O que Paulo escreveu acerca dos judeus não crentes de seu tempo poderia ser dito, creio, com respeito a alguns crentes de hoje: “Porque lhes dou testemunho de que eles têm zelo por Deus, porém não com entendimento“. Muitos têm zelo sem conhecimento, entusiasmo sem esclarecimento. Em outras palavras, são inteligentes, mas faltam-lhes orientação.
Dou graças a Deus pelo zelo. Que jamais o conhecimento sem zelo tome o lugar do zelo sem conhecimento! O propósito de Deus inclui os dois: o zelo dirigido pelo conhecimento, e o conhecimento inflamado pelo zelo. É como ouvi certa vez o Dr. John Mackay dizer, quando era presidente do Seminário de Princeton:
“A entrega sem reflexão é fanatismo em ação, mas a reflexão sem entrega é a paralisia de toda ação”.
O espírito de anti-intelectualismo é corrente hoje em dia. No mundo moderno multiplicam-se os programatistas, para os quais a primeira pergunta acerca de qualquer ideia não é: “É verdade?” mas sim: “Será que funciona?“. Os Jovens têm a tendência de ser ativistas, dedicados na defesa de uma causa, todavia nem sempre verificam com cuidado se sua causa é um fim digno de sua dedicação, ou se o modo como procedem é o melhor meio para alcançá-lo. Um universitário de Melbourne, Austrália, ao assistir a uma conferência na Suécia, soube que um movimento de protesto estudantil começara em sua própria universidade. Ele retorcia as mãos, desconsolado. “Eu devia estar lá“, desabafou, “para participar“. “O protesto é contra o que?” Ele tinha zelo sem conhecimento.
Mordecai Richler , um comentarista canadense, foi muito claro a esse respeito:
“O que me faz Ter medo com respeito a esta geração é o quanto ela se apóia na ignorância. Ser o desconhecimento geral continuar a crescer, algum dia alguém se levantará de um povoado por aí dizendo Ter inventado… a roda“.
Este mesmo espectro de anti-intelectualismo surge frequentemente para perturbar a Igreja cristã. Considera a teologia com desprazer e desconfiança. Vou dar alguns exemplos:
Os católicos quase sempre têm dado uma grande ênfase no ritual e na sua correta conduta. Isso tem sido, pelo menos, uma das características tradicionais do catolicismo, embora muitos católicos contemporâneos (influenciados pelo movimento litúrgico) prefiram o ritual simples, para não dizer o austero. Observe-se que o cerimonial aparente não deve ser desprezado quando se trata de uma expressão clara e decorosa da verdade bíblica. O perigo do ritual é que facilmente se degenera em ritualismo, ou seja, numa mera celebração em que a cerimônia se torna um fim em si mesma, um substituto sem significado ao culto racional. Por outro lado, há cristãos radicais que concentram suas energias na ação política e social.
A preocupação do movimento ecumênico não é mais ecumenismo em si, ou planos de união de igrejas, ou questões de fé e disciplina; muito pelo contrário, preocupa-se com problema de dar alimento aos famintos, casa aos que não tem moradia; com o combate ao racismo, com os direitos dos oprimidos; com a promoção de programas de ajuda aos países em desenvolvimento, e com o apoio aos movimentos revolucionários do terceiro mundo. Embora as questões da violência e do envolvimento cristão na política sejam controvertidos, de uma maneira geral deve-se aceitar que luta pelo bem estar, pela dignidade e pela liberdade de todo homem, é da essência da vida cristã. Entretanto, historicamente falando, essa nova preocupação deve muito de seu ímpeto à difundida frustração de que jamais se alcançará um acordo em matéria de doutrina. O ativismo ecumênico desenvolve-se com reação à tarefa de formulação teológica, a qual não pode ser evitada, se é que as igrejas neste mundo devam ser reformadas e renovadas, para não dizer, unidas.
Grupos de cristãos pentecostais, muitos dos quais fazem da experiência o principal critério da verdade. Pondo de lado a questão da validade do que buscam e declaram, uma das características mais séria, de pelo menos alguns neo-pentecostais, é o seu declarado anti-intelectualismo.
Um dos líderes desse movimento disse recentemente, a propósito dos católicos pentecostais, que no fundo o que importa “não é a doutrina, mas a experiência“. Isso equivale a por nossa experiência subjetiva acima da verdade de Deus revelada. Outros dizem crer que Deus propositadamente dá às pessoas uma expressão inteligente a fim de evitar a passagem por suas mentes orgulhosas, que ficam assim humilhadas. Pois bem. Deus certamente humilha o orgulho dos homens, mas não despreza a mente que ele próprio criou.
Estas três ênfases – a de muitos católicos no ritual, a de radicais na ação social, e a de alguns pentecostais na experiência – são, até certo ponto, sintomas de uma só doença, o anti-intelectualismo. São válvulas de escape para fugir à responsabilidade, dada por Deus, do uso cristão de nossas mentes.Num enfoque negativo, eu daria como substituto este trabalho “a miséria e a ameaça do cristianismo de mente vazia“. Mais positivamente, pretendo apresentar resumidamente o lugar da mente na vida cristã. Passo a dar uma visão geral do que pretendo abordar. No segundo capítulo, a título de introdução, apresentarei alguns argumentos – tanto seculares como cristãos – a favor da importância do uso de nossas mentes. No terceiro, constituindo a tese principal, descreverei seis aspectos da vida e responsabilidade cristãs, nos quais a mente tem uma função indispensável. Concluindo , procurarei prevenir contra o extremo oposto, também perigoso, de abandonar um anti-intelectualismo superficial para cair num árido super-intelectualismo. Não estou em defesa de uma vida cristã seca, sem humor, teórica, mas sim de uma viva devoção inflamada pelo fogo da verdade. Anseio por esse equilíbrio bíblico, evitando-se os extremos do fanatismo. Apressar-me-ei em dizer que o remédio para uma visão exagerada do intelecto não é nem depreciá-lo , nem negligenciá-lo, mas mantê-lo no lugar indicado por Deus, cumprindo o papel que ele lhe deu.
Por Que Os Cristãos Devem Usar Suas Mentes?
A primeira razão se apresentará a todo crente que deseja ver o Evangelho proclamado e Jesus Cristo reconhecido no mundo todo. Trata-se do poder do pensamento humano na concretização de ações. A História está repleta de exemplos da influência que grandes ideias exercem. Todo movimento de poder teve a sua filosofia que se apossou da mente, inflamou a imaginação e capacitou a devoção de seus seguidores. Basta pensar nos manifestos fascista e comunista do século passado, na obra “Mein Kampf” de Hitler, de um lado, e no “Das Kapital” de Marx e “Pensamentos” de Mao, do outro. A. N. Whitehead resume isso da seguinte forma: Uma grande parte do mundo é atualmente dominada por ideologias que, se não completamente falsas, são estranhas ao Evangelho de Cristo. Apregoamos “conquistar” o mundo para Cristo. Mas que espécie de “conquista” temos em mente? Certamente que não uma vitória baseada na força das armas.
Nossa cruzada cristã diferencia-se completamente das vergonhosas cruzadas da Idade Média. Observemos a descrição que Paulo faz dessa batalha: “Na verdade, as armas com que combatemos não são carnais, mas têm, a serviço de Deus, o poder de destruir fortalezas. Destruímos os raciocínios presunçosos e todo poder altivo que se levanta contra o conhecimento de Deus. Tornamos cativo todo pensamento para levá-lo a obedecer a Cristo“. Esta é uma batalha de ideias, a verdade de Deus vencendo as mentiras dos homens. Será que acreditamos no poder da verdade?
Não muito tempo depois que a Rússia brutalmente reprimiu a revolta húngara de 1956, o Sr. Kruschev referiu-se ao precedente dado pelo Czar Nicolau I, que comandara combate à revolta húngara de 1848.Num debate sobre a Hungria, travado na Assembleia Geral das Nações Unidas, Sir Leslie Munro citou as observações feitas por Kruschev e concluiu seu discurso relembrando uma declaração feita por Lord Palmerston na Casa dos Comuns em 24 de julho de 1849, com respeito ao mesmo assunto. Palmerston tinha dito o seguinte: “As opiniões são mais fortes que os exercícios. Se fundadas na verdade e na justiça, as opiniões ao fim prevalecerão sobre as baionetas da infantaria, os tiros da artilharia e as cartas da cavalaria“… Deixando de lado exemplos seculares do poder do pensamento, passo agora a abordar algumas razões, mais propriamente cristãs, pelas quais devemos fazer uso de nossas mentes. Meu argumento agora é que nas doutrinas básicas da fé cristã, doutrinas da criação, revelação, redenção e juízo, em todas elas está implícito que o homem tem um duplo e inalienável dever: o de pensar e o de agir de conformidade com o seu pensamento e conhecimento.
Criado Para Pensar
Começo com a criação. Deus fez o homem à sua própria imagem, e um dos aspectos mais nobres da semelhança de Deus no homem é a capacidade de pensar. É verdade que todas as criaturas infra-humanas têm cérebro, alguns rudimentos, outros mais desenvolvidos. O Sr. W. S. Anthony, do Instituto de Psicologia Experimental de Oxford, apresentou um trabalho perante a Associação Britânica, em setembro de 1957, no qual descreveu algumas experiências com ratos. Ele pôs obstáculos às entradas que continham alimento e água, frustrando lhes as tentativas de encontrar o caminho naquele labirinto. Descobriu que, diante do labirinto mais complicado, seus ratos demonstraram o que ele denominou de “dúvidas intelectual primitiva“! Isso bem pode ser verdade. Todavia, mesmo que algumas criaturas tenham dúvidas, somente o homem tem o que a Bíblia chama de “entendimento“.
A Escritura assegura e evidencia isso a partir do momento da criação do homem. Em Gênesis 2 e 3 vemos Deus comunicando-se com o homem de um modo segundo o qual Ele não se comunica com os animais. Ele espera que o homem colabore consigo, consciente e inteligentemente, no cultivo e na conservação do jardim em que o colocara , e que saiba diferenciar – tanto racional como moralmente – entre o que lhe é permitido e o que lhe proibiu de fazer. Ainda mais, Deus chama o homem para dar nomes aos animais, simbolizando assim o senhorio que lhe dera sobre essas criaturas. E Deus cria a mulher de maneira tal que o homem imediatamente a reconhece como companheira idônea de sua vida, e então irrompe espontaneamente primeiro poema de amor da História!
Esta racionalidade básica do homem, por criação, é admitida em toda a Escritura. Na realidade, sobre esse fato se apoia o argumento normal que, sendo o homem diferente dos animais, ele deve comportar-se também diferentemente. “Não sejais como o cavalo ou a mula, sem entendimento“. Em consequência, o homem é escarnecido e repreendido quando o seu comportamento é mais bestial que humano (“eu estava embrutecido e ignorante; era como um irracional à tua presença“), e quando a conduta de animais é mais humana que a de alguns homens. Pois que às vezes os animais de fato superam os homens. As formigas são mais trabalhadoras e mais previdentes que o folgadão. Os bois e jumentos muitas vezes dão a seus donos um reconhecimento mais obediente do que o povo Deus ao Senhor. E os pássaros migratórios são melhores no arrependimento, já que quando partem em migração sempre retornam, enquanto que muitos homens que se desviam não conseguem voltar.
O tema é claro e desafiador. Há muitas semelhanças entre o homem e os animais. Mas os animais foram criados para se conduzirem por instinto, enquanto que os homens (apesar dos “behavioristas“), por escolha racional. Dessa forma os homens, ao deixarem de agir racionalmente, procedendo por instinto à semelhança dos animais, estão se contradizendo, contradizendo sua criação e sua diferenciação como seres humanos, e devem Ter vergonha de si próprios. De fato é verdade que a mente do homem está afetada pelas devastadoras consequências da Queda. A “depravação total” do homem significa que cada parte constituinte da sua humanidade foi, até certo ponto, corrompida, inclusive sua mente, a qual a Escritura descreve como “obscurecida“. Com efeito, quanto mais os homens reprimem a verdade de Deus que reconhecem, mais “fúteis“, ou mesmo “insensatos” se tornam no seu pensar. Podem declarar-se sábios, mas são tolos. A mente deles é a “mente da carne”, a mentalidade de uma criatura decaída, e é basicamente hostil a deus e à sua lei.
Tudo isso é verdade. Mas o fato de que a mente do homem é decaída não nos pode servir de desculpa para batermos em retirada, passando do pensamento à emoção, já que o lado emocional da natureza humana está igualmente decaído. De fato, o pecado traz mais efeitos perigosos à nossa faculdade de sentir do que à nossa faculdade de pensar, porque nossas opiniões são mais facilmente controladas e reguladas pela verdade revelada do que nossas experiências.
Assim, pois, apesar do estado decaído da mente humana, ainda o homem lhe é ordenado pensar e usar sua mente, na condição de criatura humana que é. Deus convida o Israel rebelde. “Vinde, pois , e arrazoemos, diz o Senhor“. E Jesus acusou as multidões descrentes, inclusive os fariseus e saduceus, por poderem interpretar as condições meteorológicas e preverem o tempo, mas não poderem interpretar “os sinais dos tempos” nem preverem o julgamento de Deus. “Por que perguntou-lhes. Em outras palavras: por que não usais os vossos cérebros? Por que não aplicais ao campo moral e espiritual o sentido comum que empregais no físico?“.
“A sociedade secular, por esse mundo a fora, concorda com o ensino da Escritura acerca da racionalidade básica do homem, constituída em sua criação e não de todo destruída na Queda“. Os propagandistas podem dirigir os seus apelos promocionais aos nossos apetites mais baixos, mas eles não têm nenhuma dúvida de que temos a capacidade de distinguir entre produtos: de fato, muitas vezes até mesmo chegam a lisonjear o consumidor que discrimina. Quando sai a primeira notícia de um crime, geralmente ela vem com a frase “o motivo ainda não foi descoberto“. Pressupõe-se, como se vê , que mesmo a ação criminosa tem uma motivação, seja ela qual for. E quando nossa conduta é mais emocional do que racional, ainda assim insistimos em “racionalizá-la“. O próprio processo chamado “racionalização” é significativo. Indica que o homem de tal forma se constituiu num ser racional que quando não tem razões para a sua conduta ele tem que inventar alguma para se satisfazer.
Pensando Os Pensamentos de Deus
Passo agora do argumento da criação para o da revelação. Os fatos simples e gloriosos – que Deus é um Deus que se revela a si próprio, e que Ele se revelou ao homem – demonstram a importância de nossas mentes. Pois eu toda a revelação de Deus é racional, tanto a revelação geral na natureza como sua revelação especial nas Escrituras e em Cristo. Consideremos a natureza.
“Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som; no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras até aos confins do mundo“.
Ou seja, Deus fala aos homens através do universo que criou, e proclama sua glória divina, conquanto seja uma mensagem sem palavras. A mensagem é muito clara, no entanto, e os que rejeitam sua verdade são culpados diante de Deus.
“Portanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, o seu eterno poder e também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são por isso indesculpáveis. Porquanto, tendo conhecimento de Deus não o glorificaram como Deus…“.
Estas duas passagens referem-se à revelação que Deus faz de si mesmo através da ordem criada. Embora seja uma proclamação sem palavras, uma voz sem som, mesmo assim resulta que todo homem tem algum “conhecimento de Deus“. Está pressuposto aí que o homem tem capacidade para ler o que Deus escreveu no universo, e isso é extremamente importante. Toda a pesquisa científica apóia-se nessa pressuposição, na correspondência entre o caráter do que está sendo investigado e a mente de quem investiga. Essa correspondência é a racionalidade. O homem pode compreender os processos da natureza. Eles não são misteriosos; deve-se ao Criador que, tanto nela como neles, expressou a Sua mente. Em decorrência, de acordo com as famosas palavras de Kepler, os homens “podem pensar segundo os pensamentos de Deus“. Essa mesma importante correspondência é ainda mais direta entre a Bíblia e quem a lê. Pois que nela e através dela Deus tem falado, isto é, tem se comunicado por meio de palavras. Se concordamos que na natureza a revelação de Deus é visualizada, na Escritura é verbalizada, e em Cristo é tanto uma coisa como a outra, pois Ele é “a Palavra que se fez carne“. Ora, a comunicação com palavras pressupõe uma mente que as possa entender e interpretar, pois as palavras não passam de símbolos sem significado a menos que sejam decifradas por um ser inteligente.
Assim, o segundo motivo cristão pelo qual a mente humana é importante é que o cristianismo é uma religião revelada. Creio que quem melhor expressou esse ponto foi James Or em seu livro “The Cristian View of God and the World” A Visão Cristã de Deus e do Mundo): Se há uma religião neste mundo que dê relevância ao ensino, sem dúvida tal religião é a de Jesus Cristo. Com frequência já se tem destacado o fato de que a doutrina tem uma mínima importância nas religiões não-cristãs; nelas o destaque está na realização de um ritual. Mas é precisamente nisto que o cristianismo se diferencia das demais religiões: ele tem doutrina. Ele se apresenta aos homens com um ensinamento definido, positivo, declara-se ser a verdade; nele o conhecimento dá suporte à religião, conquanto seja um conhecimento somente acessível sob condições morais… Uma religião divorciada do pensamento diligente e elevado tem tido, através de toda a história da igreja, a tendência de se tornar fraca, estéril e nociva; por outro lado, o intelecto desprovido de seus direitos no âmbito da religião, tem procurado sua satisfação fora, e desenvolvido um materialismo sem Deus.
É certo que alguns chegaram à conclusão oposta. Já que o homem é finito e decaído, argumentam, já que não pode descobrir Deus através de sua mente, tendo Deus que se revelar por Si, então a mente não é importante. Mas não! A doutrina cristã da revelação, ao invés de fazer da mente algo desnecessário, na verdade a torna indispensável e a coloca no seu devido lugar. Deus se revelou por intermédio de palavras às mentes humanas. Sua revelação é uma revelação racional a criaturas racionais. Nosso dever é receber sua mensagem, submetermo-nos a ela, esforçamo-nos por compreendê-la e relacionarmo-la com o mundo em que vivemos. O fato de que Deus precisa tomar a iniciativa para revelar-se a nós mostra-nos que nossas mentes são finitas e decaídas; por Ele preferir revelar-se às criancinhas, vemos que temos de nos humilhar para recebermos sua Palavra; o mero fato de que se revelou, por meio de palavras, mostra-nos que nossas mentes são capacitadas para o entendimento. Uma das mais elevadas e mais nobres funções da mente humana é ouvir a Palavra de Deus, e assim ler a mente de Deus e pensar conforme seus pensamentos, tanto pela natureza como pela Escritura. Atrevo-me a dizer que quando falhamos no uso de nossas mentes e descemos ao nível dos animais, Deus se dirige a nós, como o fez a Jó quando o encontrou enchafurdado em auto piedade, insensatez e lamentações amargas: “Cinge agora os teus lombos como homem; eu te perguntarei e tu me responderás“.
Mentes Renovadas
Passamos agora da doutrina da revelação à doutrina da redenção, redenção realizada por Deus através da morte e ressurreição de Jesus Cristo. Tendo Deus executado esta redenção através do seu Filho, agora a anuncia por intermédio de seus servos. De fato, a proclamação do Evangelho – também feita por palavras dirigidas às mentes humanas – é o principal meio provido por Deus para dar a salvação aos pecadores.
Paulo assim se expressa quanto a isso:
“Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar aos que creem, pela loucura da pregação”.
Note-se com cuidado o contraste que o apóstolo faz. Não é entre uma apresentação racional e um não-racional , como se fosse o caso de Deus Ter posto de lado por completo uma mensagem racional, em virtude da sabedoria humana ser impotente para encontrar a Deus. Não. O que Paulo contrasta com a sabedoria humana é a revelação divina. Mas nossa pregação é uma revelação racional, o enigma de Cristo crucificado e ressurreto. Pois conquanto as mentes dos homens estejam em trevas e seus olhos estejam cegos, conquanto os não-regenerados não possam por si próprios receber o compreender coisas espirituais “porque elas se discernem espiritualmente“, nem por isso o Evangelho deixa de ser levado às suas mentes, porque tal é o meio previsto por Deus para abrir-lhes os olhos, iluminar-lhes as mentes e salvá-los. Terei mais a dizer sobe isso ao tratar da evangelização.
Pois bem, a redenção traz consigo a reconstituição da imagem divina no homem, a qual fora distorcida na Queda. Nessa reconstituição inclui-se a mente. Paulo pôde descrever os convertidos do paganismo dizendo: “e vos revestistes do novo homem, que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou e também: “aprendestes a Cristo… no sentido de que… vos renoveis no espírito do vosso entendimento“. Ele pode ir ainda mais longe. Um homem “espiritual“, no qual habita o Espírito Santo e que por Ele é dirigido, tem novos poderes para o discernimento espiritual. Dele pode-se mesmo dizer que tem “a mente de Cristo“.
Esta convicção de que os cristãos têm novas mentes fez com que Paulo apelasse confiantemente a seus líderes:
“Falo como a criteriosos, julgai vós mesmos o que digo”.
Ás vezes me ponho a pensar sobre de que maneira o apóstolo reagiria se hoje viesse visitar a cristandade ocidental. Acho que lamentaria a falta de uma mente cristã nos dias de hoje, como o fez recentemente Harry Blamires. Uma “mente cristã“, como a descreve o Sr. Blamires, é “uma mente treinada, informada, equipada para manusear os dados de uma controvérsia secular dentro de um quadro de referência constituído por pressuposições cristãs“, por exemplo, pressuposições quanto ao sobrenatural, quanto à universalidade do mal, quanto à verdade, autoridade e valor da pessoa humana. O pensador cristão, continua ele, desafia os preconceitos correntes… perturba os complacentes… se antepõe aos ativos pragmatistas… questiona as bases de tudo que lhe diz respeito e… “faz-se incômodo“. Mas, prossegue, hoje em dia parece não existir pensadores cristãos com uma mente cristã. Pelo contrário:
“A mente cristã tem-se deixado secularizar num grau de debilidade e de forma tão despreocupada sem paralelos na história cristã. Não é fácil achar as palavras certas para exprimir a completa perda de moral intelectual na igreja do século vinte. Não se pode caracterizar este fato sem recorrer a uma linguagem que parecerá ser histérica e melodramática. Não existe mais uma mente cristã. Ainda há, certamente, uma ética cristã, uma prática cristã e uma espiritualidade cristã… Mas na condição de um ser que pensa, o cristão moderno já sucumbiu à secularização“.
Trata-se de uma triste negação de nossa redenção por Cristo, a respeito de quem se diz que “se nos tornou da parte de Deus sabedoria“.
Julgados Por Nosso Conhecimento
A Quarta doutrina cristã na qual está implícita a importância da mente é a doutrina do juízo de Deus. Pois um ponto é bastante claro no ensinamento bíblico quanto ao juízo: que Deus nos julgará pelo nosso conhecimento e pela nossa atitude em resposta (ou pela falta desta) à sua revelação.
Tomemos como um exemplo do Velho Testamento o livro de Jeremias.
Jeremias profetizou pela palavra do Senhor, com grande coragem e com uma persistência inabalável que, a menos que o povo atendesse à voz de Deus, a nação, a cidade e o templo seriam destruídos. Mas, em vez de atenderem, fecharam os seus ouvidos, ficaram inflexíveis , e endureceram a cerviz. Essas são algumas frases-chaves do livro. Temos aí alguns exemplos.
Desde o dia em que vossos pais saíram da terra do Egito, até hoje, enviei-vos todos os meus servos, os profetas, todos os dias, começando de madrugada, eu os enviei. Mas não me deste ouvidos nem me atendestes; endurecestes a cerviz e fizeste pior do que vossos pais… ordenei a vossos pais no dia em que os tirei da terra do Egito…, dizendo: Daí ouvidos à minha voz, e fazei tudo segundo o que vos mando; assim vós me sereis a mim por povo, eu vos serei a vós por Deus… Porque deveras advertia a vossos pais no dia em que os tirei da terra do Egito, até o dia de hoje, testemunhando desde cedo cada dia, dizendo: Daí ouvidos à minha voz. Mas não atenderam nem inclinaram os seus ouvidos, antes andaram cada um segundo a dureza do seu coração maligno.
Durante vinte e três anos… tem vindo a mim a palavra do Senhor, e, começando de madrugada, eu vo-la tenho anunciado; mas vós não escutastes. Também, começando de madrugada, vos enviou o Senhor todos os seus servos, os profetas, mas vós não escutastes, nem inclinastes os vossos ouvidos para ouvir…Viraram-me as costas, e não o rosto; ainda que eu, começando de madrugada, os ensinava, eles não deram ouvidos, para receberem a advertência.
Mesmo depois de Jerusalém ter sido destruída por Nabucodozor e o desventurado Jeremias, com relutância, Ter sido levado ao Egito, continuou ele a advertir a seus compatriotas judeus quanto ao juízo de Deus diante da perversidade do seu povo.
Todavia começando eu de madrugada, lhes tenho enviado os meus servos , os profetas, para lhes dizer: Não façais esta coisa abominável que aborreço. Mas eles não obedeceram, nem inclinaram os ouvidos…Este princípio de juízo foi endossado pelo próprio Senhor Jesus:
“Quem me rejeita e não recebe as minhas palavras tem quem o julgue; a própria palavra que tenho proferido, essa o julgará no último dia“.
E a base do argumento do apóstolo Paulo nos primeiros capítulos de sua cata aos Romanos é que todos os homens são culpados diante de Deus precisamente porque todos possuem algum conhecimento – os judeus por meio da lei de Deus escrita, e os gentios por meio da natureza e da lei de Deus em seus corações – mas ninguém viveu de acordo com esse conhecimento.
É um pensamento solene o de que, com o nosso anti-intelectualismo, tanto nos oponho como não nos incomodando com o ouvir a palavra de Deus, poderemos estar preparando para nós o juízo do Deus Todo-Poderoso.
Tentei mostrar como a racionalidade humana tem uma importância fundamental nas doutrinas básicas da criação, revelação, redenção e juízo. Deus nos constituiu como seres que pensam; Ele nos tratou como tais, comunicando-se conosco com palavras; ele nos renovou em Cristo e nos deu a mente de Cristo; e nos considerará responsáveis pelo conhecimento que temos.
Talvez se comece a ver agora o mal que é essa disposição anti-intelectualista, cultivada em alguns grupos cristãos. Não se trata de uma verdadeira devoção, absolutamente; mas sim de uma conformação a uma onda deste mundo, ou seja, trata-se de uma forma de mundanismo.
Subestimar a mente é soterrar doutrinas cristãs fundamentais. Deus nos criou seres racionais; será justo negarmos a humanidade que Ele nos deu? Deus conosco se comunicou; não procuraremos entender suas palavras? Deus renovou nossa mente por intermédio de Cristo; não faremos uso dela? Deus nos julgará por sua Palavra; não seremos prudentes, construindo nossa casa sobre essa rocha?
Em vista dessas doutrinas, não é de se surpreender a descoberta de quantas ênfases a Escritura – tanto no Velho como no Novo Testamento – coloca obtenção de conhecimento e sabedoria. No Antigo Testamento Deus se queixava de que seu povo se comportava como “filhos néscios, e não entendidos“, e declarava que “o meu povo está sendo destruído, porque lhe falta o conhecimento“. Toda a literatura de sabedoria do Velho Testamento lhes fora dada para enfatizar que apenas “os loucos aborrecem o conhecimento” e que somente o sábio é na verdade feliz, pois que tendo adquirido sabedoria, possui algo “melhor do que o ouro, e mais precioso do que pérolas“.
De igual forma, no Novo Testamento uma boa parte das instruções dos apóstolos foi dirigida no sentido de adquirirmos a sabedoria divina, aplicando-a numa vida santa. “Reunindo toda vossa diligência“, escreveu Pedro, “associai com a vossa fé a virtude; com a virtude , o conhecimento…” “Expomos sabedoria entre os experimentados“, escreveu Paulo, e prosseguiu censurando os coríntios pela imaturidade que tinham. Eram ainda como bebês, disse, que necessitavam de leite incapazes que eram de ingerir o alimento sólido da sabedoria do alto.
Dessa forma, o principal motivo das orações de Paulo com respeito às jovens igrejas e seus membros era que crescessem em conhecimento e que o Espírito Santo, o Espírito da verdade, exercesse o seu ministério entre eles e com eles.
Para os de Éfeso ele orou “que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele, iluminando os olhos do vosso entendimento, para saberdes qual é a esperança do seu chamamento, qual a riqueza da glória da sua herança nos santos, e qual a suprema grandeza do seu poder para com os que cremos…“.
Mais adiante, nesta mesma carta, ele orou que “sejais fortalecidos com poder, mediante seu Espírito no homem interior; e assim habite Cristo nos vossos corações, pela fé“, Por que? Eis a razão: “estando vós arraigados e alicerçados em amor, a fim de poderdes compreender, com todos os santos, qual é a largura, e o comprimento , e a altura, e a profundidade , e conhecer o amor de Cristo que excede todo entendimento , para que sejais tomados de toda plenitude de Deus“.
Pelos filipenses, orou: “que o vosso amor aumente mais e mais em pleno conhecimento e toda a percepção, para aprovardes as coisas excelentes e serdes sinceros e inculpáveis para o dia de Cristo, cheios de frutos de justiça…“.
Pelos colossenses, orou: “que transbordeis de pleno conhecimento da sua vontade, em toda a sabedoria e entendimento espiritual; a fim de viverdes de modo digno do Senhor , para o seu inteiro agrado, frutificando em toda boa obra , e crescendo no pleno conhecimento de Deus“.
A repetição dos termos conhecimento, sabedoria, percepção e entendimento é mesmo impressionante. Não resta dúvida que o apóstolo considerava tais pontos a própria base da vida cristã.
John Stott