebido como que estando unicamente sob o controle de leis mecânicas, independentes da vontade e do plano de Deus; e, por isso, este ponto de vista concebe aquilo que é miraculoso como impossível.
As Escrituras, porém, rejeitam esses dois pontos de vista. Em vez disso, as Escrituras nos apresentam um Universo “controlado”. O ponto de vista bíblico vê este mundo como ordeiro e previsível devido à sua relação com o Deus de criação e providencia. Mas também afirma que este mundo não é independente de Deus e que, se Deus quiser, pode agir neste mundo e realizar seus planos e propósitos de maneiras miraculosas e extraordinárias. Por conseguinte, o ponto de vista cristão sobre o mundo, unido à nossa doutrina de criação, nos permite ver o mundo em um padrão ordeiro e previsível, possibilitando assim a ciência. Enquanto o problema de milagres não é realmente um problema devido ao fato de que o Deus de criação é também o Deus de providência que sustenta o mundo continuamente e age nele.
Com base nesta breve consideração, não é difícil perceber que a doutrina da criação e a afirmação de que Deus é o Criador têm importância crucial para a teologia cristã. Como já disse, sem o Deus de criação e providência não há cristianismo como a Bíblia o descreve. Todas as outras doutrinas, incluindo a doutrina da salvação, estão arraigadas e alicerçadas no fato de que Deus é o criador soberano e Senhor de seu Universo. Na verdade, a doutrina da criação é também fundamental à teologia cristã em outro sentido – ela é o começo da história que leva à redenção. Ao insistir no fato de que a criação original de Deus era boa, a Bíblia prepara o cenário para o que sai errado – o pecado, a morte, a destruição – e para o desenvolvimento da linha histórica da Escritura que culmina na vinda de um Redentor para corrigir as coisas. Em última análise, todo o drama da história de redenção prenuncia a restauração – a transformação numa glória ainda maior (Rm 8.1-27) – daquela bondade do Universo que se tornou corrompido e chega por fim ao alvorecer de um novo céu e uma nova terra (Ap 21-22), o lar da justiça (2 Pe 3.13).
Stephen J. Wellum