“Desperta, tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos, e Cristo te alumiará” (Efésios 5.14) – DISCORRENDO sobre estas palavras, pretendo, com o auxílio de Deus: 1 – Descrever os adormecidos, a quem as palavras do texto se dirigem; 2 – Corroborar a exortação: “Desperta, tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos“; e 3º – Explanar a promessa feita aos que despertam e levantam-se: “Cristo te alumiará“.
Descrever os adormecidos, a quem as palavras do texto se dirigem
Primeiramente, tratemos dos adormecidos aí citados. De sono se entende ser o estado natural do homem, mergulhado naquela profunda inconsciência de alma; na qual o pecado de Adão infundiu tudo quanto havia em suas entranhas: a indolência, a preguiça, a incompreensão, a insensibilidade no tocante à sua condição real, estado este que é próprio de todo homem que vem ao mundo, perdurando até que a voz de Deus o desperte.
“Aqueles que dormem, dormem de noite”. O estado natural do homem é de profunda obscuridade, lembrando a condição segundo a qual “as trevas cobrem a terra e noite densa envolve o povo”. O pobre pecador ainda não despertado, qualquer que seja a extensão dos conhecimentos que possua acerca de outras coisas, não se conhece a si mesmo: neste sentido “ele nada sabe do que devia saber”. Não sabe que é um espírito decaído, cuja necessidade primacial, no mundo presente, é reerguer-se de sua queda e recuperar a imagem de Deus, segundo a qual fora criado. Não percebe a falta da única coisa necessária, isto é, a mudança interior de alcance universal, aquele “nascer de cima” simbolizado pelo batismo, que é o início da renovação total; aquela santificação de espírito, alma e corpo, “sem a qual ninguém virá a Deus”.
Carregado de todas as enfermidades, julga-se, todavia, em perfeita saúde. Encarcerado em prisões de aço e de miséria, protesta estar em liberdade. Ele diz: “Paz, Paz!”, enquanto o diabo, como “um forte homem armado”, está de plena posse de sua alma. Dorme placidamente, descansa, enquanto o inferno se move sob seus pés para lhe vir ao encontro; enquanto o abismo, de onde ninguém jamais regressa, abre suas fauces para o tragar. Arde o fogo em torno de si, e ele não o pressente; queima-o, e apesar de tudo ele nada percebe.
Por adormecido entendemos, pois, (e prouvera a Deus que todos nós o compreendêssemos do mesmo modo!) o pecador satisfeito com seus pecados; contente com o permanecer em seu estado de queda, com o viver e morrer sem nunca refletir a imagem de Deus; o que ignora sua enfermidade e o remédio único que o pode curar; o que nunca foi advertido ou que nunca atentou para a voz de Deus que o aconselha a “fugir da ira vindoura”; o que jamais notou que estava exposto ao perigo do fogo do inferno ou que jamais clamou do mais profundo de sua alma: “Que devo eu fazer para me salvar”?
Se o que dorme não for exteriormente viciado, seu sono será, habitualmente, o mais profundo de todos: quer seja ele do espírito de Laudicéia, “nem frio, nem quente”, mas um pacífico, racional, inofensivo, prestimoso adepto da religião de seus pais; quer seja zeloso e ortodoxo e, “conforme a mais rigorosa seita de nossa religião”, viva como “um fariseu”, isto é, de acordo com o perfil farisaico da narrativa néotestamentária; quer seja como o que a si mesmo se justifica, trabalhando por estabelecer sua própria justiça como fundamento de sua aceitação por parte de Deus, – profundo lhe decorrerá o sono!Assim é aquele que, “tendo a forma da piedade, nega o poder dela”; e ainda provavelmente a ultraja, onde quer que ela se manifeste, qualificando-a como simples extravagância e pura ilusão. Entretanto, o infeliz enganador de si mesmo dá graças a Deus porque “não é como os demais homens, que são adúlteros, injustos e ladrões”: não, ele não faz mal a ninguém. “Jejua duas vezes por semana”, usa de todos os meios de graça, é assíduo à igreja e aos sacramentos e “paga o dizimo de tudo quanto tem”; faz todo o bem que está em suas mãos fazer; “no tocante à justiça da lei”, ele é “irrepreensível”; nada lhe falta de piedade, mas de poder; nada lhe falta de religião, mas de espírito; nada lhe falta de cristianismo, mas de verdade e vida.
Não sabe, entretanto, o cristão desse tipo, que, por mais altamente estimado que possa ser em meio dos homens, é, todavia, abominação à vista de Deus e herdeiro de todos os ais com que o Filho de Deus denunciou ontem, verbera hoje e estigmatizará para sempre os “escribas e fariseus hipócritas?” É ele que “limpa o exterior do copo e do prato”, deixando seu interior cheio de roda imundície. “Uma enfermidade horrível pesa ainda sobre ele, de sorte que seu interior é deplorável”. Nosso Senhor com propriedade o compara a um “sepulcro branqueado”, que “parece formoso por fora”, mas, não obstante a, boa aparência, “está cheio de ossos e de toda podridão”. Os ossos, a bem dizer, não estão secos; os nervos e as carnes recobrem-nos, e exteriormente os envolve a pele; neles não há, porém, sopro; nada do Espírito do Deus vivo. E, “se alguém não possui o Espírito de Cristo esse tal não é dele”. “Vós sois de Cristo, se é que o Espírito de Deus habita em vós”; mas, se isto não se dá, Deus sabe que estais ainda mortos.
Este é outro característico do adormecido de que fala o texto: ele habita o mundo dos mortos, embora não o saiba. Está morto para Deus, “morto em delitos e pecados”. Porque, “ter a mente carnal é estar morto”. Corno está escrito: “Por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte; assim a morte, passou a todos os homens”, não só a morte temporal, mas também a morte espiritual e eterna. “No dia em que comeres, desse Deus a Adão, tu certamente morrerás”: não corporalmente (a não ser que se leve em conta que ele então se tornou mortal), mas espiritualmente: perderás a vida de tua alma; morreras para Deus; serás separado dele, que é a vida essencial e a felicidade.
Deste modo foi primeiro dissolvida a união vital de nossa alma com Deus; de sorte que, “em meio da vida natural, estamos agora em estado de morte espiritual”. Neste estado permaneceremos até que o Segundo Adão se torne para nós em Espírito vivificante; até que ele levante o morto, morto em pecado, em prazeres, riquezas e honras. Mas, antes que qualquer alma possa viver, o pecador primeiro “ouve” (preste atenção) “a voz do Filho de Deus”: toma-se sensível a seu estado de perdição e recebe a sentença de morte. Reconhece estar “morto, conquanto viva”: morto para Deus e para todas as coisas de Deus, não tendo mais força para praticar as ações de um cristão vivo do que o corpo morto tem-na para cumprir as funções do homem vivo.
E ainda mais certo é que o morto em pecados não tem os “sentidos exercitados para discernir espiritualmente o bem e o mal”. “Tendo olhos ele não vê; tendo ouvidos, não ouve”. Não “prova e vê que o Senhor é benigno”. Ele “jamais viu a Deus”, nem “ouviu sua voz”, nem tocou o Verbo da vida”. Em vão ressoa em torno o nome de Jesus, “como unguento derramado e todo seu vestuário três calando mirra, aloés e cássia”: a alma que dorme o sono da morte não tem percepção de nenhuma coisa dessa espécie. Seu coração “perdeu o sentimento” e nada compreende desses fatos.
Desprovido, assim, de senso espiritual, não retendo o conhecimento espiritual, o homem natural não recebe as coisas do Espírito de Deus; e tão longe está de as aceitar, que aquilo que se discerne espiritualmente lhe soa como loucura. Não contente de ser profundamente ignorante das coisas espirituais, ele nega mesmo a existência delas. A própria sensibilidade espiritual lhe parece ser a loucura das loucuras. “Como – pergunta ele – podem ser essas coisas? Como pode algum homem saber que está vivo para Deus?” Do mesmo modo que sabes que teu corpo está agora vivo. A fé é a vida da alma; se tu tens esta vida palpitante em ti, não tens necessidade de sinais para evidenciá-la a ti mesmo, pois que a ελεγχος πνεύματος, aquela divina consciência, testifica de Deus, o que é mais do que dez milhares de testemunhos humanos – e de mais valia que todos eles.
Se o Espírito não testifica, no presente, com teu espírito, seres filho de Deus, que Ele te convença, a ti, pobre pecador ainda não despertado, pela demonstração de seu poder, de que tu és filho do diabo! Oh! Se produzissem agora “um rumor e um estremecimento”, e “os ossos se reunissem, achegando-se cada osso a seu osso!” Então, “Vinde dos quatro ventos, ó Sopro! E soprai estes despojos para que revivam!” E não endureçais vossos corações, resistindo ao Santo Espírito, que agora, vem convencer-vos de pecado, “porque não credes no nome do Unigênito Filho de Deus”!
Corroborar a exortação – “Desperta, tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos”
Assim, “desperta, tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos”. Deus agora te chama pela minha boca e ordena que conheças por ti mesmo, tu, espírito decaído, teu verdadeiro estado e a coisa única que te importa sobre a terra. “Que esperas tu, ó adormecido? Levanta-te! Invoca a teu Deus, para que teu Deus atente para ti e não pereças”. Uma tempestade brava se forma por cima de ti – e tu estás assentado nas profundezas da perdição, no abismo dos juízos de Deus! Se queres escapar a esses perigos, arranca-te do meio deles. “Julga-te a ti mesmo e não serás julgado pelo Senhor”.
Desperta, desperta! Levanta-te neste momento, para que não aconteça teres de “beber, pela mão do Senhor, a taça de seu furor”. Move-te ao encontro do Senhor, para que o Senhor, tua justiça, te possa salvar! “Levanta-te do pó”. Enfim, que o terremoto da tempestade de Deus te abale. Desperta, e clama com o tremor do carcereiro: “Que devo fazer para ser salvo?” E não descanses nunca até creres no Senhor Jesus com uma fé que é dom da parte dele, pela operação do Espírito.
Se a qualquer de vós, mais do que a outro, falo, é a ti, que pensas nada ter com esta exortação, que particularmente me dirijo. “Tenho para ti uma mensagem de Deus”. Em seu nome eu te conjuro a “fugires da ira vindoura”. Vê, alma ímpia, tua imagem no condenado Pedro, assentado na masmorra escura, entre soldados, ligado com duas cadeias, sentinelas postadas em frente à porta, guardando a prisão. A noite vai muito alta, a manhã se aproxima, quando serás levado à execução. E, em tais circunstâncias mortais, tu dormes, dormes profundamente nos braços do diabo, à borda do abismo, nas fauces da perdição eterna!Que o anjo do Senhor desça sobre ti e a luz resplandeça em tua prisão! E possas tu sentir a caricia da mão poderosa erguendo-te a segredar: “Levanta-te depressa, cinge-te, calça tuas sandálias, toma teus vestidos e segue-me”.
Desperta, espírito eterno, de teu sonho de felicidade terrena! Não te criou Deus para si mesmo? Logo, não podes encontrar repouso até que nele descanses. Volta, viandante! Voa para tua arca! Este não é o teu lar. Não penses em construir tabernáculos aqui. Não és senão um peregrino sobre a terra, a criatura de um dia, em trânsito para um destino imutável. Apressa-te! A eternidade está próxima. A eternidade depende deste momento – uma eternidade feliz ou uma eternidade de miséria.
Em que estado se acha tua alma? Se Deus, enquanto estou falando, ta exigisse, estarias pronto a te encontrares com a morte e com o juízo? Podes permanecer à sua vista, que é a de “olhos demasiadamente puros para verem a iniquidade?” Estás pronto “a seres participante da herança dos santos em luz?” Combateste “o bom combate e guardaste a fé”? Tomaste posse da única cosa que é necessária? Recobraste a imagem de Deus, em justiça e verdadeira santidade? Despojaste-te do homem velho, para te revestires do novo homem? Estás unido a Cristo?
Tens óleo em tua lâmpada, graça no coração? Amas “ao senhor teu Deus de todo teu coração, e de toda tua mente, e de toda tua alma, e de todas as tuas forças?” Há em ti aquela mente que havia também em Cristo Jesus? És na verdade cristão, isto é, uma nova criatura? O que era velho passou e agora se fizeram novas todas as coisas?
“És participante da natureza divina?” Não sabes que “Cristo está em ti, a não ser que sejas reprovado?” Não sabes que Deus “habita em ti e tu em Deus, pelo Espírito que ele te concedeu”? Não sabes que “teu corpo é templo do Espírito Santo, que tu tens mediante comunicação da parte de Deus?” Tens o testemunho em ti mesmo – penhor de tua herança? “Recebeste o Espírito Santo” ou te surpreendes com a pergunta, nem sabendo “sequer que haja um Espírito Santo”?
Se te ofendes, estejas descansado: tu nem és cristão, nem desejas sê-lo. Até mesmo tuas orações se volvem em pecado, e tens solenemente zombado de Deus neste dia, suplicando a inspiração de seu Espírito Santo, quando nem crês que haja uma tal coisa a ser comunicada!
Sim, firmado na autoridade da palavra de Deus e de nossa Igreja, repito a pergunta: “Recebeste o Espírito Santo?” Se não o recebeste, ainda não és cristão, porque – cristão é o homem “ungido com o Espírito Santo e com poder”. Não te fizeste ainda participante da religião pura e imaculada. Sabes que religião é esta? É a participação da natureza divina; a vida de Deus na alma humana; Cristo formado no coração; “Cristo em ti, a esperança da glória”; felicidade e santidade; o céu começando na terra; “o Reino de Deus em ti”, consistindo, não em comida, nem em bebida, nem em coisas materiais, mas em “justiça, e paz, e gozo no Espírito Santo”; um reino eterno estabelecido em tua alma; a “paz de Deus, que excede a toda compreensão”; um “gozo indizível e cheio de glória”.
Sabes que “em Jesus Cristo, nem a circuncisão vale corsa alguma, mas a fé que opera por amor”, mas o ser uma nova criatura? Sentes necessidade de mudança interior, de nascimento espiritual, de vida que tome o lugar da morte, – da santidade? Estás profundamente convencido de que sem esta ninguém verá a Deus? Estás trabalhando por alcançá-la, “usando de toda diligência para fazer certa tua vocação e eleição”, “operando tua salvação com temor e tremor”, e “agonizando por entrar pela porta estreita?” Estás ansioso acerca de tua alma? E podes dizer ao Escrutador de corações: “Tu, ó Deus, és o que eu esperava desde muito tempo! Senhor tu sabes todas as coisas! Tu sabes que eu quero amar-te”!Esperas ser salvo; mas que razões tens a dar da esperança que há em ti? Será porque não causaste prejuízo, ou porque fizeste grande cópia do bem, ou porque não és como os demais homens, mas sábio, ou erudito, ou honesto e moralmente bom, estimado do povo e de reputação ilibada? Ai! A soma de tudo isso jamais te levará a Deus. A sua vista isso é tão vão como a própria vaidade. Não conheces a Jesus Cristo, a quem Deus enviou? Não te ensinou ele que “pela graça sois salvos pela fé; e isto não vem de vós: é dom de Deus; não vem das obras, para que nenhum homem se glorie?” Como fundamento de toda tua esperança, não recebeste a palavra fiel, segundo a qual “Jesus Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores?” Não compreendeste o que significa: “Não vim chamar os justos, mas os pecadores ao arrependimento; não fui enviado senão à procura da ovelha perdida?” Estava tu (o que ouve, entenda), perdido, morto, condenado em outro tempo? Não reconheceste teu desamparo, não sentiste tuas misérias? És “pobre de espírito”, clamando por Deus e recusando todo conforto? És o pródigo que “cai em si mesmo”, ficando bem contente de ser daí por diante considerado “fora de si” por aqueles que ainda se alimentam das bolotas que ele deixou? Desejas viver piamente em Cristo Jesus, estando por esta causa sofrendo perseguição? Dizem os homens falsamente toda sorte de mal contra ti, por causa do Filho do Homem?
Que, através de todo este interrogatório, ouças a voz que desperta o morto e sinta o martelar da Palavra que despedaça as rochas! “Se ouvirdes sua voz neste dia, que se chama hoje, não endureçais os vossos corações”. Agora, “desperta, tu que dormes” na inconsciência da morte espiritual, para que não durmas no tormento da morte eterna! Reconhece teu estado de perdição e “levanta-te da morte”. Deixa teus velhos companheiros no pecado e na morte. Segue a Jesus, e “deixa que os mortos enterrem os seus mortos”. “Salva-te desta geração perversa”. “Sai do rio deles e separa-te, e não toques as coisas impuras, e o Senhor te recebera”. “Cristo te alumiará”.
Explanar a promessa feita aos que despertam e levantam-se: “Cristo te alumiará”
Chego a ponto de explana, finalmente, esta promessa. E quão encorajadora é a consideração de que, quem quer que sejas que obedeças à chamada de Deus, não terás buscado em vão a sua face! Se tu agora “despertas e te levantas da morte”, ele correrá a “te alumiar”. “O Senhor te dará graça e glória”: a luz da sua graça aqui e a luz da sua glória quando receberes a coroa imarcescível. “Tua luz romperá como a aurora e tuas trevas serão como o meio-dia”. “Deus, que faz a luz brilhar em meio das trevas, luzirá em teu coração, para dar a conhecer a glória de Deus na face de Jesus Cristo”. “Neles o temor do Senhor fará levantar-se o Sol da Justiça, trazendo a salvação em suas asas”. Naquele dia a ti se te dirá: “Levanta-te, brilha; porque tua luz vem e a glória do Senhor se levanta sobre ti”. Porque Cristo revelar-se-á em ti: e ele é a verdadeira Luz.
Deus, que é luz, dar-se-á a si mesmo a todo pecador que desperte e por ele suspire: serás então um templo do Deus vivo; Cristo “habitará em teu coração pela fé”. “Arraigado e fundado no amor, estarás apto a compreender, com todos os santos, qual seja o comprimento, e largura, e profundidade: e altura do amor de Cristo, amor que excede a toda compreensão”.
Vede vossa vocação, irmãos. Somos chamados a ser “habitação de Deus mediante seu Espírito”; e, pelo seu Espírito habitamos em nós, tornamo-nos capazes de ser santos desde agora e participantes da herança dos santos em luz. Como são majestosamente vastas as promessas feitas a nós, e já no presente em nós cumpridas, em nós, os que cremos! Porque pela fé “recebemos, não o espírito do mundo, mas o Espírito de Deus” – a súmula de todas as promessas – “para que possais conhecer as coisas que vos são dadas livremente por Deus”.
O Espírito de Cristo é o grande dom que, em várias ocasiões e de diversas maneiras, Deus prometeu ao homem e efetivamente o tem comunicado, a partir do tempo da glorificação do mesmo Cristo. Essas promessas, feitas antes aos pais, Deus as cumpre deste modo: “Porei meu Espírito dentro de vós e vos farei andar em meus estatutos” (Ez 26.27). “Derramarei água sobre o sedento e torrentes sobre o terreno árido: derramarei meu Espírito sobre tua semente e minha bênção sobre tua descendência”. (Is 44.3).Todos vós podeis ser testemunhas vivas destas coisas – da remissão dos pecados e do dom do Espírito Santo: “Se podes crer, todas as coisas são possíveis ao que crê”. “Qual dentre vós é o que teme ao Senhor, e ainda anda em trevas e não tem luz”? Pergunto-te, em nome de Jesus: “Crês que seu braço não se retraiu de todo? Crês que ele ainda é poderoso para salvar, sendo o mesmo ontem, hoje e para sempre? Crês que ele tem poder, sobre a terra, de perdoar pecados”? “Filho, tem bom ânimo; teus pecados são-te perdoados”. Deus, por amor de Cristo, te perdoou. Recebe isto, “não como palavra humana; mas, certamente, como Palavra de Deus, o que na realidade é”, e serás justificado livremente mediante a fé; serás também santificado pela fé que há em Jesus, e sobre ti será aposto o selo divino, em testemunho de que “Deus nos deu a vida eterna, e que esta vida está em seu Filho”.
Irmãos, deixai que vos fale livremente e sofrei a palavra desta exortação, embora partindo de um dos últimos na hierarquia da Igreja. Vossa consciência vos testifica, no Santo Espírito, que essas coisas são assim, se é que já provastes que o Senhor é benigno. “Esta é a vida eterna: conhecer o único e verdadeiro Deus e a Jesus Cristo, a quem ele enviou”. Este conhecimento experimental, e só este conhecimento é o verdadeiro cristianismo. Quem recebeu o Espírito Santo é cristão; quem não o recebeu não é cristão. Não é possível recebê-lo e depois disto ainda não o conhecer. “Porque naquele dia (quando ele vier, diz o Senhor), conhecereis que estou em meu Pai, e vós em mim, e eu em vós”. Este é aquele “Espírito de Verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita em vós e estará em vós” (Jo 14.17).
O mundo não pode recebê-lo, mas, ao revés, contendendo e blasfemando, absolutamente rejeita a Promessa do Pai. Mas todo espírito que o não confessa não é de Deus. Sim, “este é o espírito do Anticristo, acerca do qual tendes ouvido que virá ao mundo, e já agora está no mundo”. Quem quer que negue a inspiração do Espírito Santo, ou negue que a comunicação do Espírito de Deus seja o privilégio comum de todos os crentes, a bênção do Evangelho, o dom indizível, a promessa universal, o critério pelo qual se mede o real cristão – é o Anticristo.
De nada lhes aproveita o dizer: “Não negamos a assistência do Espírito de Deus; mas apenas essa inspiração, a recepção do Espírito Santo de maneira sensível. É somente a sensação do Espírito, o ser movido pelo Espírito ou cheio dele, que negamos ter qualquer fundamento em sólida religião”. Mas, somente com o negardes isto, negais toda a Escritura, toda a verdade, toda a promessa e o testemunho de Deus.
Nossa querida Igreja nada conhece dessa distinção diabólica, mas, ao contrário, claramente, fala do “sentir o Espírito de Cristo” ; de ser alguém “movido pelo Espírito Santo” ; e conhecer e “sentir que não há outro nome senão o de Jesus,” , pelo qual possamos receber vida e Salvação. Ela a todos nos ensina a “pedir a inspiração do Espírito Santo” ; sim, para que possamos “encher-nos do Espírito Santo” . Além disto, ensina que todo presbítero eleito dentre seus membros “recebe o Espírito Santo pela imposição das mãos”, Assim, negar qualquer dessas verdades é, com efeito, renunciar à Igreja da Inglaterra e a toda Revelação cristã.
A “Sabedoria de Deus” sempre foi tida pelos homens como “loucura”. Nada de admirável há, portanto, no fato de o grande mistério do Evangelho estar agora “oculto aos sábios e entendidos”, exatamente como o estivera nos tempos antigos; nada de admirável que o Evangelho seja hoje quase universalmente negado, ridicularizado, desacreditado como simples delírio, sendo estigmatizados com os qualificativos de loucos e fanáticos todos os que ainda ousam confessá-lo. Esta é a “decadência” que deveria vir; a apostasia geral dos homens de todas as condições e categorias, que vemos agora avassalando a terra. “Percorre abaixo e acima as ruas de Jerusalém e vê se achas um homem”, um homem que ame ao Senhor seu Deus de todo seu coração e o sirva com todas as suas forças. Como nossa terra geme, (não olhemos para trás! Debaixo do transbordamento da iniquidade! Quanta vilania de toda espécie se comete a cada passo e, o que mais é, com impunidade, por aqueles que pecam ostensivamente, gloriando-se de sua ignomínia! Quem pode contar os juramentos, as maldições, as profanações, as blasfêmias; a mentira, a calúnia, a maledicência; as quebras do domingo, a glutonaria, a bebedice, a vingança; a prostituição, os adultérios e várias impurezas; as fraudes, a injustiça, a opressão, a extorsão, que cobrem nossa terra, submergindo-a como num dilúvio?
Mesmo entre os que se têm guardado isentos das abominações mais grosseiras, quanta ira e orgulho, quanta preguiça e egoísmo, quanta moleza e efeminação, quanta luxúria e indulgência, quanta cobiça e ambição, quanta sede de louvor, quanto amor ao mundo, quanto receio do homem não lhes jazem no intimo! Ao mesmo tempo, quão pouco há de verdadeira religião! Porque, onde está o que ama a Deus ou ao próximo, na medida do mandamento que nos deu o Senhor? De um lado estão os que nem chegam a ter a forma da piedade; de outro lado estão os que possuem apenas a forma: ali são os sepulcros abertos; aqui, os sepulcros branqueados. De modo que em qualquer ato, onde quer que se forme algum ajuntamento de povo (temo que o público de nossas igrejas não faça exceção!) facilmente se pode perceber que de uma parte estão os Saduceus e de outra os Fariseus: uns dando tão escassa importância à religião, como se não houvesse “ressurreição, nem anjos, nem espírito”; e os outros dela fazendo simples forma de vida, um jogo estúpido de cerimônias externas, sem verdadeira fé, nem amor de Deus, nem gozo no Espírito Santo!
Prouvera a Deus que nos excetuássemos, nós, os que nos encontramos neste lugar! “Irmãos, o desejo de meu coração e minha oração a Deus, em vosso beneficio, é que sejais salvos” dessa onda de impiedade, e que suas vagas orgulhosas se possam deter aqui. Entretanto, está, na verdade, acontecendo isto? Deus e nossa própria consciência sabem que esta não é a realidade: Não vos tendes guardado puros. Corruptos também o somos nós e abomináveis – e poucos são os que têm melhor entendimento, poucos os que adoram a Deus em espírito e em verdade. Também somos “uma geração que não aplica o coração retamente, e cujo espírito não se firma solidamente em Deus”. Deus nos qualificou como “o sal da terra”; mas, “se o sal perder seu sabor, para nada mais presta, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens”.
E “não visitarei essas coisas, diz o Senhor? Minha alma não tomará vingança de uma nação como esta?” Sim, não sabemos quanto tempo falta para que Ele ordene à espada: “Espada, fere através desta terra!” Deus nos tem dado muito tempo para o arrependimento. Deixa-nos ele por este ano também, avisando-nos, todavia, e despertando-nos por meio do trovão. Seus juízos estão divulgados na terra – e temos toda razão de esperar o mais grave de todos, isto é, que “ele venha rapidamente a nós e remova nosso candeeiro de seu lugar, a não ser que nos arrependamos e façamos nossas primeiras obras”; a não ser que voltemos aos princípios da Reforma, à verdade e simplicidade do Evangelho. Talvez estejamos resistindo ao derradeiro esforço da graça divina para salvar-nos. Talvez estejamos quase a “encher a medida de nossas iniquidades”, rejeitando o conselho de Deus contra nós mesmos e expulsando seus mensageiros.
Ó Deus, “em meio da ira, lembra-te de tuas misericórdias!”. Sê glorificado em nossa emenda, e não em nossa perdição! Que “atendamos à correção e àquele que a inflige!” Agora que teus “juízos se acham divulgado na terra”, que os habitantes do mundo “aprendam a justiça!”.
Meus irmãos é tempo de despertarmos do sono, antes que “soe a grande trombeta do Senhor” – e nossa terra se transforme em campo de sangue. Oh! Que vejamos rapidamente as coisas que nos possam assegurar a paz, antes que elas se ocultem a nossos olhos! “Volta-te para nós, ó bom Deus, e cesse tua ira. Ó Senhor, olha dos céus, considera e visita tua vinha”; e faze-nos conhecer “o tempo de nossa visitação”. “Ajuda-nos, ó Deus de nossa salvação, para glória de teu nome!” Oh! Liberta-nos, e sê misericordioso em face de nossos pecados, por amor de teu nome, e assim não nos afastaremos de ti. Faze-nos viver, e invocaremos o teu nome. Volta-te, Senhor Deus dos Exércitos! Mostra-nos a luz de tua face – e seremos sanados. “Agora, àquele que é capaz de fazer muito mais do que tudo quanto podemos pedir ou pensar, segundo o pode que opera em nós, a Ele seja a glória na igreja por Jesus Cristo, em todos os tempos até a consumação dos séculos. Amém!”.
John Wesley (1703 – 1791) – Pregado no domingo, 4 de abril de 1742, perante a Universidade de Oxford.