Os crentes estão, por natureza, mortos em delitos e pecados, da mesma forma que qualquer outra pessoa – mas, pela fé no Filho de Deus, são feitos participantes de uma nova e infindável vida. Eles recebem essa vida d’Ele; e Ele disse: “Porque eu vivo, vós também vivereis”. Mas a vida dessa vida, se posso dizer assim, a sua manifestação e exercício, está sujeita a grandes mudanças. Uma pessoa doente ainda está viva – mas ela perdeu a disposição, a atividade, e o vigor que possuía quando estava com saúde. Há muita gente que, se de fato está viva para com Deus (como gostaríamos de crer) – está no mínimo doente, indiferente, e numa situação de declínio. Que o grande Médico possa restaurá-los!Causas, sintomas e efeitos mais evidentes de um declínio na Vida Espiritual.
Às vezes se diz que “estar ciente de uma doença é meio caminho andado para a cura”; o que se aplica ao nosso caso, pois, a não ser que estejamos cientes da nossa enfermidade e do perigo que corremos – não estaremos sinceramente preocupados com a cura. As causas e os sintomas ou efeitos de um declínio desse tipo são numerosos, e nem sempre é fácil identificá-los, já que estão mutuamente interligados e potencializam um ao outro. Aquilo que talvez se identifique como a causa, em muitos casos, é também uma prova de que a moléstia já começou; e os efeitos talvez sejam considerados como se fossem as causas, o que confirma ainda mais a doença e deixa claro o quanto é perigosa.
Dentre as CAUSAS mais comuns, podemos destacar acima de tudo o erro doutrinário. Não incluo todo e qualquer lapso ou opinião enganosa que se possa adotar ou possuir; mas existem alguns erros que, pela rapidez e violência com que agem, podem ser comparados a “veneno”! Foi assim com os gálatas que, por darem ouvidos a falsos mestres, foram desviados da simplicidade do Evangelho; com a consequência de que rapidamente perderam a bem-aventurança que uma vez tinham provado. O veneno raramente é tomado puro; mas, se misturado com a comida, não se suspeita do mal até que seja descoberto por meio dos seus efeitos. Dessa forma, aqueles que se empenham em envenenar as almas, no geral usam alguma verdade importante e proveitosa, como veículo por meio do qual transportam a droga maligna até a mente dos descuidados! Talvez falem bem da pessoa e da expiação de Cristo, ou exaltem as riquezas e a liberdade da graça de Deus – enquanto ao mesmo tempo, sob o véu desses bonitos disfarces, introduzem predisposição contra a santidade ou a absoluta necessidade da santidade, sem a qual ninguém verá o Senhor. Já outros falam vigorosamente em termos gerais em favor da santidade pessoal – mas o alvo deles é privar o coração da dependência do sangue do Salvador, e das influências do Seu Santo Espírito. A conduta mais refletida e exata, sem o sangue do Salvador e sem a influência do Espírito Santo, é tão diferente da santidade do Evangelho quanto são diferentes de um homem vivo uma fotografia, ou uma estátua, ou um cadáver.
Qualquer pessoa que estiver separando, então, as coisas que Deus uniu – quer seja no modo de pensar ou na sua experiência – já está infectado com uma doença mortal, e a sua religião, a não ser que Deus misericordiosamente intervenha, haverá de degenerar ou em licenciosidade ou em formalismo! Nós vivemos em dias em que muita gente está sendo jogada de um lado para o outro, como navios sem leme nem piloto, por vários ventos de doutrina. Por essa razão, aqueles que se preocupam com o bem-estar de suas almas, não poderão nunca se exceder na vigilância contra o espírito de curiosidade e desejo por “novidades”, o qual o apóstolo descreve com a metáfora da coceira nos ouvidos (um desejo de ouvir cada pregador novo e diferente que apareça), a fim de não absorverem erros sem que o percebam, e se tornem presa dos artifícios e da astúcia daqueles que se põem de emboscada para enganar!
O orgulho espiritual e a autoadmiração, da mesma forma, haverão de causar infalivelmente um declínio na vida divina, embora a mente possa ser preservada da infecção dos erros doutrinários, e embora o poder da verdade do Evangelho possa, por certo tempo, ter sido experimentada de fato. Se o conhecimento e os talentos que adquirimos, e mesmo o progresso na graça nos seduzem a termos uma boa opinião de nós mesmos, como se fôssemos sábios e bons – aí estamos de fato enlaçados, em perigo de queda a cada passo que damos, de nos desviar do reto caminho, e de agir de mal a pior, sem capacidade de nos corrigir ou mesmo de nos dar conta dos nossos desvios – a não ser que o Senhor misericordiosamente Se interponha, restaurando-nos a um espírito de humildade e dependência d’Ele mesmo. Porque Deus, que dá maior graça ao humilde – resiste aos soberbos! Ele os contempla com repulsa – em proporção ao grau em que eles admiram a si mesmos. A lei inflexível do Seu reino é que, todo aquele que a si mesmo se exalta – será humilhado. Os cristãos genuínos, por meio do mal que sobrevive em seus corações, e por meio das sutis tentações do inimigo, estão sujeitos, são somente à ação desse orgulho que é comum a nossa natureza decaída – mas a certa espécie de orgulho que, embora seja absurdo e intolerável em qualquer pessoa, se encontra apenas entre aqueles que professam o Evangelho. Nós nada possuímos que não tenhamos ganhado, e por essa razão ficar orgulhoso de títulos, saúde, conhecimento, sucesso, ou qualquer outra vantagem temporal por meio da qual a providência de Deus nos distinguiu – é absolutamente pecaminoso! E para aqueles que se confessam “pecadores”, e por isso merecedores de nada senão miséria e ira – orgulhar-se das bênçãos especiais que provêm do Evangelho da sua graça, é uma perversidade de que nem mesmo os demônios são capazes! 2 Timóteo 4.3 3 1 Coríntios 4.7.
“Mais cedo ou mais tarde, os efeitos do seu orgulho se tornarão visíveis e notórios”.
O apóstolo Paulo estava tão consciente do perigo que corria de se exaltar mais do que o devido, por causa das ricas revelações e dos favores peculiares que o Senhor lhe proporcionou, que disse o seguinte: “Foi-me dado um mensageiro de Satanás para esbofetear-me” – (2 Cor 12.7). Ele menciona esse difícil decreto de Deus como uma misericórdia extra, porque ele o reconheceu como algo necessário e projetado para conservá-lo humilde e atento a sua própria fraqueza. Os pastores que foram honrados com habilidades singulares e sucesso têm grande necessidade de vigilância e oração a esse respeito. O Senhor não vê como vê o homem. Os ouvintes simples de coração têm facilidade de reverenciar o seu pregador favorito, e quase considerá-lo mais do que um mero homem no púlpito, tomando por certo que ele está profundamente influenciado pelas verdades que ele, aparentemente com tanta liberdade e poder, lhes apresenta; enquanto, talvez, o pobre verme secretamente esteja se afundando em autocongratulação, regozijando-se com os números e a atenção daqueles que se apoiam nas suas palavras! Talvez esse tipo de pensamento vez por outra brote na mente dos melhores pastores; mas, se forem tolerados, se tornarem um hábito, e se penetrarem fortemente na ideia que ele forma a respeito do seu próprio caráter; e se, enquanto ele professa pregar Cristo Jesus o Senhor – ele estiver pregando a si mesmo, e buscando a sua própria glória – ele se torna culpado de alta traição contra a Majestade daquele em cujo nome está falando. E mais cedo ou mais tarde, os efeitos do seu orgulho se tornarão visíveis e notórios. Erros de julgamento, grosseira conduta imprópria, enfraquecimento no zelo, nos dons, na influência – são males que lamentavelmente aparecem quando o orgulho espiritual está no controle, quer seja em público quer seja na vida privada: “Pois quem é que te faz sobressair? E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido?” (1 Cor 4.7). “O SENHOR dos Exércitos formou este desígnio para denegrir a soberba de toda beleza e envilecer os mais nobres da terra” (Is 23.9).
Podemos designar o seguinte como uma terceira causa frequente de um declínio espiritual: Um desejo e uma atração exagerados pelas coisas do presente mundo. A não ser que esse princípio maligno seja mortificado na raiz – pela doutrina da cruz – com o tempo ele haverá de prevalecer sobre a mais gloriosa profissão de fé. Esse amor pelo mundo, que é inconsistente com o verdadeiro amor a Deus – manifesta-se de duas formas diferentes, conforme a inclinação humana, seguindo temperamento e hábitos diferentes:
A primeira é a cobiça ou a voracidade por ganho. Essa foi a ruína de Judas, e provavelmente a causa da deserção de Demas. Por meio da honrosa menção que Paulo faz dele em algumas das epístolas, Demas parece ter merecido, por certo tempo, muito da confiança e estima de Paulo. Contudo com o tempo a sua paixão cobiçosa prevaleceu, e a última informação que temos dele, por meio do apóstolo, é a seguinte: “Porque Demas, tendo amado o presente século, me abandonou e se foi para Tessalônica” (2 Tm 4.10). Por outro lado, há pessoas que não podem ser acusadas de amarem o dinheiro em si – porque elas, em vez de acumular, dissipam o dinheiro. Contudo elas estão igualmente debaixo da influência desse espírito mundano! Elas manifestam o seu coração mundano por meio do refinado e caro gosto por roupas, mobília e festas – coisas essas sempre inadequadas a quem se professa cristão. Não é fácil estabelecer com exatidão uma linha para a conduta cristã nesses assuntos, que seja própria para as diferentes situações em que a providência de Deus nos colocou. Também isso não é necessário para aqueles que são pobres de espírito e retos de coração. Um simples desejo de agradar a Deus, e de adornar o Evangelho, haverá de solucionar a maioria dos casos de como um cristão deveria gastar seu dinheiro – coisas de que se ocupam as mentes apequenadas e levianas.
A inclinação do nosso coração sempre haverá de regular e dirigir nossos gastos voluntários. Aqueles que amam o Senhor, e cujo espírito está vigorosamente a Seu serviço, haverão de evitar tanto a mesquinharia como a extravagância egoísta. Em vez disso, eles se inclinarão ao frugal quando o assunto for gastar dinheiro consigo mesmos – a fim de que sejam capazes de promover a causa de Deus, e para socorrer as necessidades do Seu povo. Os avarentos, que conseguem contentar-se com a mera formalidade da religião, tentarão acumular tudo o que puderem poupar – com o fim de gratificar a própria avareza! Outros gastarão tudo o que puderem economizar para satisfazer a própria vaidade, ou os seus apetites mundanos!
Não é fácil dizer qual desses males é o maior. Talvez dentre os dois, o avarento seja o menos acessível a sentir-se culpado, e em consequência o mais difícil de recuperar. Mas um desejo de extravagância e indulgência, se persistentemente cultivado, gradualmente haverá de conduzir a tal conformidade com o espírito e com as regras do mundo, ao ponto de enfraquecer com toda a certeza, se não suprimir por completo, o exercício da piedade essencial. Qualquer que seja o grau em que o “amor do mundo” prevalecer, a “saúde da alma” proporcionalmente haverá de declinar. “Ora, os que querem ficar ricos caem em tentação, e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição. Porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé e a si mesmos se atormentaram com muitas dores” (1 Tm 6.9,10). Poderíamos enumerar muitas outras causas – mas a maioria delas pode ser reduzida àquelas que já mencionamos. Praticar um único pecado, ou omitir a prática de um único dever, quando isso for tolerado contra a luz da consciência, e, se for algo habitual, será suficiente para enfraquecer a alma, torná-la infrutífera e desassossegada, e a deixará exposta a toda e qualquer tentação que aparecer.
Às vezes, a infidelidade à luz já recebida perverte a capacidade de julgamento, e então os erros que parecem produzir algum estímulo ou pretexto para um pecado do qual o coração ainda não desistiu, são prontamente aceitos, a fim de esquivar-se dos protestos da consciência. Noutras ocasiões, os erros, descuidadamente aceitos, enfraquecem de forma imperceptível o senso de dever, e passo a passo espalham a sua influência por toda a conduta. Com frequência, o apóstolo menciona em conjunto a fé e uma boa consciência, visto que são inseparáveis; abrir mão de uma é abrir mão de ambas. Aqueles que conservam o mistério da fé numa consciência pura serão preservados num espírito próspero, crescerão na graça, avançarão de força em força, haverão de andar honrada e prosperamente. Mas no momento em que as doutrinas ou regras do Evangelho forem negligenciadas, se espalhará uma debilitante enfermidade nos órgãos vitais da religião, uma enfermidade mortal, e da qual ninguém se reabilita – a não ser aqueles a quem Deus misericordiosamente concede a graça do arrependimento para a vida. Os SINTOMAS de uma tal doença da alma são tão numerosos e variegados quanto o são os temperamentos e as situações da vida. A seguir, apresentamos alguns poucos que são mais frequentes e aparentes, e que indicam com segurança um declínio religioso. A doença física com frequência é acompanhada de perda de apetite, inatividade e desassossego. De forma semelhante, a doença da alma remove o descanso e a paz, provoca tédio e apatia no serviço a Deus, e uma indisposição para com os meios da graça6, indisposição para esperar em Deus em secreto, e indisposição para as ordenanças públicas. Esses compromissos, tão necessários para preservar a saúde espiritual, são gradualmente negligenciados e abandonados, ou a participação deles se definha num ciclo formal, sem sabor nem benefício. Para a pessoa sadia, a comida simples é saborosa, mas o paladar, quando afetado ela doença, torna-se exigente e difícil de satisfazer, ansiando por variedade e iguarias. Dessa mesma forma, quando o genuíno leite do Evangelho, verdade simples exposta com palavras simples, não mais satisfaz, mas a pessoa exige estranhas especulações, ou a espumosa eloquência da sabedoria humana, a fim de cativar a sua atenção, isso é mau sinal. Pois essas coisas destinam-se a fomentar não a normalidade, mas a doença. Depois de desprezar ou menosprezar os meios que Deus designou para satisfazer a alma – o passo seguinte normalmente é buscar alívio por meio da conformação com o espírito, os costumes e os entretenimentos do mundo. E essa conformação, uma vez tolerada, em breve será defendida; e aqueles que não aprovam nem imitam essa conformidade com o mundo serão acusados de estar sob a influência de um espírito mesquinho, legalista ou farisaico. O professador enfermo encontra-se num delírio, o qual impede que ele perceba a sua doença.
Meios da graça: São as práticas pessoais do cristão, que o põem em condições de usufruir a graça de Deus e nela crescer: a oração, a leitura da Bíblia, e a meditação na Palavra.
Ordenanças públicas: São as práticas “coletivas” das quais o cristão deve participar: reunir-se com os irmãos para adoração pública, o batismo, a santa ceia, e a oração com os irmãos; deve a um aumento de sabedoria, luz e liberdade. Ele considera o tempo em que era mais restrito e circunspecto como um tempo de ignorância, ele vai sorrir diante da lembrança daquilo que ele agora considera como seus escrúpulos infantis, e congratula-se por ter-se livrado alegremente deles, e agora julga que servir a Deus e ao mundo não é nada tão incompatível como já chegou a pensar que fosse. Contudo enquanto dessa forma afrouxa a regra da sua própria conduta, ele se torna um observador criticamente severo da conduta dos outros. Quando surge a oportunidade, ele censura asperamente as faltas e até mesmo os lapsos dos pastores e dos que professam a fé, e fala dessas coisas – não chorando como fez o apóstolo – mas com prazer, e se esforça para convencer-se de que essa tal exatidão de que tanto se fala não passa de uma capa de hipocrisia ou então é fruto de superstição. Os cristãos verdadeiros raramente se deparam com tanta ironia e julgamento equivocado, ou reprimendas injustas, do que as que vêm daqueles que, tendo sido nalgum tempo seus companheiros, mais tarde os abandonaram.
Quando o distúrbio está no auge, torna-se de fato perigoso, e, aos olhos humanos, desesperador. Mas o poder pertence a Deus. Que Ele Se lembre com misericórdia daqueles que estão para morrer, para restaurá-los a uma mente sóbria, e para serem recuperados para Ele mesmo. De outra forma, “… melhor lhes fora nunca tivessem conhecido o caminho da justiça do que, após conhecê-lo, volverem para trás, apartando-se do santo mandamento que lhes fora dado” – (2 Pe 2.21).
John Newton