Há dois grandes aspectos do Evangelho neste capítulo: primeiro, aquele para o qual somos chamados e para o qual fomos feitos aptos; segundo, o testemunho que Deus deu do pecado em nós e da obra de Cristo que resolveu o problema. É bom apreender o que é o chamado de Deus, a fim de saber o que é necessário para participar dele. Não há reconciliação da coisa velha, tal como ela é, mas existe uma completa reconciliação no novo homem. O julgamento do homem é pronunciado: “Agora é o juízo deste mundo” (Jo 12:31). As tratativas de Deus com o homem na carne terminaram, a carne foi deixada de lado para sempre. No novo estado de coisas introduzido por Cristo em ressurreição “todas as coisas são de Deus” (2 Cor 5:18).
Quanto ao corpo, ainda não chegamos a isso, e por esta razão “desejamos antes deixar este corpo, para habitar com o Senhor” (2 Cor 5:8). No momento em que nos apossamos de nosso chamado “para o seu reino e glória” (1 Ts 2:12) somos introduzidos na presença de Deus. Ele também está nos capacitando a apreender a glória. Repare que uma obra inteiramente de Deus deve ser feita para que o homem possa entrar na glória. Você poderia se colocar a si mesmo na glória de Cristo? “Quem para isto mesmo nos preparou foi Deus” (2 Cor 5:5). A presença de Deus revelada à alma dá uma verdadeira e completa convicção de pecado. A pessoa já não se importa com o que o homem pensa, pois sabe o que Deus pensa.
O pecado é uma coisa vergonhosa, mas a presença de Deus produz pensamentos que estão além da vergonha. No momento em que a alma está diante de Deus, ela odeia e julga o pecado, não consegue pensar em escondê-lo, prefere estar na verdade diante de Deus – “há verdade no íntimo” (Sl 51:6). A vergonha do homem o leva à ocultação do pecado. A verdadeira luz de Deus manifesta tudo, mas quando o coração está alinhado com Deus ele fica do lado de Deus contra o pecado, e assim há perdão. Tudo fica bem quando olhamos para o que somos na presença de Deus. Somos chamados “para o seu reino e glória” (1 Ts 2:12) para sermos conformes à imagem de seu Filho. Temos uma vida, e a glória divina pertence a essa vida. É Deus quem justifica. Ele que está bem eu me enxergar assim, é o próprio Deus quem declara. É isso que eu quero, essa justificação completa e abençoada que se conecta com a glória – “…aos que justificou a estes também glorificou” (Rm 8:30). “Aguardamos a esperança da justiça” (Gl 5:5).
É assim que Deus nos chama em Cristo. Aquilo que é anunciado no Evangelho é Cristo tal qual o homem é na glória divina. É o “Evangelho… da glória de nosso Senhor Jesus Cristo” (2 Ts 2:14). A obra foi consumada para colocar o homem na glória de Deus. Essa coisa nova é o homem, o centro de toda a glória de Deus. Evidentemente isso será realizado oportunamente em Cristo, “de tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra” (Ef 1:10) – ou como é apresentado em Apocalipse, “a glória de Deus a tem iluminado, e o Cordeiro é a sua lâmpada” (Ap 21:23). É para essa glória de Cristo que somos chamados; ela brilha na alma.
Você está apto para essa glória? Se não, para que você está apto? Você não pode ficar aqui na terra para sempre. Para onde vai? Se não estiver na luz, deve estar na escuridão, que é o oposto dela. Não há meio-termo. Temos isso na parábola do filho do rei – Jesus havia falado antes em buscar fruto, agora ele está falando da graça que não procura nada, mas oferece uma festa pronta. Aqueles que são convidados são os que estavam nas estradas e valados, e não importa o que eles eram antes, eles devem estar vestidos com a roupa nupcial. O pródigo deve ter o melhor manto para entrar na casa, ele deve estar adequado à casa. Você, meu leitor, entendeu isso? Vemos o que é esse chamado, mas será que você pode se perguntar: “Tenho eu o que é adequado à glória para a qual estou indo?”.
Talvez você esteja entendendo que o Senhor está guiando você neste sentido, mas se não tiver isto, para quê está apto? Ou você está do lado de fora ou do lado de dentro e vestido com a veste nupcial. “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (2 Cor 5:19). Acaso Jesus não se adequou a todos para conquistar seus corações? Ele veio trazendo o convite para os homens irem a Deus, mas não, eles não o queriam. Em troca de seu amor eles o odiaram, dando um terrível testemunho da completa ruína do homem. O ser humano está morto, apesar de estar vivo para si e para seus semelhantes, mas não há movimento de seu coração em direção a Deus. “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam” (Jo 1:11). No entanto, em Cristo você encontra perfeito amor, não reprovação. Paulo viu a terribilidade do julgamento e começou a persuadir os homens. O amor de Cristo ainda está pressionando os homens à verdade de que estamos mortos, de que a conexão entre o homem e Deus está rompida e não pode ser restabelecida.
Será que a cruz anuncia que Cristo colocou o mundo em ordem? “Um morreu por todos”, isso é amor indescritível, “logo todos morreram” (2 Cor 5:14). Será que a sua alma já foi trazida à convicção de que “em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum”? Poderia você afirmar que se estivesse lá não teria condenado Cristo à morte? Poderia você dizer que ele não morreu por você, para lhe ajudar e purificar? Se não, então você deve dizer: “Estou morto, perdido, não tenho ligação no coração com Deus!”.
A velha criação é uma coisa julgada e condenada; você, assim como todos filhos de Adão, pertence a ela. A questão é se você foi tirado dela. O homem emancipou-se de Deus; o que a infidelidade faz é justificar e proclamar este fato, estabelecer e cultivar a vontade do homem. Caim começou este mundo sem Deus. Ele foi e construiu uma cidade e a chamou pelo nome de seu filho. Eles tinham instrumentos de música e artífices ali – tudo para tornar o mundo um lugar agradável sem Deus. E é isso que o homem está fazendo até hoje, e se justifica dizendo que faz isso com as faculdades que Deus lhe deu, e é verdade. Mas qual é o estado moral do coração do homem? Acaso ele não está longe de Deus? Jesus “veio buscar e salvar o que se havia perdido” (Lc 19:10).
Não estou perguntando se você se reconhece como perverso, mas se você se vê como perdido, morto! Por natureza rejeitamos a Cristo, todos os nossos pensamentos se agrupam em torno de nós mesmos. Ao invés de preferirmos a Cristo, preferimos o prazer, tudo o que há no mundo e nossa própria vontade. Esta é a condição de todos, naturalmente, e esta era a condição de cada um de nós, exceto daquele que não estava morto, daquele que era aceitável a Deus, o único que poderia ser, e que foi feito pecado por nós: Jesus. Ele ficou em nosso lugar. Ele, o santo abençoado, foi feito pecado. O poder vivificante de Deus nos mostra o pecado, mas vemos a coisa toda resolvida na cruz. Enxergo o que é a carne – ela crucificou a Cristo –, mas não estou mais nela, pertenço à nova criação. Estou em Cristo, que é a minha justiça, e me dá o direito de acesso. Encontramos o chamado para o reino e a glória de Deus. Vemos o véu rasgado, e Cristo do lado de dentro como Homem, e ao chegar lá, ele eliminou tudo o que éramos na carne. Temos que lidar com a carne diariamente como quem lida com um inimigo, mas quanto à nossa posição diante de Deus ela está resolvida. Em Cristo já entramos nesse novo lugar – “agora contudo vos reconciliou” (Cl 1:21); não existe mais nada entre mim e Deus. Somos introduzidos na glória de Deus. É certo que ainda aguardamos por isso em nossos corpos, e ele nos deu o penhor do Espírito.
Temos a reconciliação, mas reconciliação com quê? Com Deus. Cristo fez isso em conformidade com o que Deus é, e devemos julgar o pecado de acordo com o que Deus é. Quando obtemos o conhecimento disso? Agora, pela fé. Mas é algo que não podemos receber até que julguemos que trevas são trevas. Deus diz: “Onde está meu filho?” O mundo deve se declarar culpado de sua morte, pois não viu beleza em Cristo e agora prefere prazer, roupas, dinheiro, ciência, qualquer coisa ao invés de Cristo. Eu posso ainda ter que aprender muito, passar por muitos conflitos, mas se eu pertenço a Cristo estou reconciliado com Deus. “O amor de Cristo nos constrange” (2 Cor 5:14) – este é o fundamento de todo o nosso caminhar.
Você pode ter vivido para si mesmo, ainda que muito decentemente, sem praticar o que o mundo chama de grandes pecados, mas há muitos inimigos decentes de Deus, e será que sua reputação valerá alguma coisa no dia do juízo? Um cristão pode não viver para si mesmo em propósito, mas será que você não estaria vivendo para si mesmo na prática? Você pode dizer que está ocupado com coisas inocentes, mas nada pode ser inocente longe de Deus. Você já julgou a si mesmo como pertencente a um mundo que rejeitou a Cristo? Temos de detalhar isso: a carne está continuamente se mostrando de formas inesperadas, todavia Deus condenou o pecado na carne. Ele perdoa pecados, mas a posição [o pecado] ele condenou, não perdoou. Você o conheceu, ele se fez pecado e fez de você justiça de Deus nele. Será que você pode afirmar: “Estou reconciliado com Deus, fui levado de volta para ele”?. Será que pode dizer. “Estou feliz por saber tudo sobre o meu pecado, ‘sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me, e conhece os meus pensamentos'”? (Sl 139:23).
John Nelson Darby – Traduzido de “God Was In Christ – 2 Corinthians 5”.