Cartas a Um Novo Convertido
by Edward Dennett ☰ Paz Com Deus || Nosso Lugar Perante Deus || Nosso Lugar Neste Mundo || O Corpo de Cristo || A Mesa do Senhor || A Ceia do Senhor || Senhor Jesus Cristo no Centro || Verdadeiro Lugar de Adoração || Adoração || Ministério || A Palavra de Deus || Oração ☰
from Christian’s Friend
Estas cartas a um novo convertido estão sendo reimpressas, sem alteração, da revista Christian’s Friend (Amigo do Cristão). Elas foram originalmente escritas pelo editor para ajudar uma pessoa que havia se convertido há pouco tempo e que nunca tivera a oportunidade de receber um ensino oral. Considerando que os assuntos tratados são de interesse vital e permanente, são agora publicadas com a oração de que o Senhor possa Se agradar em abençoá-las para a edificação de muitas ovelhas de Seu rebanho.
Paz Com Deus
Você se queixa de não ter uma “paz firme” e que por isso está fazendo pouco progresso na verdade ou no conhecimento do Senhor. Sua reclamação, sinto admitir, não é algo incomum, mas brota de um conhecimento imperfeito do Evangelho e por você confundir duas coisas que são diferentes. Portanto espero, com a bênção do Senhor, ser capaz de ajudá-lo, isto se você estiver disposto a considerar cuidadosamente o que estou para escrever.
Seu caso me faz lembrar de outra pessoa com quem me deparei recentemente. “Você tem paz com Deus?”, perguntei. Sua resposta foi: “Nem sempre…”. Assim como no seu caso, confunde-se a paz estabelecida com o desfrutar dessa paz. Quero dizer, quando você está alegre no Senhor, diz: “Agora sim, eu tenho paz”; mas quando fica deprimido por causa de algum fracasso ou tribulação acha que sua paz foi-se embora.
Para prover uma solução para um sentimento assim, quero que considere atentamente quais são os fundamentos da paz com Deus. A alma tem muito a ganhar quando percebe com clareza que estes fundamentos não se encontram dentro, mas fora. Então poderá também enxergar que nossas experiências nada têm a ver com a questão.
Leia comigo Romanos 5.1. Ali vemos que, “sendo, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo”, e se examinarmos a ligação desta passagem com o contexto, aprenderemos, de uma vez por todas, qual é a origem da paz a que ela se refere. É este o contexto: Depois de haver explicado a maneira pela qual Abraão foi justificado diante de Deus, o apóstolo Paulo continua: “Ora não só por causa dele está escrito, que lhe fosse tomado em conta, mas também por nós, a quem será tomado em conta; os que cremos n’Aquele que dos mortos ressuscitou a Jesus nosso Senhor; O qual por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa justificação. Sendo pois justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 4.23-25; 5.1).
Esta passagem deixa bem claro que o único fundamento de paz com Deus está na obra de Cristo. Na realidade, após o fundamento haver sido assim colocado, Deus declara que todo aquele que crê em Seu testemunho a esse respeito, crê que Ele intercedeu em graça para providenciar tudo o que era necessário para a salvação do pecador. E declara ainda que aquele que assim crê em Deus está justificado e, por estar justificado, já tem a paz que foi feita pela morte de Cristo – já entra na posse dela. Mas, deve ser observado que está escrito que Cristo foi entregue por nossas ofensas, e que “ressuscitou para nossa justificação” (Rm 4.25). Ou seja, a ressurreição de Cristo é a prova final que demonstrou como foi completa a Sua obra; a evidência de que os pecados pelos quais Ele morreu, e sob os quais desceu até à morte, foram-se para sempre.
A ressurreição de Cristo é o testemunho de que todas as exigências de Deus que recaíam sobre nós foram plenamente atendidas e satisfeitas. Pois se Ele foi entregue por nossas ofensas, e deixou o túmulo, tendo sido ressuscitado da morte, as “ofensas” sob as quais Ele padeceu a morte foram-se para sempre, caso contrário Ele continuaria na sepultura. Portanto, a ressurreição de Cristo é a expressão clara e enfática da satisfação de Deus com a expiação que foi feita na cruz.
Fica assim mais que evidente, como já foi dito, que o único fundamento de paz com Deus está na morte de Cristo. Isto é repetido muitas e muitas vezes nas Escrituras. Em Romanos 5.9 lemos que somos “justificados pelo Seu sangue”; e em Colossenses 1.20 diz que “havendo por Ele feito a paz pelo sangue da Sua cruz”. Portanto, é Cristo (e não nós) Quem faz a paz com Deus, e Ele já a fez por meio de Sua morte como sacrifício – a morte que cumpriu todas as exigências que Deus fazia ao pecador, e que satisfez tudo aquilo que Ele com justiça poderia requerer do homem, glorificando ainda a Deus em cada atributo de Seu caráter. É por isso que Deus agora pode rogar ao pecador que se reconcilie com a Sua Pessoa. “Rogamo-vos pois da parte de Cristo que vos reconcilieis com Deus” (2 Cor 5.20).
Depois de haver explicado tudo isso, é necessário fazer à alma uma importante pergunta: Você crê no testemunho de Deus a respeito do Seu Filho e da obra que Ele consumou? Se houver qualquer dificuldade para responder a esta pergunta, então nenhum progresso poderá ser feito. Todavia um teste simples ajudará a elucidar a verdade. Mais uma pergunta, e tenho certeza de que você perceberá claramente a verdade: Em que você se baseia para pensar que Deus o aceita? Será que é em si próprio, em suas obras, seus méritos ou no que merece? Se assim for, então você não está descansando na obra de Cristo. Porém, se você reconhece que, por natureza, é um pecador perdido e arruinado, e confessa que não põe a sua esperança em coisa alguma além de Cristo e naquilo que Ele fez, então você pode humildemente dizer: “Pela graça de Deus eu creio no Senhor Jesus Cristo”.
Supondo, então, que você possa falar dessa maneira, esteja certo de que a questão de sua paz com Deus está resolvida para sempre e nada poderá privá-lo dela – nenhuma mudança, nenhuma experiência diversa; pois ela é sua imutável e inalienável possessão. As Escrituras dizem que, “sendo pois justificados pela fé” (e você diz que crê), “temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5.1). Todo crente – no exato momento em que crê – é justificado, libertado de toda forma de culpa, e feito justiça de Deus em Cristo. “Àquele que não conheceu pecado, (Deus) O fez pecado por nós; para que n’Ele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Cor 5.21). E, sendo justificado, o crente tem paz – não paz em si mesmo, é importante ressaltar, mas paz por meio de nosso Senhor Jesus Cristo. Isto é, a paz que agora pertence ao crente é aquela paz com Deus que Cristo fez por meio de Seu sacrifício expiatório. E, uma vez que essa é a paz que Ele fez, o que ocorreu fora de nós, ela nunca poder variar ou ser alterada; ela é tão estável e duradoura quanto o trono de Deus; pois, como já vimos, é uma paz que Cristo fez pela Sua cruz; e o que Ele fez não poderá nunca ser desfeito, e é, portanto, uma paz eterna. E é esta paz, permanente, firme e eterna, que pertence a cada crente no Senhor Jesus.
Quando você se queixa de que não tem uma paz firme, na verdade deveria dizer que não está desfrutando de uma paz firme, e que seus sentimentos são instáveis. Por isso pode ser bom perguntar como é que o crente pode desfrutar de uma paz constante em sua alma. A resposta é muito simples: Pela fé. Se eu creio no testemunho de Deus de que a paz me pertence pela fé no Senhor Jesus, devo então entrar imediatamente no gozo dessa paz.
Isto pode ficar mais simples por meio de um exemplo. Suponha que alguém lhe traga a notícia de que um parente seu lhe deixou uma herança milionária. O efeito que isso produzirá em sua mente irá depender totalmente de você acreditar ou não naquilo que está ouvindo. Se você duvidar da veracidade daquela notícia, não haverá nenhuma reação a ela; mas se, por outro lado, ficar totalmente comprovado ser verdade, e você a receber de fato, então dirá imediatamente, “A herança é minha”. Se você crê no testemunho de Deus de que foi feita paz pelo sangue de Cristo, nenhum sentimento de depressão, nenhum pensamento de ser indigno disso, nenhuma circunstância, qualquer que seja, poderá perturbar sua segurança a esse respeito, pois você verá que ela depende inteiramente daquilo que outro fez por você. Portanto, é necessário repousar com inabalável confiança na Palavra de Deus para poder desfrutar de uma paz firme.
A causa de tanta incerteza a respeito deste assunto advém principalmente de se olhar para dentro ao invés de olhar para fora, para Cristo – de olharmos para dentro em busca de algo que nos dê confiança de que esteja ocorrendo uma obra verdadeira de graça na alma, ao invés de olharmos para fora para percebermos que o único fundamento sobre o qual uma alma pode descansar diante de Deus é o precioso sangue de Cristo. A consequência é que, ao perceber a corrupção, este mal da carne, a alma começa a ter dúvidas e a cogitar se porventura não foi enganada. Satanás começa, dessa forma, a enredar o nosso coração e a semeá-lo com dúvidas e temores, na esperança de fazer com que duvidemos de Deus; isso quando não nos lança em total desespero. O modo eficaz de frustrarmos seus ataques neste sentido é apelando para a Palavra escrita de Deus. Em resposta a qualquer sugestão maligna devemos fazer como nosso bendito Senhor quando foi tentado: “Está escrito” (Mt 4.4). Então, logo descobriremos que nada pode impedir que desfrutemos daquela paz com Deus que foi feita pelo precioso sangue de Cristo, e que passou a nos pertencer tão logo nós cremos.
Estando resolvida a questão do fundamento, e deixando de ocupar-se consigo mesmo, você encontrará descanso para sua mente e para sua alma – descanso suficiente para meditar sobre a verdade conforme é revelada nas Escrituras. “Desejai afetuosamente, como meninos novamente nascidos, o leite racional, não falsificado, para que por ele vades crescendo” (1 Pe 2.2). Quero dizer ainda que se você estudar a Palavra na presença do Senhor, será guiado por ela a uma intimidade de comunhão cada vez maior com Ele, e à medida que for descobrindo a infinita glória e perfeição de Cristo que nos são reveladas, e por nós assimiladas, por meio do Espírito de Deus, suas afeições serão atraídas em um sempre crescente fervor, e seu coração, agora satisfeito, irá transbordar em adoração aos pés d’Aquele que morreu por você. Deste modo o seu lamento se transformará em um hino de louvor.
Nosso Lugar Perante Deus
Estou um pouco preocupado em pensar que você, que agora sabe que tem paz com Deus, e que deveria estar contente, venha a se acomodar, achando que essa bênção é tudo o que Deus proveu para você em Cristo. Muitos caem neste engano, e por conseguinte nunca compreendem a posição na qual foram introduzidos.
Permita-me, então, lembrá-lo de que, apesar da grandiosidade dessa bênção, a qual você dever estar desfrutando agora, os pensamentos e desejos de Deus a seu respeito vão infinitamente além disso. Posso tornar isto mais simples chamando a sua atenção mais uma vez para o fundamento. A base de tudo encontra-se na cruz de Cristo, pois foi ali que Ele pôde satisfazer, em nosso favor, tanto os requisitos exigidos pela santidade de Deus, como também glorificá-Lo em cada atributo de Seu caráter. É a isto que o Senhor Jesus Se referia quando disse: “Eu glorifiquei-Te na Terra, tendo consumado a obra que Me deste a fazer” (Jo 17.4). E foi com base nisso, como já tendo resolvido uma demanda de Deus, que Ele orou: “E agora glorifica-Me Tu, ó Pai, junto de Ti mesmo, com aquela glória que tinha Contigo antes que o mundo existisse” (Jo 17.5).
Portanto, como você poderá perceber, Deus mostra a importância que deu à obra consumada na cruz, pelo fato de haver feito Cristo assentar à Sua direita. Podemos dizer ainda que nada menos do que isso poderia ter sido considerada uma resposta adequada à exigência de Deus que Cristo cumpriu através de Sua obra consumada. E certamente nada menos poderia ter satisfeito o coração de Deus; pois quem poderá jamais imaginar o Seu gozo ao intervir levantando Cristo de entre os mortos, colocando-O à Sua direita, e dando-Lhe, ainda, “um Nome que é sobre todo o nome”? “Pelo que também Deus O exaltou soberanamente, e Lhe deu um Nome que é sobre todo o nome; para que ao Nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai” (Fp 2.9-11).
Observe, então, com muito cuidado, estas três coisas: Primeiro, o lugar agora ocupado por Cristo na glória é fruto de Sua obra redentora; segundo, Cristo ocupa esse lugar como Homem; e, por conseguinte, terceiro, Ele está ali em favor dos que são Seus. As consequências são que Deus nos levará para o mesmo lugar; que a glória de Deus está empenhada em dar aos crentes o mesmo lugar de aceitação perante Si; e – isto mesmo! – que o Seu coração se compraz em reconhecer, também deste modo, a obra e o valor do Seu Filho amado. Portanto, todo crente encontra-se agora diante de Deus em virtude da eficácia da obra de Cristo, desfrutando ali de toda a aceitação que a própria Pessoa de Cristo desfruta. Deste modo, o crente desfruta de uma posição de perfeita proximidade de Deus, e é ainda objeto da perfeita bondade de Deus; pois ele é introduzido – e efetivamente está – na presença de Deus em Cristo Jesus.
Agora gostaria de levar você a examinar algumas passagens que comprovam plenamente as afirmações acima. O versículo que vem logo em seguida àquele que ocupou nossa atenção na última carta encaixa-se perfeitamente aqui. “Sendo pois justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo”; e então o apóstolo continua: “Pelo qual também temos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos na esperança da glória de Deus” (Rm 5.1-2). Dessa forma, quando cremos, não somente temos paz com Deus, mas temos também acesso, por meio de Cristo, a esta graça na qual estamos firmes. Isto é, somos introduzidos no completo favor de Deus – transportados para a sempre radiante luz da Sua presença, onde podemos nos regozijar na esperança da glória de Deus – pois tudo já foi estabelecido e assegurado.
Por meio da fé em Cristo – e fé n’Aquele que ressuscitou Jesus nosso Senhor de entre os mortos – somos levados a uma posição tão perfeita e tão segura que, apesar das tribulações, dificuldades e perigos de nosso caminho por este deserto, podemos nos regozijar na esperança – na firme e inabalável perspectiva – da glória de Deus. Poderemos sofrer tribulações, como o apóstolo segue dizendo em sua carta, mas, se assim ocorrer, podemos nos gloriar até nas tribulações, “sabendo que a tribulação produz a paciência, e a paciência a experiência, e a experiência a esperança. E a esperança não traz confusão, porquanto o amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5.3-5).Foi esse o amor que Deus demonstrou ter, e nos deu; foi nesse mesmo amor que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores. E se, sendo nós ainda pecadores, nos reconciliou com Deus pela morte de Seu Filho, quanto mais somos levados a concluir que seremos salvos – salvos completamente, inclusive com a redenção de nosso corpo (Rm 8.23) – por Sua vida, a vida do Salvador ressurreto e assentado à direita de Deus. E não apenas isto, mas também nos regozijamos em Deus, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo, por meio de Quem recebemos agora a reconciliação (Rm 5.3-11). Sendo assim, temos como nossa presente porção o amor de Deus derramado em nossos corações, nos regozijamos n’Ele, ocupamos perante Ele um lugar de perfeito favor e nos gloriamos na esperança da glória de Deus.
Mas isso ainda não é tudo. Na mesma epístola, não apenas somos ensinados que nossa culpa se foi para sempre no exato momento em que cremos em Cristo, que somos justificados, etc., mas também nos é mostrado que somos totalmente transportados, por meio da morte e ressurreição de Cristo, a um novo lugar – um lugar fora de nossa carne, pois estamos “em Cristo” diante de Deus. A parte seguinte da epístola ou carta de Paulo, começando no versículo 12 deste capítulo e terminando no capítulo 8, fala deste assunto. Você irá notar, em primeiro lugar, que tudo tem início ou a partir de Adão ou a partir de Cristo, as duas cabeças; o primeiro homem Adão, e o segundo homem Cristo (Rm 5.12-21). A consequência é que todos estão, ou em Adão, ou em Cristo, e é quase desnecessário dizer que a diferença entre estarmos em Adão ou em Cristo depende se ainda somos incrédulos ou se já somos crentes. Se, pela graça de Deus, somos crentes, então estamos em Cristo. Sendo assim, há certas consequências benditas que desejo indicar rapidamente, deixando então que você fique à vontade para meditar mais neste assunto.
A primeira coisa que o apóstolo nos lembra é que a posição em que nos encontramos – a posição que assumimos por meio de nosso batismo – demonstra que professamos estar mortos com Cristo, e isto, como pode ser observado em Colossenses 3.3, aplica-se a todos os crentes diante de Deus. Se você ler cuidadosamente o capítulo 6 de Romanos, irá logo perceber que o apóstolo incita a nossa responsabilidade sobre este fundamento. Portanto, o meu velho eu saiu da vista de Deus assim como aconteceu com os meus pecados, caso contrário o apóstolo não poderia ter afirmado, como o fez em Romanos 6.11: “Assim também vós considerai-vos como mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor”.
No capítulo seguinte ele ensina que “vós estais mortos para a lei pelo corpo de Cristo” (Rm 7:4), e isto, após discutir o efeito da aplicação da lei a alguém despertado pelo Espírito de Deus, abre o caminho para descortinar a presença constante do pecado na natureza e a total incompatibilidade entre a nova e a velha natureza (Rm 7:13-25), o que nos leva a uma declaração completa da verdade com respeito ao crente. “Portanto”, continua ele, “agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1), tão completa é a libertação, assim como o perdão, que temos em Cristo. “Vós, porém, não estais na carne, mas no espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós” (Rm 8.9). Ele nos mostra, deste modo, que a posição do crente não é na carne, não no primeiro homem – Adão – mas o crente permanece diante de Deus em um lugar que é caracterizado como estando no Espírito. Isto é, o Espírito, e não a carne, caracteriza a existência do crente diante de Deus, pois na morte de Cristo a natureza má do crente também foi julgada; pois “Deus, enviando o Seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne” (Rm 8.3). Assim, após apontar mais essas benditas consequências de sermos habitados pelo Espírito, o apóstolo declara que “todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados por Seu decreto. Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de Seu Filho; a fim de que Ele seja o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8.28-29). Então ele pergunta: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8.31), ao que responde lembrando que Deus, ao entregar o Seu Filho à morte por nós, provou-nos que também nos dará livremente todas as coisas. Isso leva o apóstolo à triunfante conclusão de que nada pode servir de acusação contra os eleitos de Deus; que se o próprio Deus os justificou, nada poderá condená-los; que se Cristo morreu e ressuscitou, estando bem à direita de Deus para interceder por nós, nada “nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm 8.31-39).
Portanto seria um grave erro você parar no capítulo 5 de Romanos, se quisesse conhecer a plenitude da graça de Deus e o tremendo caráter da salvação que Ele concede; pois a menos que leiamos até o capítulo 8 de Romanos, nunca saberemos o que é verdadeiro para nós e a nosso respeito diante de Deus – a completa e perfeita libertação que cada crente tem em Cristo, mesmo que ignore isso. É também da maior importância que você possa notar que essas bênçãos que foram assinaladas não estão associadas a nossos esforços para consegui-las. Tudo o que mostrei é a porção que possui todo aquele que clama “Aba, Pai”; a porção que pertence a cada recém-nascido em Cristo, quer ele saiba ou não.
Há ainda muita coisa além disso, e se você der uma olhada em Efésios eu lhe mostrarei, em poucas palavras – pois não tenho intenção de prolongar esta carta – o pleno caráter do lugar que o crente ocupa diante de Deus. Olhe, em primeiro lugar, para as maravilhosas expressões do primeiro capítulo: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, O qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo; como também nos elegeu n’Ele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante d’Ele em caridade [amor]; e nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para Si mesmo, segundo o beneplácito de Sua vontade, para louvor e glória da Sua graça, pela qual nos fez agradáveis a Si no Amado” (Ef 1.3-6). Preste atenção em cada uma das sentenças que coloquei em realce e você verá como é perfeito o nosso lugar diante de Deus. Pois Ele nos abençoou com todas as bênçãos espirituais…; e Seu propósito era que fôssemos santos e irrepreensíveis diante d’Ele em amor; e nos fez agradáveis a Si no Amado.
No capítulo seguinte (Ef 2) temos a maneira como fomos introduzidos nos lugares celestiais. “Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo Seu muito amor com que nos amou, estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois salvos), e nos ressuscitou juntamente com Ele e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus” (Ef 2.4-6). Aqui somos considerados como havendo estado mortos em pecados; Cristo é visto nesta epístola aos Efésios como tendo descido àquela condição – morto – como de fato ocorreu, no lugar do pecador. Deus, sendo rico em misericórdia e agindo segundo o Seu próprio coração de amor veio, em graça, e nos vivificou juntamente com Cristo. E então nos ressuscitou e nos fez assentar juntamente com Cristo nos lugares celestiais, o que significa que transportou-nos à Sua própria presença. Portanto, o nosso lugar atual – mesmo enquanto ainda estamos em nosso corpo – é agora nos lugares celestiais em Cristo Jesus. Nada menos do que isso expressa a plenitude da Sua graça ou satisfaz o Seu coração.
Há mais uma passagem que gostaria de trazer a você antes de terminar: “Qual Ele é, somos nós também neste mundo” (1 Jo 4.17). Assim como Cristo é, ali à direita de Deus – a alegria e o gozo do coração de Deus – ali também em toda a perfeição da Sua Pessoa e em todo o doce aroma do Seu sacrifício, assim também somos nós neste mundo; pois estamos firmados não em nós mesmos, mas em Cristo, sendo, por esta razão, dotados de toda a aceitação e odor suave que Ele mesmo tem diante de Deus.
Que o Senhor nos conceda um maior reconhecimento do lugar no qual, por Sua inexprimível graça, fomos introduzidos em Cristo Jesus.
Nosso Lugar Neste Mundo
Em minha última carta procurei mostrar a você nosso lugar – como crentes – diante de Deus; e agora gostaria de dirigir sua atenção para nosso lugar aqui neste mundo; e veremos, creio eu, que isto também está ligado a Cristo. Assim como é certo que estamos identificados com Cristo diante de Deus no que se refere à nossa posição, estamos também identificados com Cristo diante do mundo. Em outras palavras, somos colocados em Seu lugar aqui, assim como estamos n’Ele diante de Deus; e tenho certeza de que seria de muito proveito se tivéssemos esta verdade continuamente diante de nossa alma. Há, porém, dois aspectos que se referem ao nosso lugar nesta Terra e é importante que ambos sejam bem compreendidos. O primeiro aspecto está relacionado com o mundo e o segundo com o “arraial”, isto é, o cristianismo organizado de nossos dias, que nesta dispensação tomou o lugar do judaísmo como testemunho de Deus. Leia Romanos 11 e compare com o capítulo 13 de Mateus.
1. Nosso lugar em relação ao mundo. O Senhor Jesus, dirigindo-se aos judeus, disse: “Vós sois de baixo, Eu sou de cima; vós sois deste mundo, Eu não sou deste mundo” (Jo 8.23). Mais tarde, quando apresentava ao Pai os que eram Seus, disse: “Não são do mundo, como Eu do mundo não sou” (Jo 17.16), e se você ler do versículo 14 ao 19 verá que Ele coloca Seus discípulos na posição que Ele mesmo ocupa perante o mundo, do mesmo modo como, do versículo 6 ao 13, Ele os coloca na mesma posição que Ele ocupa diante do Pai. Você deve notar ainda que os discípulos ocupam a posição do Senhor neste mundo porque não são daqui, assim como o Senhor não era, pois após terem nascido de novo não pertencem mais a este mundo. Por isso Ele menciona continuamente que Seus discípulos teriam de enfrentar o mesmo ódio e perseguição que Ele vinha experimentando. Assim, dando um exemplo, Ele diz: “Se o mundo vos aborrece, sabei que, primeiro do que a vós, Me aborreceu a Mim. Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu, mas, porque não sois do mundo, antes Eu vos escolhi do mundo, por isso é que o mundo vos aborrece. Lembrai-vos da palavra que vos disse: Não é o servo maior do que o seu senhor. Se a Mim Me perseguiram, também vos perseguirão a vós; se guardaram a Minha palavra, também guardarão a vossa” (Jo 15.18-20). O apóstolo João indica ainda o total contraste entre os crentes e o mundo, quando diz: “Sabemos que somos de Deus, e que todo o mundo está no maligno” (1 Jo 5.19).
Há, porém, muito mais do que nos é mostrado nestas importantes passagens. Cada crente é visto por Deus como tendo morrido e ressuscitado com Cristo (Rm 6; Cl 3.1-3). Do ponto de vista de Deus, o crente é assim transportado, através da morte e ressurreição de Cristo, completamente para fora do mundo, da mesma forma como Israel foi levado para fora do Egito através do Mar Vermelho. Portanto ele não pertence mais ao mundo, embora seja enviado ao mundo como representante de Cristo (Jo 17.18). Por isso o apóstolo Paulo podia dizer, enquanto estava ativo no serviço para Cristo neste mundo, “longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (Gl 6.14). Pela cruz de Cristo ele viu que o mundo já estava julgado (Jo 12.31), e pela aplicação da cruz em si próprio ele considerava-se como morto – crucificado para o mundo – de modo a deixar bem clara a separação que existia entre si mesmo e o mundo; uma separação tão completa como a que é ocasionada pela morte.
De tudo isso podemos ver que o cristão, embora estando no mundo, não pertence a ele – Ele não é do mundo no mesmo sentido em que Cristo não pertencia ao mundo. O crente pertence a uma outra esfera – pois se alguém está em Cristo é nova criatura; como já foi visto, ele foi transportado perfeitamente limpo para fora deste mundo por meio da morte e ressurreição de Cristo. Por isso o cristão deve estar completamente separado do mundo; não deve conformar-se a ele em seu espírito, hábitos, conduta, modo de andar, enfim, em tudo o crente deve mostrar que não é deste mundo (Gl 1.3-4 e Rm 12.2). E deve, ainda, pela aplicação da cruz, manter-se como crucificado para o mundo. Nenhuma atração ou assimilação pode existir entre duas coisas que já foram julgadas. Portanto, o crente está no mundo no lugar de Cristo, isto é, está aqui por Cristo e é identificado com Cristo. Consequentemente deve testemunhar de Cristo, andar como Cristo andou, e esperar receber o mesmo tratamento que foi dado a Ele (Fp 2.15 e 1 Jo 2.6). Não é que esperamos ser crucificados como Cristo foi, mas se formos fiéis iremos encontrar no mundo o mesmo espírito de oposição que Ele encontrou. Na verdade, a medida de semelhança de Cristo que trouxermos em nossa vida será a medida da nossa perseguição. E pode-se dizer que o fato dos crentes encontrarem hoje tão pouca oposição do mundo demonstra o quão pouco estão separados dele.
Antes de passar para o outro aspecto deste assunto, não posso deixar de rogar-lhe insistentemente que rompa todo e qualquer vínculo que o esteja ligando moralmente com este mundo. Não é preciso muito discernimento para se perceber que o espírito deste mundo, o mundanismo, está introduzindo-se sorrateiramente, porém com rapidez, nas igrejas ou assembleias e manifestando-se com jactância até mesmo na mesa do Senhor. Que golpe e que desonra para Aquele, cuja morte nos reunimos para recordar! E que solene advertência recai sobre os santos para que nos humilhemos perante Deus, buscando renovada graça a fim de sermos mais fervorosos e mais separados do mundo; para que fique evidente que pertencemos a Cristo, a Quem o mundo rejeitou, lançou fora e crucificou! Quantos de nós têm o espírito de Paulo, que desejava a “comunicação de Suas aflições, sendo feito conforme à Sua morte” (Fp 3.10), tendo em vista o Cristo glorificado como objeto de sua afeição e alvo de todas as suas aspirações? Que o Senhor possa restaurar em nós, e em todos os Seus amados santos, mais dessa devoção a Ele, em completa separação deste mundo.
2. Nosso lugar em relação ao “arraial”. Na epístola aos Hebreus, lemos: “Porque os corpos dos animais, cujo sangue é, pelo pecado, trazido pelo sumo sacerdote para o santuário, são queimados fora do arraial. E por isso também Jesus, para santificar o povo pelo Seu próprio sangue, padeceu fora da porta. Saiamos pois a Ele fora do arraial, levando o Seu vitupério” (Hb 13.11-13). Há duas coisas bem evidentes nesta passagem – o sangue da oferenda pelo pecado era levado para dentro do santuário, e os corpos dos animais que haviam sido sacrificados eram queimados fora do arraial. O apóstolo mostra que estas duas coisas tinham seus correspondentes na morte de Cristo, que é o antítipo daqueles sacrifícios. Temos, assim, a dupla posição ocupada pelo crente – seu lugar diante de Deus no interior do santuário, para onde o sangue era levado, e seu lugar na Terra fora do arraial ou acampamento, onde Cristo sofreu. Em outras palavras, como já foi explicado, se estamos em Cristo diante de Deus, identificados com Ele ali em todo o aroma de Sua própria aceitação, estamos também identificados com Ele sobre a Terra, ocupando o Seu lugar de vergonha, reprovação e rejeição. O lugar do crente sobre a Terra é fora do arraial; como diz o autor desta epístola: “Saiamos pois a Ele fora do arraial, levando o Seu vitupério” (Hb 13.13).
Talvez você esteja perguntando: “O que é o arraial?”. Na passagem que acabei de citar, fica claro, a partir do contexto todo, que trata-se do judaísmo. A que, então, se aplicaria isso em nossos dias? O judaísmo provinha de Deus e ocupava o lugar de testemunho d’Ele neste mundo. O judaísmo falhou e foi posto de lado depois do Pentecostes, quando, diante da pregação dos apóstolos, ocorreu a rejeição final de Cristo. O cristianismo tomou então o lugar do judaísmo como o testemunho de Deus neste mundo, conforme nos ensina o capítulo 11 de Romanos. Portanto, o “arraial” em nossos dias é o cristianismo organizado, a igreja professa, que inclui todas as denominações, desde o corrupto Catolicismo Romano até as menores seitas do Protestantismo. É possível que, neste ponto, você pergunte: “Baseados em quê somos exortados a sair fora desse arraial?” Baseados em sua completa ruína como testemunho de Deus sobre a Terra. “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas” (Ap 2.11). É nossa responsabilidade – e até mesmo nossa segurança – analisarmos tudo o que se diz como vindo de Deus, usando para isso a Palavra escrita. Se usarmos o mesmo critério para provar todas as denominações, todas elas se mostrarão culpadas de fracasso e desobediência. Portanto, nada mais resta ao crente que deseja atuar de acordo com o pensamento de Deus senão tomar o seu lugar fora de tudo isso, apartado da confusão e dos erros de nossos dias maus, seguindo adiante com os que estão congregados simplesmente ao nome de Cristo em obediência à Sua Palavra. O capítulo 33 de Êxodo é muito instrutivo a esse respeito. Quando Moisés desceu do monte (capítulo 32), viu que todo o arraial havia caído em idolatria, e depois de haver retornado de sua intercessão a favor de Israel, trouxe uma “má notícia” para o povo (Ex 33.4). Então, “tomou Moisés a tenda, e a estendeu para si fora do arraial, desviada longe do arraial, e chamou-lhe a tenda da congregação: e aconteceu que todo aquele que buscava o Senhor saiu à tenda da congregação, que estava fora do arraial” (Ex 33.7). Moisés agiu assim porque agia de acordo com o pensamento do Senhor em vista do fracasso do povo, e vemos nesta cena um exemplo moral para nossos dias. Peço a você que considere este assunto cuidadosamente.
Creio que já escrevi o suficiente para levá-lo a compreender o lugar do crente neste mundo. Por um lado deve estar em separação do mundo e por outro lado deve estar fora do arraial. Tomar uma posição assim irá fazer com que sejamos odiados pelos que estão no mundo e reprovados pelos que permanecem no arraial. Mas, se assim acontecer, estaremos ainda mais identificados com nosso bendito Senhor. Em Hebreus 13.13 isto é chamado de “Seu vitupério”, que significa vergonha ou desonra. Que jamais desejemos fugir do ódio do mundo, nem evitar a vergonha fora do arraial, mas que possamos nos regozijar quando formos considerados dignos de padecer afronta pelo nome de Jesus! (Hb 11.38; At 5.41).
O Corpo de Cristo
Existe outra questão, que agora exige sua atenção, relacionada ao corpo de Cristo. No dia de Pentecostes ocorreu algo completamente novo no desenrolar dos desígnios de Deus – a vinda do Espírito Santo. Até aquele período o Espírito Santo agia neste mundo, pois em todas as dispensações passadas houve almas vivificadas e “homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo” (2 Pe 1.21). Mas até o Senhor Jesus ter sido glorificado à direita de Deus, o Espírito Santo, como uma Pessoa divina, não estava neste mundo. Isto não se trata de uma nova teoria, mas é um assunto claramente estabelecido nas Escrituras. Assim, quando no grande dia da Festa dos Tabernáculos, “Jesus pôs-se em pé, e clamou, dizendo: Se alguém tem sede, venha a Mim, e beba. Quem crê em Mim, como diz a Escritura, rios d’água viva correrão do seu ventre”, é explicado que falava “do Espírito que haviam de receber os que n’Ele cressem; porque o Espírito Santo ainda não fora dado, por ainda Jesus não ter sido glorificado” (Jo 7.37-39). O próprio Senhor acrescentou no mesmo sentido: “Todavia digo-vos a verdade, que vos convém que Eu vá; porque, se Eu não for, o Consolador não virá a vós” (Jo 16.7; 14.16-17, 26; 15.26). Passando mais adiante, em Atos 2, encontramos o registro histórico da descida do Espírito de Deus: “E, cumprindo-se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar; e de repente veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem” (At 2.1-4). Assim se cumpriram as palavras que o Senhor falou aos Seus discípulos após a Sua ressurreição: “vós sereis batizados com o Espírito Santo; não muito depois destes dias… Mas recebereis a virtude [ou poder] do Espírito Santo, que há de vir sobre vós” (At 1.5, 8).
Foi pela descida do Espírito Santo que a Igreja foi formada – a Igreja de Deus conforme é encontrada no Novo Testamento – e desde então ela existe em dois aspectos: como a casa de Deus (1 Tm 3.15) e como o corpo de Cristo (Ef 1.22-23). É o segundo aspecto da Igreja que desejo trazer diante de você nesta carta, e há dois versículos que nos capacitarão a compreender isto. Em Colossenses 1.18 lemos que “Ele é a cabeça do corpo da Igreja”; e em 1 Coríntios 12.13, “Pois todos nós fomos batizados em um Espírito formando um corpo, quer judeus, quer gregos, quer servos, quer livres”. Isto parece indicar que no dia de Pentecostes, pela vinda do Espírito Santo, os crentes foram batizados em um corpo, e que assim foi formado o corpo de Cristo. Mas, permita-me perguntar, de que, ou de quem, é composto o corpo de Cristo? “Porque, assim como o corpo é um, e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos, são um só corpo, assim é Cristo também” (1 Cor 12.12). O termo “Cristo”, conforme é usado aqui, inclui o próprio Cristo e todos os membros do corpo, vistos como um todo. Portanto o corpo de Cristo inclui a Ele próprio, como a Cabeça, e a todos os crentes sobre a face da Terra, nos quais o Espírito Santo veio habitar. Como consequência, cada filho de Deus que pode clamar “Aba, Pai” é um membro do corpo de Cristo e, por esta razão, o apóstolo diz que “somos membros do Seu corpo” (Ef 5.30).
Este é um ponto para o qual desejo chamar sua atenção, pois um grande número dos amados filhos de Deus ignoram que ocupam esta maravilhosa e privilegiada posição. Por ocasião de uma visita que fiz há algum tempo a um crente prestes a morrer, perguntei-lhe: “Sabe que você é um membro do corpo de Cristo?”. Sua resposta foi: “Não, jamais ouvi coisa semelhante”. Tão cedo não vou me esquecer do gozo que expressavam as feições daquele moribundo à medida que eu ia expondo as Escrituras que falam deste assunto. Permita-me, então, pedir-lhe que considere o que significa ser um membro do corpo de Cristo. Primeiro, e o mais importante, nos ensina que estamos unidos a Cristo – a Cristo como Homem glorificado à direita de Deus. E uma vez que Ele é a cabeça do corpo, cada membro está de uma forma vital, e podemos até mesmo dizer organicamente, ligado a Ele. “O que se ajunta com o Senhor é um mesmo espírito” (1 Cor 6.17). Veja, portanto, até onde vai a graça de nosso Deus! Se não bastasse o fato de nossos pecados terem sido perdoados; de estarmos justificados pela fé; de termos sido introduzidos no claro e perfeito favor de Deus; de estarmos ressuscitados com Cristo; de estarmos assentados n’Ele nos lugares celestiais; mesmo possuindo tanto, a despeito de estarmos cercados de fraqueza e enfermidade neste mundo, nos é dado saber que estamos unidos a Cristo na glória! Podemos elevar nossos olhos a Ele na glória, onde Ele está, e dizer com toda a segurança: “Somos membros do Seu corpo, da Sua carne, e dos Seus ossos!” (Ef 5:3).
Se os crentes conhecessem esta verdade em poder, como poderia haver discussões quanto à certeza da nossa salvação aqui e agora? E, quando tivéssemos que enfrentar novas provas ou perigos, cada vez maiores, que força nos daria se tivéssemos sempre em mente esta verdade: Estamos unidos a Cristo! E, oh! que revelação isto nos dá da proximidade e intimidade que possuímos com Ele! Pois nos foi dado conhecer que somos um com Ele próprio; que tudo o que nos atinge, atinge a Ele também (At 9.4). Estamos, portanto, inseparavelmente, indissoluvelmente ligados a Ele para todo o sempre.
Em segundo lugar, nos é ensinado que sendo membros do corpo de Cristo, somos também membros uns dos outros, e é essencial que aprendamos esta verdade se quisermos entender o caráter de nosso parentesco com todos os filhos de Deus. Assim, o mesmo vínculo que nos une a Cristo, nos une também a todos os crentes; pois o mesmo Espírito que nos une a Cristo nos uniu também uns aos outros. É isto que significa a “unidade do Espírito” (Ef 4.3), ou seja, a unidade de todos os membros de Cristo, que foi formada nesta Terra pelo Espírito de Deus.
Se agora você abrir em 1 Coríntios 12, verá o maravilhoso caráter do nosso mútuo parentesco, decorrente do fato de sermos membros uns dos outros. Você pode ler do versículo 12 ao 27 para sua meditação e enquanto isso assinalarei os importantes pontos que são ali ensinados. Em primeiro lugar, é deixado bem claro que “o corpo não é um só membro, mas muitos”; e que cada membro tem o seu próprio lugar no corpo. Sendo assim, o apóstolo pergunta: “Se o pé disser: porque não sou mão, não sou do corpo; não será por isso do corpo?”. E então ele toma o cuidado de mostrar que o lugar peculiar que cada um ocupa no corpo é o resultado do ato soberano de Deus, além de nos exortar a não nos esquecermos que, embora sendo muitos membros, há um só corpo (1 Cor 12.14-20). Como seria fácil para alguém ampliar este assunto acrescentando seus próprios pensamentos, se não tivéssemos mais nenhuma instrução a respeito. Mas quero apenas chamar sua atenção aqui para dois pontos: nossa obrigação ou responsabilidade em reconhecer, primeiramente, a diversidade de membros (14) e, em segundo lugar, a unidade do todo (29). E me atrevo a acrescentar que é impossível guardar uma coisa ou outra, a menos que você esteja congregado fora do arraial, separado de todas as denominações e sistemas humanos, para o nome de Cristo somente. Em segundo lugar, está claro que cada membro do corpo necessita de todos os outros membros, pois “o olho não pode dizer à mão: não tenho necessidade de ti; nem ainda a cabeça aos pés: não tenho necessidade de vós”, e o apóstolo continua nos ensinando que “Deus assim formou o corpo… para que não haja divisão no corpo, mas antes tenham os membros igual cuidado uns dos outros” (1 Cor 12.21-25). Somos, então, lembrados de que o parentesco entre os membros é tão íntimo que “se um membro padece, todos os membros padecem com ele; e, se um membro é honrado, todos os membros se regozijam com ele” (1 Cor 12.26).
Por estas passagens das Escrituras você poderá entender que a expressão “o corpo de Cristo” não se trata de uma mera figura de linguagem, como muitos a consideram, mas expressa uma realidade – a pura realidade de nossa união com Cristo, bem como de nossa união uns com os outros. E estou certo de que você entenderá que nossa responsabilidade para com Cristo, como a Cabeça do corpo, e nossa responsabilidade para com os outros membros não poderá ser compreendida, e muito menos manifestada, se esta verdade for menosprezada ou ignorada. Mas, por outro lado, quando ela é conhecida, temos não somente o gozo de uma união consciente com Cristo, como podemos nos regozijar em nossa união – nossa indissolúvel união – com todos os membros do Seu corpo em todas as partes do mundo.
Isto nos leva a resultados bastante práticos. Por exemplo, se alguém me diz que devo filiar-me a qualquer uma das denominações existentes, imediatamente respondo que não posso fazer algo que negue – e claramente nega – esta preciosa verdade. “Você me pede”, eu diria “para me unir a um determinado grupo de cristãos que estão em comum acordo em determinadas coisas; mas eu já estou unido a todos os crentes, e preciso de todos; não posso, portanto, aceitar uma base de união que exclua qualquer um deles”. Até mesmo se me convidassem para me unir a um certo número de cristãos que não levassem em conta as barreiras denominacionais (geralmente conhecidos como “interdenominacionais” – Nota do Tradutor), eu responderia: “Sou um membro do corpo de Cristo e, portanto, não posso estabelecer qualquer base de união diferente daquela que é o corpo. Ou permaneço na base que Deus estabeleceu ou não permaneço em base nenhuma”. Sendo assim, enquanto eu não conhecer a verdade do corpo de Cristo, não poderei compreender o lugar que Deus gostaria que eu ocupasse neste mundo.
Mas agora deixo este assunto para sua meditação, pois estou certo de que se você buscar nas Escrituras, na dependência do Senhor, Ele irá guiá-lo, pelo Seu Espírito, para que você conheça a Sua vontade a este respeito. Em minha próxima carta, se Deus quiser, apresentarei a você outro assunto que está intimamente ligado a este, ou seja, o que se refere à mesa do Senhor.
A Mesa do Senhor
A questão da mesa do Senhor é, com frequência, um assunto que confunde o filho de Deus. Pois ele encontra ao redor de si não apenas muitas mesas, estabelecidas sobre diferentes bases, mas, quando começa a investigar este assunto, encontra tantas teorias quantas forem as mesas, no que diz respeito ao significado da ceia à qual ele é convidado a participar. Portanto, a única forma de ele evitar o erro e ser achado em obediência ao seu Senhor, é tapar os ouvidos à confusão de vozes dos teólogos e acatar o ensino claro e inequívoco da Palavra de Deus. E é a isto que desejo guiá-lo nesta carta.
Como era de se esperar, não há nada que esteja faltando com respeito a este tema nas Escrituras. Sendo assim, o capítulo 10 de 1 Coríntios explica o caráter da mesa e o capítulo 11 nos dá o caráter da ceia e a maneira como ela deve ser celebrada.
Vamos considerar primeiro a questão da mesa. “Porventura o cálice da bênção, que abençoamos, não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos não é porventura a comunhão do corpo de Cristo? Porque nós, sendo muitos, somos um só pão e um só corpo: porque todos participamos do mesmo pão” (1 Cor 10.16-17). Está claro que esta passagem ensina duas coisas: em primeiro lugar, que o pão sobre a mesa é o símbolo do corpo de Cristo (“Porque nós, sendo muitos, somos um só pão e um só corpo” – 1 Cor 12.13); e em segundo lugar, que somos participantes dele como membros deste corpo (“porque todos participamos do mesmo pão”). Por conseguinte, assim como temos a comunhão do sangue de Cristo por meio do vinho, também temos a comunhão do corpo de Cristo por meio do pão, quando participamos da ceia em conformidade com os pensamentos de Deus. A mesa é assim a expressão da unidade do corpo de Cristo; e, consequentemente, somente os membros deste corpo podem estar apropriadamente reunidos em torno dela. Por estranho que possa parecer, a “igreja” da Inglaterra concorda com este princípio, pois não admite à sua mesa alguém que não tenha sido batizado, e ela declara que cada pessoa batizada é transformada em “um membro de Cristo”. O erro, como pode ver, está em atribuir ao batismo (como meio) aquilo que só pode ser produzido pelo Espírito de Deus. Menciono este caso apenas para mostrar a você que o princípio aqui anunciado, longe de ser algo peculiar, é largamente aceito.
Ora, é pela aplicação deste princípio que você pode identificar qual, de todas mesas ao seu redor, é a mesa do Senhor. Aplique este teste em cada mesa denominacional e qual será o resultado? Você logo irá perceber que nenhum sistema sectário pode ter a mesa do Senhor, pois a base sobre a qual uma mesa denominacional é estabelecida, em todos os casos, não abrange todo o corpo de Cristo. Mesmo se, por um momento apenas, admitíssemos a hipótese de que todos os seguidores de uma determinada denominação fossem membros do corpo de Cristo, teríamos ainda que perguntar: “Existem outros membros do corpo fora dessa denominação?” Se existirem, então tal mesa não é a mesa do Senhor, por mais sincera, consciente e piedosa que possa ter sido a forma como foi estabelecida. Porém alguns poderiam responder: “Mas estamos abertos para receber a todos os outros membros do corpo de Cristo”. Mesmo assim eu diria que isso não altera a situação, pois a base adotada determina o caráter da mesa que sobre ela é estabelecida; e a base adotada em qualquer denominação é de um caráter tal que muitos cristãos fiéis não poderiam estar em comunhão nessa mesa. Por exemplo, os dissidentes (nome dado pela igreja Anglicana aos outros Protestantes) são excluídos, por questão de consciência, da mesa da “igreja” Anglicana; e os Anglicanos são igualmente excluído das mesas dos dissidentes. Sendo assim, em nenhum desses lugares poderá ser identificada a mesa do Senhor, já que a base adotada para a comunhão é outra, e não aquela do corpo de Cristo.
Mais uma vez, experimente testar as mesas dos sistemas que se dizem não-sectários usando o mesmo princípio. Talvez você me diga que conhece um lugar onde toda a questão denominacional é repudiada e onde é ensinado que todos os cristãos devem estar unidos apenas como cristãos. Muito bom, mas ainda assim eu teria algumas perguntas a fazer. Eu perguntaria: Estão os crentes reunidos naquele lugar somente para o nome de Cristo? Existe liberdade para o Espírito ministrar por intermédio de quem Ele desejar? É exercida a disciplina para que haja santidade? Pois o Senhor não pode aprovar coisa alguma que esteja em desacordo com as Escrituras – qualquer coisa que não seja condizente com o caráter do Seu próprio nome. Se estas perguntas puderem ser respondidas afirmativamente, então você talvez possa concluir que encontrou a mesa do Senhor. Caso contrário, por mais atraente e correta que possa ter parecido a uma primeira análise, você deve rejeitá-la como estando na mesma situação daquelas estabelecidas pelos sistemas denominacionais.
Acredito que se acrescentarmos mais algumas características da mesa do Senhor, isto servirá para guardá-lo do erro:
1. A mesa deve estar estabelecida sobre uma base fora de todos os sistemas denominacionais, caso contrário, como já vimos, ela não estará abrangendo todos os membros do corpo de Cristo.
2. Os santos deverão estar reunidos em torno da mesa no primeiro dia da semana, pois assim lemos: “E no primeiro dia da semana, ajuntando-se os discípulos para partir o pão” (At 20.7), o que é uma prova inquestionável de que era este o costume dos primeiros cristãos. Veja também em João 20 como nosso bendito Senhor, em duas ocasiões após Sua ressurreição, escolheu o primeiro dia da semana para Se apresentar no meio de Seus discípulos reunidos (versículos 19 e 26), consagrando, por assim dizer, esse dia para a assembleia proclamar Sua morte.
3. O propósito da reunião deve ser o partir do pão. Chamo sua atenção para este ponto, pois em muitos lugares existem mesas postas semanalmente, mas que encontram-se subordinadas a outras atividades tais como pregação, etc.
4. Tudo aquilo que estiver em conexão com a mesa – adoração, ministério e disciplina – deve estar de acordo com a Palavra de Deus e em completa sujeição a ela. Se houver qualquer indício de regras humanas, sejam quais forem os motivos pelos quais tenham sido adotadas, o caráter da mesa estará arruinado. Pois a mesa é do Senhor e, portanto, somente a Sua autoridade deve ser reconhecida pelos Seus santos reunidos.
Devo acrescentar algo mais? Sim, pois há um ou dois perigos que gostaria de assinalar. O primeiro é a indiferença. Há alguns dias perguntei a uma cristã se ela estava na mesa do Senhor. Entendendo a que me referia, ela respondeu: “Não desejo preocupar-me com tais assuntos, pois para mim é suficiente saber que Cristo é meu Salvador”. Poderia algo ser mais triste? Como se não fosse tão importante conhecer a vontade do Senhor! Pois você pode ter certeza de que se Ele tem indicado a Sua vontade sobre este assunto, deveria ser um gozo para nós podermos averiguá-lo e sermos encontrados a andar em obediência também nisto. Outra pessoa me respondeu de um modo diferente: “Não cabe a mim julgar aqueles com os quais me reúno, e quero ter comunhão com todos eles”. “Quem tem ouvidos ouça o que o Espírito diz às igrejas” (Ap 2.7 – Leia os capítulos 2 e 3 de Apocalipse). Somos chamados a julgar a maneira de agir daqueles com os quais mantemos comunhão – e até mesmo das “igrejas” – medindo tudo pela Palavra e rejeitando aquilo que ela não nos ordene fazer, ou que seja condenado por ela. A indiferença é o espírito de Laodicéia e a resposta do Senhor a isso é: “Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca” (Ap 3.16). Outro perigo é o da associação. Veja, por exemplo, quantos recém convertidos são atraídos àquilo que é contrário aos pensamentos do Senhor devido a vínculos de amizade, parentesco ou religião! Acabam sendo guiados pelas opiniões de seus amigos ao invés de o serem pela Palavra de Deus. Também é comum encontrarmos aqueles que, por terem se convertido ao Senhor ou recebido uma bênção em determinado lugar, desejam permanecer onde a bênção foi recebida. Mas, qualquer que seja o caso, a pergunta que sempre deveria ser feita é: “Senhor, que queres que faça?” (At 9.6). Caso contrário, mesmo que o crente tenha o mais sincero desejo de fazer o que o Senhor ordenou, lembrando-O em Sua morte, estará fazendo de uma maneira que realmente desagrada ao Senhor.
Ao chamar a sua atenção para estes perigos, quero lembrá-lo de que é muito melhor esperar do que participar da ceia do Senhor em desobediência. Portanto, antes de buscar o seu lugar à mesa do Senhor recorra às Escrituras, pedindo a direção do Senhor; e “se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz” (Mt 6.22). Deixarei o assunto da ceia para a próxima carta.
A Ceia do Senhor
Nunca devemos nos esquecer de que podemos estar à mesa do Senhor e, no entanto, falharmos completamente ao participar da ceia do Senhor. Os Coríntios estavam reunidos para o nome de Cristo; reuniam-se semana após semana em torno da mesa do Senhor, e ainda assim o apóstolo Paulo, ao escrever a eles, diz: “Quando vos ajuntais num lugar, não é para comer a ceia do Senhor” (1 Cor 11.20). Eles haviam caído em tal desordem, pelo egoísmo e pelo descaso para com a importância da ceia, que acabaram fazendo desta solene ocasião uma oportunidade para se banquetearem. A ceia que comiam era, portanto, a ceia deles próprios e não a Ceia do Senhor, pois haviam quase que completamente deixado de associar o pão e o vinho ao corpo e sangue de Cristo. Daí a solene admoestação: “Não tendes porventura casas para comer e para beber? Ou desprezais a igreja de Deus, e envergonhais os que nada têm? Que vos direi? Louvar-vos-ei? Nisto não vos louvo” (1 Cor 11.22). O apóstolo prossegue explicando o verdadeiro caráter da ceia e nos diz que havia recebido do Senhor uma comunicação especial acerca deste assunto. É importante prestarmos atenção a isto, uma vez que o apóstolo recebeu esta comunicação em conexão com seu ministério do corpo de Cristo (Cl 1.24-25), e já que esta é a última comunicação acerca do assunto, é a esta passagem, mais do que aos Evangelhos (os quais, no entanto, relatam a instituição da ceia na noite da páscoa), que recorremos para expor o seu significado.
Quem poderia deixar de ser tocado pela grandiosa graça que é expressa nas palavras de abertura deste relato: “O Senhor Jesus na noite em que foi traído, tomou o pão” (1 Cor 11.23). Que contraste entre o coração do homem e o coração de Cristo! Prestes a ser traído por um de Seus discípulos, “Ele tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei: isto é o Meu corpo que é partido por vós; fazei isto em memória de Mim” (1 Cor 11.23-24).
O pão é, portanto, um símbolo do corpo do Senhor Jesus que foi entregue em favor dos Seus – entregue à morte por eles, por nós, por todos os que creem – sobre a cruz; e quando comemos estamos fazendo isso para recordá-Lo. Se prestássemos mais atenção à expressão “em memória” evitaríamos cair em muitos erros. Nós recordamos algo que já aconteceu, isto é, trazemos isso de volta à memória. Assim, quando comemos o pão na ceia do Senhor, trazemos à memória que o Senhor um dia esteve morto; lembramo-nos d’Ele naquela ocasião – na condição de morte – à qual Ele desceu, quando carregou nossos pecados sobre o Seu próprio corpo no madeiro – quando suportou toda a ira que nós merecíamos, glorificando a Deus até no que diz respeito ao nosso pecado. Portanto, quando partimos o pão, não nos lembramos de Cristo em Sua condição atual, mas de Cristo na condição em que estava.
O cálice também expressa o mesmo. “Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o Novo Testamento [aliança] no Meu sangue: fazei isto, todas as vezes que beberdes, em memória de Mim. Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a morte do Senhor, até que venha” (1 Cor 11.25-26). Portanto o vinho que tomamos é um símbolo do sangue de Cristo; e isto por si só já nos fala de morte, já que não podemos pensar em sangue separado do corpo exceto como uma expressão de morte. O versículo 26 dá ênfase à verdade de que tanto ao comermos do pão quanto ao bebermos do cálice, estamos expressando, anunciando, ou proclamando, a morte do Senhor. Não podemos deixar de insistir com veemência sobre o fato de que na ceia do Senhor voltamos o nosso olhar para o passado, para um Cristo morto; tomamos a ceia como recordação de que um dia Ele esteve morto – morto sobre a cruz e morto na sepultura. Pois Ele, que não conheceu pecado, não somente carregou os nossos pecados, como também foi feito pecado, para que fôssemos feitos justiça de Deus n’Ele (2 Cor 5.21). Note bem que nem mesmo se trata de um Cristo morrendo, mas de um Cristo morto – não se trata de um Cristo morrendo, uma contínua repetição de Seu sacrifício, como muitos erroneamente ensinam, mas de um Cristo morto; “Porque com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que são santificados” (Hb 10.14).
Portanto, este é o único pensamento que deveria estar diante de nossa alma à mesa do Senhor. Que simplicidade – porém quão bem planejada para tocar nosso coração e levá-lo a prostrar-se diante d’Ele em adoração. Quando nos sentamos ao redor da Sua mesa, comemoramos a Sua morte! Ora, o apóstolo mostra que se é um Cristo morto, quem foi que morreu? É impossível encontrarmos outras duas palavras que, juntas, pudessem expressar isto tão bem quanto “a morte do Senhor”. Quantas coisas estão envolvidas no fato de que Ele, que é chamado o Senhor, morreu! Que amor! Que propósitos! Que eficácia!… E que resultados! O Senhor Se entregou por nós. Celebramos a Sua morte.
Observe que é “até que venha” (1 Cor 11.26b). Portanto, enquanto olhamos para trás, para a cruz, somos levados a lembrar de Sua vinda em glória, para nos receber para Si; o merecido fruto do Seu trabalho e de Sua morte. Assim não podemos nunca nos esquecer de que nossa completa redenção, sendo feitos “conformes à imagem de Seu Filho” (Rm 8.29), é o resultado da morte de Cristo. Pois as duas coisas, a cruz e a glória, estão aqui indissoluvelmente ligadas.
Tal é, portanto, o significado da ceia e como você poder perceber o apóstolo nos dá avisos solenes quanto a negligenciarmos a sua importância. “Portanto, qualquer que comer este pão, ou beber o cálice do Senhor indignamente, será culpado do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se pois o homem a si mesmo, e assim coma deste pão e beba deste cálice. Porque o que come e bebe indignamente, come e bebe para sua própria condenação (ou seu próprio juízo), não discernindo o corpo do Senhor” (1 Cor 11.27-29). Não se questiona aqui se somos dignos de participar da ceia do Senhor; mas o que o apóstolo condena é participar de uma maneira indigna. Todo cristão, a menos que tivesse sido excluído por algum pecado, era digno de participar, por ser um cristão. Mas podia acontecer de um cristão ir à ceia sem julgar-se a si mesmo, ou sem apreciar, como deveria, aquilo que a ceia trazia ao seu pensamento e o fato de Cristo estar ligado a ela. Ele não estaria discernindo o corpo do Senhor, além de não discernir e não julgar o mal em si próprio. E se assim comesse e bebesse, estaria comendo juízo para si, isto é, traria disciplina sobre si próprio, pois o Senhor julga o Seu povo e os repreende para que não sejam condenados com o mundo (1 Cor 11.32). Assim Ele puniu os Coríntios por sua negligência – alguns com fraqueza, outros com enfermidades, e alguns até mesmo com a morte do corpo (1 Cor 11.30). Daí a necessidade de nos examinarmos quanto à maneira como participamos da ceia do Senhor, e de julgarmos tudo aquilo que for descoberto como sendo impróprio na presença dEle; “Porque, se nós nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados” (1 Cor 11.31), isto é, se aplicássemos um juízo próprio não seríamos corrigidos pelo Senhor.
De tudo o que foi falado, fica claro que não estamos qualificados para a mesa do Senhor até que fique definida a questão de nosso relacionamento com Deus – ou, em poucas palavras, até que tenhamos paz com Deus. Pois se estou ocupado com o meu ego, com meu próprio estado de espírito, com dúvidas, ansiedades ou temores, não posso estar ocupado com a morte de Cristo. Com frequência, muito dano é causado por se receber cedo demais as almas à mesa do Senhor. Pois quando vêm antes de terem paz com Deus, olham para a mesa como se fosse um meio de se obter graça e, uma vez que na ceia é a morte de Cristo que é colocada diante delas, tornam-se infelizes e angustiadas por não conhecerem o valor daquela morte para si próprias. Pelo menos até que haja paz de consciência pelo poder do sangue de Cristo, a alma não se encontra em liberdade, não se encontra à vontade para contemplar a morte de Cristo.
Volto a repetir. Quando nos encontramos à mesa do Senhor, não é para estarmos ocupados com os benefícios que recebemos pela morte de Cristo. Mas é para entrarmos, pelo poder do Espírito, nos pensamentos de Deus a respeito da morte de Seu amado Filho. Pois estamos ali como adoradores e, como tais, no interior e além do véu rasgado (Mt 27.51; Hb 10.20). E, uma vez lá, ficamos absortos com o fato de que o próprio Deus foi glorificado na morte de Cristo e, em comunhão com Ele, pensamos no que Cristo foi para Deus; nunca tão precioso aos olhos de Deus como naquele terrível momento em que foi feito pecado e, a fim de glorificar a Deus, suportou tudo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz. Então, com o coração transbordando, somos capacitados, pelo Espírito, a extravasar o nosso louvor e adoração. Que tremendo pensamento, podermos ser admitidos a contemplar, juntamente com Deus, o Seu Cristo sendo lançado no pó da morte, com todas as ondas e vagas de Deus passando sobre Ele! E à medida que O contemplamos não podemos deixar de clamar: “Àquele que nos ama, e em Seu sangue nos lavou dos nossos pecados, e nos fez reis e sacerdotes para Deus e Seu Pai: a Ele glória e poder para todo o sempre. Amém” (Ap 1.5-6).
Encontramo-nos, portanto, à mesa como pessoas que dão, não como pessoas que recebem; muito embora, com toda a certeza, recebemos muito quando estamos ali de acordo com os pensamentos de Deus. Mas o objetivo de nossa reunião é adorar, render a homenagem de nosso coração a Deus, por termos sido redimidos por meio da morte de Seu Filho. E quem poderia descrever o abençoado privilégio que é anunciarmos a morte do Senhor dessa maneira? Reunidos ao redor d’Ele próprio, com os comoventes símbolos de Seu corpo e sangue diante de nossos olhos, reivindicando as afeições do nosso coração! Seu amor, que as muitas águas não poderiam apagar nem os rios afogar, penetra em nosso coração e toma posse de nossa alma, nos constrangendo a nos prostrarmos aos Seus pés em grata adoração, e nos fazendo almejar pelo momento quando O veremos face a face e, contemplando a Sua glória, estaremos junto a Ele, O adorando por todas as eras da eternidade!
Termino, orando para que você possa ser instruído cada vez mais no significado da morte do Senhor, como é apresentada na Sua ceia.
Senhor Jesus Cristo no Centro
É muito importante que você compreenda claramente o que significa a presença do Senhor no centro da assembleia; mas a condição necessária para que a promessa da Sua presença seja cumprida também não pode ser esquecida. Ele nunca prometeu estar em qualquer lugar onde os santos estivessem reunidos e nem tampouco afirmou que todos os que se reunissem, como cristãos, para adorá-Lo, poderiam contar com Sua presença. Suas palavras são: “Onde estiverem dois ou três reunidos em Meu nome, aí, estou Eu no meio deles” (Mt 18.20). Sendo assim, a condição essencial é que os santos estejam reunidos em (ou ‘ao’) Seu nome, e se isto não for cumprido na íntegra, a promessa da Sua presença não será levada a efeito.
Nosso primeiro objetivo, portanto, será explicar o que significa esta condição. Devo esclarecer que uma tradução mais correta do texto seria “para” ou “ao Meu nome”, pois a preposição aqui usada como “em” invariavelmente tem o significado de “em o”, “ao” ou “para”. Portanto o significado mais apropriado aqui é “reunidos ao Meu nome”. Cabe ainda ressaltar que esse “nome” não é usado aqui apenas como um título, mas, como normalmente acontece nas Escrituras, trata-se de uma expressão de tudo o que Cristo é. Assim, quando o Senhor Se dirige ao Pai, para falar de Seus discípulos, dizendo, “Eu lhes fiz conhecer o Teu nome, e lho farei conhecer mais” (Jo 17.26a), não estava querendo dizer que revelou-lhes meramente o fato de que Deus também leva o nome de Pai, mas que esteve lhes ensinando tudo o que Deus era para eles nesta relação de parentesco. E acrescenta que já havia feito isso, e também ainda iria fazê-lo, “para que o amor com que Me tens amado esteja neles, e Eu neles esteja” (Jo 17.26b). O que Ele desejava era que os discípulos entendessem o que Deus era para eles como Pai, e ainda revelava que eles seriam levados a desfrutar de todo o amor que Deus, como Pai, tinha para lhes dar. De um modo semelhante, a palavra “nome” na passagem citada no início (Mt 18.20) expressa tudo o que Cristo é como homem glorificado e como Senhor no relacionamento que agora mantém com o Seu povo. Quando digo que agora mantém é porque ficou bem evidente que as palavras em João 17.26 foram proferidas acerca de uma época quando Ele estaria ausente. Do mesmo modo, em Mateus 16.18 Ele diz, “edificarei a Minha Igreja”, apontando para uma época futura, e a passagem na qual a palavra “nome” ocorre (Mt 18.20) está ligada à ação disciplinar da igreja no versículo 17. É óbvio que enquanto Ele estava neste mundo os discípulos não poderiam estar reunidos ao Seu nome, pois ainda estavam com Ele, seu Mestre e Senhor.
Podemos então tomar a palavra “nome” como expressão da Pessoa de Cristo – Ele próprio, em toda a verdade da Sua Pessoa, como Aquele que foi ressuscitado e glorificado à destra de Deus. Fica evidente que Cristo é o único objeto que nos une, e nosso único centro de atração quando estamos reunidos, pois o Espírito Santo nunca irá reunir crentes para qualquer outra coisa senão Cristo. Basta qualquer coisa ser acrescentada – seja uma doutrina peculiar, ou uma forma de governo eclesiástico em especial – e a reunião já não estará em conformidade com o pensamento de Deus. Se, por exemplo, eu concordasse em me reunir com alguns outros crentes com pontos de vista em comum, não poderíamos estar reunidos somente ao nome de Cristo, pois algo estaria sendo acrescentado ou suprimido. Mas se estivesse reunido com aqueles que reconhecem que o próprio Cristo é o único centro de atração; com aqueles que aceitam Sua autoridade como Senhor; que se submetem à Sua Palavra, e deixam que tudo seja regido por ela quando reunidos, então a reunião seria ao Seu nome. E somente neste caso, pois onde for reconhecida a autoridade do homem, suas tradições ou seus regulamentos, não importa qual seja o grau de piedade individual daqueles envolvidos, não se trata de uma reunião no mesmo caráter.
Ora, é somente no meio de Seu povo reunido desse modo que o Senhor prometeu estar. “Aí, estou Eu no meio deles”. Isto por si só demonstra a extrema importância de se estar reunido ao Seu nome, pois, como dissemos, se esta condição for negligenciada, não teremos fundamento algum para contar com a Sua presença. Não basta falarmos que estamos cumprindo esta condição. O ponto essencial é: Será que o Senhor reconhece que a estamos cumprindo? Ele é o Juiz. Portanto seria uma presunção contar com a Sua presença em nosso meio, se estivéssemos nos reunindo de acordo com nossos próprios pensamentos – sem levar em consideração a Sua Palavra. Mas “onde estiverem dois ou três reunidos em (ou ao) Meu nome, aí, estou Eu no meio deles”.
Portanto, sabemos que Ele está no meio dos que assim se reúnem com base na autoridade da Sua Palavra. E isto não é tudo, mas, como que para nos suprir em nossas fraquezas, Ele deixou amostra da maneira como vem para o meio dos Seus. Assim, na tarde do primeiro dia da semana, após haver ressuscitado de entre os mortos, encontramos os discípulos reunidos (Jo 20.19). Ele havia enviado Maria aos Seus irmãos com a mensagem: “Dize-lhes que Eu subo para Meu Pai e vosso Pai, Meu Deus e vosso Deus” (Jo 20.17). Conforme o Salmo 22.22, Ele declarou assim o nome de Deus aos Seus irmãos, revelando que os transportara, por meio de Sua morte e ressurreição, ao lugar que Ele mesmo ocupa diante de Deus. Daí em diante o Seu Deus e Pai era o Deus e Pai deles também. Estavam dessa forma associados com Ele nesse parentesco, com base na ressurreição. Aquela mensagem fez com que se reunissem ao Seu nome e, quando estavam assim reunidos, “chegou Jesus, e pôs-Se no meio, e disse-lhes: Paz seja convosco” (Jo 20.19). Dessa forma Ele nos deixou um exemplo da maneira como vem para o meio do Seu povo, de modo a termos em nossas almas a certeza da Sua Palavra sendo confirmada.
Alguém poderia ser tentado a questionar: Seria possível, nos dias de hoje, o Senhor estar no meio do Seu povo reunido ao Seu nome? A resposta a este tipo de dúvida está no surpreendente registro de como o Senhor Se colocou no meio dos Seus discípulos no primeiro dia da semana. Aquilo não apenas soluciona esta questão, como também serve de alerta para um perigo mais sutil: alguém poderia ser inclinado a objetar, em incredulidade, que se hoje pudéssemos vê-Lo com nossos olhos, como aconteceu com os discípulos, então poderíamos ter certeza da Sua presença. O Senhor conhecia a fraqueza e sutileza de nosso pobre e débil coração, e assim, com terno amor, deixou-nos uma admoestação suficiente para não cairmos nesse engano. Um dos discípulos, Tomé, “não estava com eles quando veio Jesus” (Jo 20.24). Outros discípulos lhe disseram: “Vimos o Senhor” (verso 25). Mas ele lhes respondeu: “Se eu não vir o sinal dos cravos em Suas mãos e não meter o dedo no lugar dos cravos, e não meter a minha mão no Seu lado, de maneira nenhuma o crerei”. Oito dias depois, todos eles, inclusive Tomé, estavam reunidos outra vez, e como da vez anterior, “chegou Jesus, estando as portas fechadas, e apresentou-Se no meio, e disse: Paz seja convosco. Depois disse a Tomé [pois Ele havia escutado cada palavra de Tomé]: Põe aqui o teu dedo, e vê as Minhas mãos; e chega a tua mão, e mete-a no Meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente”. Tomé, inundado pela Sua terna graça e tolhido pelo sentimento de sua própria pecaminosidade, só pôde exclamar: “Senhor meu, e Deus meu!” Por isso “disse-lhe Jesus: Porque Me viste, Tomé, creste; bem-aventurados os que não viram e creram” (versos 25-29). Dessa forma (sem entrarmos aqui na aplicação desta cena significando a conversão do remanescente judeu, quando olharão para Aquele a Quem traspassaram) o Senhor já tinha em vista os que viriam a crer por meio da palavra de Seus discípulos, e que seriam bem-aventurados. E essa bem-aventurança diz respeito a nós, pois embora não O vejamos, cremos que, de acordo com a Sua própria Palavra, Ele está em nosso meio quando nos reunimos ao Seu nome.
Todavia deveria sempre ser lembrado que é Ele próprio que Se encontra no meio – não “em espírito”, como se costuma dizer, mas a Sua própria Pessoa; pois as palavras são: “Aí estou Eu”, e o pronome “Eu” expressa tudo o que Ele é. É Cristo – e não o Espírito Santo, mas Cristo – que está no meio dos Seus santos reunidos. É certo que o Espírito Santo, que habita na casa de Deus, atua por meio dos membros individuais do corpo de Cristo, quando reunidos ao Seu nome, e ministra por meio de quem Ele escolhe, para edificação dos santos. Mas trata-se do próprio Cristo, eu repito, Quem vem para o nosso meio. Sua presença só pode ser compreendida por meio do Espírito, mas isto é um outro assunto De qualquer modo Ele está no meio onde dois ou três estiverem reunidos ao Seu nome, seja isto compreendido ou não. Quão maravilhosa é Sua graça e benevolência!
Nunca se esqueça, portanto, de que é ao redor do próprio Senhor que estamos reunidos. Ainda que existam apenas dois – e Suas palavras são “onde estiverem dois ou três reunidos em Meu nome” – aí Ele está no meio. Tão logo dois se reúnam assim, já podem se regozijar na certeza de que o Senhor está ali. Nossa fé pode ser fraca, e nossa compreensão débil, mas ainda assim permanece o fato de que Ele está presente, pois isto não depende do que sentimos ou experimentamos, mas unicamente do fato de estarmos reunidos ao Seu nome somente. Como poderíamos deixar de nos congregar, como muitos fazem (Hb 10.25), quando sabemos que o Senhor é o centro da assembleia e que Ele está em nosso meio de uma forma tão real quanto no primeiro dia da ressurreição? Por que Tomé estava ausente naquela ocasião? Porque não acreditava na ressurreição de seu Senhor e, por conseguinte, não contava com a Sua presença! Do mesmo modo hoje, quando alguém se ausenta da reunião da assembleia (não me refiro aqui àqueles que o fazem por uma dificuldade, obrigação ou outra circunstância), o faz porque não acredita que o Senhor realmente esteja no centro. E ao nos reunirmos, que reverência, que afeições, que adoração inundaria nosso coração se, por intermédio do Espírito, compreendêssemos mais completamente que Aquele que desceu até à morte carregado com nossos pecados; que pelo Seu sangue nos redimiu para Deus; ressuscitou, e agora, como Aquele que está exaltado e glorificado, Se compraz em estar no meio da congregação, a dirigir o Seu povo em adoração! (Sl 22.22).
Verdadeiro Lugar de Adoração
Nesta carta eu me proponho a indagar: Onde é o lugar de adoração do cristão? Devo apenas lembrá-lo de que a expressão “lugar de adoração” é muito usada, e embora eu admita plenamente que o seu significado seja simplesmente o lugar onde crentes e outras pessoas se congregam aos domingos, ainda assim é da maior importância não utilizarmos, nas coisas divinas, palavras que possam criar uma impressão errada ou dar um falso significado da verdade de Deus. Nosso único recurso, portanto, é buscarmos nas Escrituras a resposta para nossa pergunta.
Sendo assim, deixe-me dirigir sua atenção para a seguinte passagem: “Tendo pois, irmãos, ousadia para entrar no santuário, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que Ele nos consagrou, pelo véu, isto é, pela Sua carne, e tendo um grande sacerdote sobre a casa de Deus, cheguemo-nos com verdadeiro coração, em inteira certeza de fé; tendo os corações purificados da má consciência, e o corpo lavado com água limpa” (Hb 10.19-22). De uma forma geral, vemos nesta passagem três pontos principais: o sangue de Jesus, o véu rasgado e o Sumo Sacerdote (literalmente, o Grande Sacerdote) sobre a casa de Deus. É sobre o fundamento destas três coisas que somos exortados a nos aproximar de Deus para adoração. Se examinarmos um pouco o significado de cada uma delas, encontraremos a resposta à nossa pergunta.
Em primeiro lugar, temos ousadia para entrar no santuário pelo sangue de Jesus. Se você acompanhar o raciocínio do apóstolo, verá que fica evidente que o sangue de Jesus é apresentado em contraste com o “sangue dos touros e dos bodes” (Hb 10.4). Na verdade, o assunto principal de toda a primeira parte do capítulo é a eficácia do sangue de Jesus em contraste com a ineficácia do sangue de touros e bodes. O fato de os sacrifícios do Antigo Testamento terem sido oferecidos continuamente, ano após ano, é apresentado como prova de que os adoradores nunca eram realmente purificados até o ponto de não terem mais consciência dos pecados; pois na repetição dos sacrifícios havia, ano após ano, uma contínua lembrança dos pecados (Hb 10.1-3). E a razão disto era que “é impossível que o sangue dos touros e dos bodes tire os pecados” (Hb 10.4). Por esta razão, os inúmeros sacrifícios, dos mais variados tipos, não faziam mais do que demonstrar sua completa ineficácia, embora tivessem sido ordenados por Deus tendo em vista o Único Sacrifício que era dessa forma anunciado.
Após demonstrar isto, o apóstolo traz à tona, no mais claro contraste, o valor do sacrifício de Cristo (Leia cuidadosamente Hebreus do versículo 5 ao 14); e para resumir e deixar tudo estabelecido em uma única sentença declara: “Porque com uma só oblação (ou oferenda) aperfeiçoou para sempre os que são santificados” (verso 14). As oferendas ou sacrifícios sob a lei nunca tornavam perfeitos os adoradores, mas com uma só oferenda Cristo nos tornou perfeitos para sempre. Esta verdade é tão vasta e abrangente, que é necessário meditar sobre ela mais e mais, a fim de assimilá-la, ainda que em parte. Pois ela implica, não somente que eu agora não tenho mais consciência de pecados – se me encontro sob o valor do sacrifício de Cristo – mas também que eu nunca mais preciso ter qualquer consciência de pecados no aspecto aqui apresentado; que por meio da eficácia daquele sangue precioso tenho agora o direito, e terei sempre esse direito, de entrar na presença de Deus. Em resumo, que nada poderá jamais me privar do lugar que me foi dado, na maior proximidade da Sua presença, pois por uma oblação ou oferenda Ele aperfeiçoou para sempre aqueles que são santificados. Por meio daquele sacrifício eu recebi uma credencial de acesso perpétuo à presença de Deus.
O segundo ponto é o véu rasgado. O sangue de Cristo nos deu o direito da aproximação; e em seguida temos, “pelo novo e vivo caminho que Ele nos consagrou, pelo véu, isto é, pela Sua carne” (Hb 10.20). Vemos aqui, mais uma vez, um contraste com a velha dispensação, pois lemos no capítulo 9 de Hebreus: “Mas no segundo (isto é, no santo dos santos, além do véu) só o sumo sacerdote, uma vez no ano, não sem sangue, que oferecia por si mesmo e pelas culpas do povo: dando nisto a entender o Espírito Santo que ainda o caminho do santuário não estava descoberto enquanto se conservava em pé o primeiro tabernáculo” (Hb 9.7-9). O povo estava, portanto, totalmente excluído, e isto porque, como já vimos, não era possível que o sangue de touros e bodes tirasse os pecados. Por conseguinte a morte era certa, pelo juízo de Deus, para todo aquele, exceto o sumo sacerdote, que se aventurasse a entrar além daquele terrível véu (Lv 16.1-2; Nm 15-16). Mas tão logo foi consumado o sacrifício de Cristo na cruz, o véu foi rasgado de alto a baixo (Mt 27.51), pois por meio de Sua morte Ele glorificou a Deus em cada atributo do Seu caráter concernente à questão do pecado, e por aquela única oferta aperfeiçoou para sempre aqueles que são santificados. Daquele momento em diante o véu estava rasgado para significar que o caminho para o santo dos santos estava aberto a partir de então. Pois Aquele que rasgou o véu para nos dar entrada, igualmente tirou o pecado que nos excluía, e é agora privilégio de cada crente, firmado na eficácia do sacrifício de Cristo, entrar sempre no santo dos santos, tendo toda liberdade de fazê-lo pelo sangue de Jesus.
Há, porém, uma terceira coisa que é indicada, da qual podemos fazer uma breve menção antes de chamar sua atenção para o resultado final destas benditas verdades, a saber, que temos “um grande sacerdote sobre a casa de Deus” (Hb 10.21). E onde está o nosso Sumo Sacerdote? “E assim todo o sacerdote aparece cada dia, ministrando e oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios, que nunca podem tirar os pecados; mas Este, havendo oferecido um único sacrifício pelos pecados, está assentado para sempre à destra de Deus, daqui em diante esperando até que os Seus inimigos sejam postos por escabelo de Seus pés. Porque com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que são santificados” (Hb 10.11-14). Aprendemos assim que nosso Sumo Sacerdote está sentado à direita de Deus e que essa posição é devida ao fato de Sua obra sacrificial ter sido consumada. Daí em diante a Sua presença no Céu é um testemunho e uma prova da perpétua eficácia de Sua obra, e consequentemente um estímulo permanente para encorajar o Seu povo a entrar ousadamente no santo dos santos – para além do véu já rasgado.
Tais são os três imensos fatos – o sangue de Jesus, o véu rasgado, e o Sumo Sacerdote sobre a casa de Deus – para os quais o Espírito Santo dirige a nossa atenção antes de nos exortar a nos achegarmos “com verdadeiro coração, em inteira certeza de fé; tendo os corações purificados da má consciência, e o corpo lavado com água limpa” (Hb 10.22). E o lugar ao qual somos convidados a nos achegar, ou no qual devemos entrar, é o mais santo – o santo dos santos. É o lugar que foi representado como um tipo pelo santo dos santos que existia no tabernáculo no deserto, o lugar no qual Cristo, nosso Representante e nosso Precursor, já entrou (Hb 4.14; 6.19-20). Portanto, nosso lugar de adoração está na imediata presença de Deus, no próprio lugar onde Cristo ministra a nosso favor como Sumo Sacerdote.
É verdade que ainda nos encontramos aqui neste mundo como estrangeiros e peregrinos, quando se trata da questão do sacerdócio. Mas este mundo nunca pode ser o lugar de nossa adoração, pois temos “ousadia para entrar no santuário, pelo sangue de Jesus”, e é somente ali que nossa adoração pode ser oferecida e aceita por Deus. Se eu quisesse render uma homenagem ao Rei, teria de fazê-lo diante do trono real para que fosse recebido. Quanto mais se desejo adorar a Deus! Devo fazê-lo no lugar onde Ele está assentado no Seu trono, e onde posso entrar com este propósito graças ao direito que Ele me deu para sempre poder fazê-lo, por Sua inefável graça, por meio do precioso sangue de Cristo. Portanto é lá nas alturas, para além do véu rasgado, na Sua própria presença, e em nenhum outro lugar, que o Seu povo deve adorar. E que maravilhoso privilégio é este; que graça inexprimível Ele nos concedeu, que desfrutássemos de constante liberdade de acesso diante d’Ele, para ali nos prostrarmos em adoração e louvor!
No sangue de Cristo, eis-nos lavados;
Além do véu, tão santo lugar!
Diante do trono caímos prostrados,
Para, Ó Deus! a Ti adorar!
Com esta verdade claramente diante de nós, tenho certeza de que você poderá perceber que se falarmos de um lugar de adoração aqui neste mundo, estaremos obscurecendo o ensino das Escrituras, além de estarmos privando a nós mesmos de nossos privilégios. Não me esqueci de que em muitos casos, como já disse, a expressão “lugar de adoração” pouco representa no modo como é usada; mas, por outro lado, ela tem um significado muito grande para algumas pessoas, dando-lhes a ideia de edifícios santos e templos consagrados. Os judeus tinham um “santuário terrestre” (Hb 9.1), um que fora construído segundo a direção de Deus e de acordo com o Seu mandamento. Porém, construir um “santuário”, um templo “consagrado” ou um edifício “santo” nos dias de hoje, é o mesmo que voltar ao judaísmo e ignorar que “temos um Sumo Sacerdote tal, que está assentado nos céus à destra do trono da majestade, Ministro do santuário, e do verdadeiro tabernáculo, o qual o Senhor fundou, e não o homem” (Hb 8.1-2). Portanto não pode haver um lugar de culto ou adoração neste mundo, e chamar a um edifício desta forma, mesmo que inconscientemente, é desprezar, para não dizer mais, o lugar e o privilégio do crente, além de falsificar a verdade do cristianismo.
Talvez seja necessário discorrer sobre mais um assunto, ou seja, que todos os crentes igualmente possuem o mesmo privilégio de acesso ao santo dos santos. As Escrituras, ou melhor dizendo, as passagens das Escrituras concernentes à Igreja, ignoram qualquer classe consagrada de homens que seja distinta dos outros crentes, que conte com privilégios especiais ou com direitos de se aproximar de Deus como intermediários de outros homens. Todos os crentes são igualmente sacerdotes (1 Pe 2.9) e, portanto, todos estão igualmente qualificados para entrar na presença de Deus como adoradores. A passagem à qual nos referimos em Hebreus 10.19-22 é categórica a este respeito. Guarde bem estas palavras: “Tendo pois, irmãos”. Isto é dirigido a todos os crentes, e todos são lembrados que têm ousadia para entrar no santuário pelo sangue de Jesus. E mais uma vez o apóstolo diz: “Cheguemo-nos” associando-se a todos aqueles aos quais está se dirigindo, pois na verdade ele mostra que se encontra, junto com todos os outros, na mesma posição perante Deus quanto à adoração. É muito importante que se compreenda esta verdade, principalmente nestes dias quando vemos um incremento do sistema sacerdotal com suas pretensões supersticiosas. Ambas as coisas estão ligadas. Se você tem um lugar terrestre de adoração, então necessita de uma ordem clerical de sacerdotes; e estas duas coisas combinadas constituem uma afronta ao verdadeiro cristianismo. Por isso é nossa incumbência batalharmos “pela fé que uma vez foi dada aos santos” (Jd 3).
Mas não devemos nos dar por satisfeitos apenas com a doutrina a respeito deste assunto. A questão para nossas almas é: Sabemos o que significa nos achegarmos para adorar no santíssimo lugar? Gostaria de frisar solenemente este ponto; pois nada menos do que isto irá satisfazer o coração d’Aquele, por meio de cujo sangue precioso nós recebemos tal inexprimível privilégio. Que nunca nos contentemos com menos do que o pleno desfrutar desta verdade. Se tivéssemos visto Arão, no dia da expiação, levantando o véu sagrado para entrar na terrível presença de Deus, teríamos ficado impressionados, não apenas com a solenidade do ato, mas também com a maravilhosa posição de favor e proximidade de Deus que ele ocupava em virtude de seu sacerdócio. Todos os crentes têm agora a mesma posição. Que possamos, cada vez mais, ter consciência do que podemos encontrar dentro do véu rasgado, para que tenhamos uma compreensão mais completa da eficácia daquele único sacrifício que nos introduziu na presença de Deus, sem qualquer mancha sobre nós, e sem um véu para nos separar d’Ele.
Adoração
Havendo considerado a questão referente a onde está nosso lugar de adoração, podemos prosseguir tratando agora da própria adoração. As Escrituras estão repletas de instruções a respeito deste assunto e, me atrevo a dizer, será difícil encontrar algum assunto que seja tratado com tanta indiferença, e até mesmo com ignorância, entre os cristãos professos. E vou ainda mais longe ao afirmar que a sua real importância dificilmente é compreendida pelos crentes que não estejam reunidos somente ao nome de Cristo. Não quero dizer com isto que não existam pessoas em todas as denominações que estejam desfrutando do gozo de adorar diante de Deus; tais pessoas sempre existiram em toda a história da Igreja. Mas o ponto em que insisto é que a adoração coletiva dos santos – ou a que diz respeito a adorar em assembleia – é quase que totalmente desconhecida em qualquer das muitas denominações da cristandade.
Para dar um exemplo, em um livro que tem tido grande circulação, escrito por um dos mais conhecidos pregadores de nossos dias, é dito, quando se refere a este assunto, que ouvir sermões é uma das mais elevadas formas de adoração. O escritor sustenta essa surpreendente declaração com o fato de que a pregação tende a gerar na alma os mais santos desejos e aspirações. Que a exposição da verdade pode levar à adoração ninguém iria negar, mas até uma criança perceberia facilmente a diferença entre adorar e escutar a verdade. Na pregação – se estiver sendo apresentada a verdade de Deus – o servo traz uma mensagem de Deus para os ouvintes; na adoração, os santos são levados à presença de Deus para apresentarem seus louvores e adoração. Portanto as duas coisas são de um caráter completamente diferente. Oração também não é adoração. Isto pode ser entendido pelo simples fato de que um pedinte não é um adorador. Assim, se eu me dirigir a um Rei com um pedido, me apresentarei diante dele em um determinado caráter, mas se for admitido à sua presença para render-lhe uma homenagem já não sou mais um pedinte. Assim também, quando me uno a outros crentes em oração e intercessão, estamos diante de Deus como pessoas que buscam determinadas bênçãos, mas quando nos prostramos diante d’Ele em adoração, estamos mais dando do que recebendo; estamos diante d’Ele sem esperar nada em troca, mas com nossos corações transbordantes, aos Seus pés, em adoração.
Ações de graças estão intimamente conectadas com adoração, mas na sua essência não se trata de adoração. Pois as ações de graça são consequência de bênçãos recebidas, seja pela providência, seja como resultado da redenção. A consciência da graça e bondade de Deus em nos prover, em nos abençoar com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo, nos constrange a derramar ações de graças em Sua presença; e então, necessariamente, somos levados a refletir sobre o caráter e atributos de Deus que assim Se apraz em nos envolver com provas do Seu amor e cuidado; e consequentemente as ações de graças se transformam em adoração.
Mas na adoração – considerada no caráter que lhe é peculiar – perdemos de vista a nós mesmos e as nossas bênçãos, e ficamos ocupados com o que Deus é em Si mesmo, e o que Ele é para nós conforme revelado em Cristo. Guiados pelo Espírito Santo, passamos para um plano acima de nós mesmos e contemplamos Deus na variedade dos Seus atributos e em Sua glória (pois embora Deus nunca tenha sido “visto por alguém, o Filho unigênito, que está no seio do Pai, este O fez conhecer” (Jo 1.18); e, inundados pela manifestação da Sua santidade, majestade, amor, misericórdia e graça, nada mais nos resta senão nos ajoelharmos aos Seus pés, rendendo, em Cristo e por meio de Cristo, a homenagem de nossos corações.
Isto será observado com maior clareza se nos voltarmos para o ensino das Escrituras. A mulher de Samaria perguntou ao Senhor a respeito deste assunto, ou mais particularmente, a respeito do lugar de adoração. Em Sua resposta Ele Se dignou a ir muito além dos limites da pergunta feita pela mulher. “Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-Me que a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos porque a salvação vem dos judeus. Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim O adorem. Deus é Espírito, e importa que os que O adoram O adorem em espírito e em verdade” (Jo 4.21-24). Em primeiro lugar, aqui o Senhor ensina claramente que de um certo momento em diante não haveria mais um lugar especial de adoração sobre este mundo. Jerusalém havia sido o lugar sagrado onde estava o templo de Deus – o lugar para o qual o povo de Deus se dirigia, ano após ano, vindos de todos os pontos da terra (Sl 122). Mas, juntamente com a rejeição de Cristo, a Sua casa, até então casa de Deus, foi deixada deserta (Mt 23.37-39), e desde então nunca mais existiu uma casa material de Deus neste mundo. A Igreja é agora a habitação de Deus em Espírito (Ef 2.22), e nosso lugar de adoração (como foi visto na última carta) está agora além do véu rasgado, na própria presença de Deus.
Em segundo lugar, Ele nos diz quais podem ser os adoradores – aqueles que adorarão ao Pai em espírito e em verdade; e são estes que o Pai procura, ou seja, somente crentes – como aquela mulher de Samaria que o Pai buscou e encontrou na Pessoa do Filho – que, como filhos, Deus tomaria para Si em um estreito relacionamento com a Sua própria Pessoa. Somente tais pessoas poderiam adorar o Pai em espírito e em verdade. O apóstolo afirma a mesma coisa quando diz, “Porque a circuncisão somos nós, que servimos a Deus em espírito (em algumas traduções lemos: “que adoramos pelo Espírito de Deus”), e nos gloriamos em Jesus Cristo, e não confiamos na carne” (Fp 3.3), que são as características patentes encontradas naqueles que verdadeiramente creem. A epístola aos Hebreus, em seu capítulo 10, nos ensina que é impossível que alguém se aproxime de Deus até que seus pecados tenham sido apagados; e também é impossível que o faça sem fé (Hb 11.6). Além do mais, já que ninguém mais além dos que creem têm o Espírito de Deus (Rm 8.14-16; Gl 4.6), ninguém mais pode adorar em espírito, ou pelo Espírito de Deus.
Embora esta verdade seja por demais evidente, e até mesmo amplamente aceita de forma teórica, deve ser ressaltada cada vez mais, pois o que realmente acontece, na chamada “adoração pública”, que normalmente mistura crentes e incrédulos, é que trata-se de uma verdade ignorada ou obscurecida. Todos, sejam salvos ou não, são convidados a se unirem em uma mesma oração, e em um único cântico de louvor, em total esquecimento das claras palavras de que são somente os “verdadeiros adoradores” que podem adorar o Pai em espírito e em verdade.
Em terceiro lugar, o Senhor define o caráter da adoração. Deve ser “em espírito e em verdade”. Adorar em espírito significa adorar de acordo com a verdadeira natureza de Deus, e no poder daquela comunhão que o Espírito de Deus concede. A adoração espiritual está assim em contraste com o formalismo, a religiosidade e as cerimônias das quais a carne é capaz. Adorar a Deus em verdade é adorá-Lo em conformidade com a revelação que Ele tem dado de Si próprio. Os Samaritanos não adoravam a Deus nem em espírito nem em verdade. Os Judeus adoravam a Deus em verdade, dentro das limitações da revelação ainda incompleta, mas não O adoravam em espírito. Agora, para adorar a Deus, são necessários ambos. Ele deve ser adorado de acordo com a verdadeira revelação de Si próprio (ou seja, em verdade), e em conformidade com a Sua natureza (isto é, em espírito).
Porém a revelação de Deus para nós está na Pessoa de Cristo, e em conexão com a Sua obra, pois na cruz, e por meio da cruz, foi manifestado tudo o que Deus é. A morte de Cristo é, portanto, o fundamento de toda a adoração cristã, pois é pela eficácia de Seu precioso sangue que somos qualificados a entrar na presença de Deus; e uma vez que aquela morte é para nós a revelação de tudo o que Deus é, de Sua majestade, Sua santidade, Sua verdade, Sua graça, e Seu amor, é por meio da contemplação daquele tremendo sacrifício que nossos corações, trabalhados pelo Espírito de Deus, são levados a transbordar em adoração e louvor. Sendo assim, a adoração está associada, de uma forma muito especial, com a mesa do Senhor, pois é quando nos reunimos ao redor dela, como membros do corpo de Cristo, que anunciamos a Sua morte. Usando as palavras de outro, “É impossível separar a verdadeira comunhão e adoração espiritual da perfeita oferta que Cristo foi para Deus. No momento em que nossa adoração se separa da eficácia daquela obra, e da consciência da infinita aceitação de Jesus diante do Pai, ela torna-se carnal, chegando até mesmo a ser uma forma de deleite da carne”.
Este é o segredo da degeneração da adoração na cristandade, pois onde a Mesa do Senhor perdeu o seu lugar ou seu verdadeiro caráter, o verdadeiro motivo da adoração foi obscurecido. Pois do que é que somos especialmente lembrados quando nos encontramos à mesa do Senhor? De Sua morte! E é naquela morte que somos capacitados a enxergar o que Deus é para nós, e o que Cristo é para Deus, bem como a infinita eficácia do Seu sacrifício em nos levar, sem mancha alguma, até a imediata presença de Deus – na luz, assim como Ele próprio está na luz. A graça, o eterno amor de Deus, além da graça e inextinguível amor de Cristo, são igualmente demonstrados às nossas almas, à medida que recordamos Aquele que glorificou a Deus em Sua morte na cruz, carregando os nossos pecados. E, tendo ousadia para entrar no santuário pelo sangue de Jesus, nos prostramos e adoramos diante de Deus, enquanto cantamos:
“Oh Deus!” Tu já tens glorificado
Teu santo, bendito, Filho eterno;
O Nazareno, o Crucificado,
Assentado exaltado em Teu trono!
A Ele, em fé, clamam os Teus,
Digno és Tu, “Oh Cordeiro de Deus”.
Ministério
É surpreendente notarmos que o ministério que é praticado nas chamadas “igrejas” da Cristandade não tem a mínima semelhança com o que encontramos na Palavra de Deus. Procure o mais que puder, desde os tempos quando a Igreja de Deus foi constituída, até à conclusão do registro inspirado (as Escrituras), e você não encontrará um traço sequer de haver existido a prática do ministério por um único homem. São mencionados apóstolos, anciãos (ou bispos), diáconos, pastores e doutores (ou mestres), e evangelistas; mas não existe qualquer indicação de algo parecido com os ministros e pregadores de nossos dias. Pois todas as denominações da Cristandade – salvo uma ou duas exceções pouco significativas – concordam em sua opinião quanto ao que é o ministério. Nas denominações, como regra geral, um homem é escolhido para cuidar ou tomar o encargo de uma “igreja” ou congregação, e dele se espera que ensine, pregue o Evangelho e seja um pastor. Em poucas palavras, espera-se que nele estejam unidos os ofícios de um ancião, e os dons de um pastor e mestre, e também de um evangelista. Desta forma, é comum ocorrer que somente um homem tenha o completo e contínuo cuidado da mesma congregação por vinte, trinta ou quarenta anos; e não pode ser negado que os cristãos professos gostam que seja assim.
Mas a questão é: será que tal prática é bíblica? Conto com mais um pouco de sua paciência enquanto procuro responder a esta pergunta com base na própria Palavra de Deus. Nem preciso lembrá-lo de que nosso bendito Senhor escolheu apóstolos durante Sua jornada terrena, e que, após Sua ressurreição e ascensão, apareceu a Saulo e também o escolheu, fazendo dele, de uma forma especial, o apóstolo dos Gentios (At 9, 22, 26; 1 Cor 15).
Os apóstolos, como todos reconhecem, tiveram um lugar único e peculiar foram dotados de autoridade e dons extraordinários e nunca tiveram sucessores. Não deveria detê-lo por mais tempo falando sobre isto pois a inexistência de sucessores dos apóstolos é geralmente aceita fora das igrejas Romana e Anglicana (ao menos no Ocidente). Portanto creio que duas passagens serão suficientes. Pedro, escrevendo aos crentes de seu próprio povo “aos estrangeiros dispersos no Ponto”, etc. diz, “eu procurarei (por meio de sua carta) em toda a ocasião que depois da minha morte tenhais lembrança destas coisas” (2 Pe 1.15). Assim ele os entregava, para o futuro, à direção estabelecida pela Palavra escrita (e não pela sucessão apostólica). Do mesmo modo, Paulo, ao se dirigir aos anciãos da Igreja em Éfeso, alertando-os para as dificuldades e perigos que haviam de vir, diz, “Agora, pois, irmãos, encomendo-vos a Deus e à palavra da sua graça” (At 20.32). Portanto, os dois grandes apóstolos o da circuncisão, e o da incircuncisão concordavam neste ponto; igualmente declaram que a fonte onde a Igreja deveria buscar o seu suprimento deveria ser a Palavra de Deus. Fica bem evidente que eles não previam sucessores para exercer o seu ofício.
O ofício seguinte, na ordem que nos é apresentado na Palavra de Deus, é o de bispos ou anciãos. Digo bispos ou anciãos pois na verdade nada mais são do que dois nomes para o mesmo ofício. O capítulo 20 de Atos torna isto bem evidente e elimina qualquer discussão que se pretenda a respeito. Lemos ali que Paulo mandou chamar os “anciãos da igreja” (verso 17). Ao se dirigir a eles, ele os chama de “bispos” (verso 28). Bem, eles nunca são encontrados no singular. A Igreja em Éfeso, no versículo que citamos, tinha mais de um bispo. Paulo chamou os “anciãos” da Igreja. O mesmo ocorre em Atos 14.23 quando Paulo e Barnabé elegeram “anciãos em cada igreja”. Também na epístola aos Filipenses lemos de “bispos e diáconos” (Fp 1.1), “anciãos” (At 15.23) ou “presbíteros” (Tt 1.5).
Passando agora à questão dos dons, que se trata de algo distinto dos ofícios, iremos encontrar “pastores e doutores” (ou mestres, segundo outras traduções) (Ef 4.11). Vou tratar de ambos de uma só vez pois, na verdade, eles encontram-se ligados nas Escrituras, e ligados de uma forma tão estreita na passagem citada como que para indicar que poderiam ser encontrados em uma mesma pessoa. Será que isto autorizaria uma só pessoa a tomar o encargo de toda uma congregação? De maneira nenhuma, pois lemos que “na igreja que estava em Antioquia havia alguns profetas e doutores”, sendo apresentados a seguir os nomes de pelo menos cinco deles (At 13.1).
Para aqueles que pensam que Timóteo e Tito formam uma evidência em contrário, basta uma breve análise para que isto também seja esclarecido. A Tito é dito claramente que ele havia sido deixado em Creta para que pusesse “em boa ordem as coisas que ainda restam, e de cidade em cidade estabelecesse presbíteros” (Tt 1.5); e a Timóteo são mostradas quais as qualificações dos bispos (1 Tm 3), e é expressamente ordenado para não impor “precipitadamente as mãos” a ninguém (1 Tm 5.22), isto é, para não designá-los para o ofício. Portanto nada pode estar mais claro do que o fato de que estes dois, Timóteo e Tito, estavam agindo com a autoridade que lhes foi delegada pelo apóstolo e como tais estavam fazendo um tipo de supervisão geral, tendo ainda autoridade para nomear homens idôneos para o ofício de bispos e diáconos; uma autoridade exercida por indivíduos, e não por igrejas. E ela nunca foi exercida senão pelos apóstolos, ou no caso que acabamos de ver, por seus delegados diretos, nunca tendo sido transmitida a qualquer sucessor, e havendo consequentemente cessado com a morte dos apóstolos.
Falta ainda outro dom que deve ser notado – o dom de evangelista (Ef 4.11). Vem depois de “profetas”, mas vamos tratar dele antes devido ao seu caráter. Como o próprio nome diz, o trabalho do evangelista é pregar o Evangelho; portanto o alvo do seu ministério não é a Igreja, mas o mundo. O próprio Senhor descreve a responsabilidade do evangelista quando ordena aos Seus apóstolos, “Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura” (Mc 16.15). Tentar limitar o trabalho de um evangelista a uma congregação, ou mesmo a uma única vila ou cidade, é ignorar o propósito do seu dom. Por isso o apóstolo Paulo, quando fala de si mesmo a este respeito, diz, “Eu sou devedor, tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes. E assim, quanto está em mim, estou pronto para também vos anunciar o Evangelho, a vós que estais em Roma” (Rm 1.14-15).
Voltamos à questão: De acordo com a Palavra de Deus, qual é o verdadeiro caráter do ministério? Em primeiro lugar, ele flui de Cristo que está à direita de Deus, como Cabeça da Igreja. É Ele a fonte. “Mas a graça foi dada a cada um de nós segundo a medida do dom de Cristo. Pelo que diz: Subindo ao alto, levou cativo o cativeiro, e deu dons aos homens… E Ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores, querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo; até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a varão perfeito, à medida da estatura completa de Cristo” (Ef 4.7-13). Eis um princípio importante: os dons não foram dados à Igreja, mas aos homens para benefício da Igreja. Sendo assim, aqueles que os receberam são responsáveis – não perante a Igreja, mas diante do Senhor – pelo seu exercício. Portanto a Igreja fica impossibilitada de designar pastores e doutores (ou mestres) ou qualquer dos dons mencionados, uma vez que vimos que a responsabilidade da Igreja é de receber o ministério de todo aquele que foi qualificado pelo Senhor para a sua edificação. Assim como o ofício apostólico de Paulo, o dom não vem “da parte dos homens, nem por homem algum” (Gl 1.1), mas do Cristo ressuscitado.
Existe outra verdade de igual importância, a saber, que os dons só podem ser adequadamente exercitados no poder do Espírito Santo. A presença do Espírito Santo é a característica marcante desta dispensação. Ele habita na casa de Deus, a Igreja, e habita também nos crentes (Jo 7.39; 14.16-17; At 2; Rm 8.15-16; 1 Cor 6.19; 2 Cor 6.16; Ef 1.13; 2.22; etc.). Portanto, quando os crentes estão reunidos, conforme nos ensina 1 Coríntios 12 e 14, o Espírito Santo atua soberanamente nos membros do corpo de Cristo e também por meio destes, de acordo com o dom de cada um: “Porque a um pelo Espírito é dada a palavra da sabedoria; e a outro, pelo mesmo Espírito, a palavra da ciência;… mas um só e o mesmo Espírito opera todas estas coisas, repartindo particularmente a cada um como quer” (1 Cor 12.8-11). Qualquer regra humana para o ministério na assembleia não só é incompatível com esta verdade, como chega ao ponto de ignorar totalmente o direito que o Espírito de Deus tem de ministrar por meio de quem Ele escolher. Com toda a certeza isto é algo extremamente solene e não deve ser tratado com leviandade. Mas como é triste vermos que isto é menosprezado pela maioria! Além do mais, a presença da Espírito Santo é de tal forma esquecida, que a autoridade e as pretensões do homem a substitui, sendo isto aceito e considerado perfeitamente correto pela grande maioria dos que professam ser de Cristo.
Você deve ter o cuidado de observar que as Escrituras não ensinam que todos têm liberdade para ministrar, mas que deve haver liberdade para o Espírito Santo ministrar por meio de quem Ele quiser. Existe uma enorme diferença entre ambas as coisas. A primeira seria democracia, e não há nada mais longe dos pensamentos de Deus do que isto; a segunda envolve a manutenção do Senhorio de Cristo no poder do Espírito; a sujeição de todos os membros do corpo à Cabeça, e completa dependência da direção e sabedoria do Espírito de Deus. No primeiro caso, o homem é quem toma a primazia; no segundo, Cristo é reconhecido como supremo.
Enquanto afirmamos estes princípios cardeais do ministério, devemos ser cuidadosos em lembrar que todo verdadeiro ministério deve estar em sujeição à Palavra de Deus e em conformidade a ela. Isto está claro nas instruções de 1 Coríntios 14. O apóstolo chega até mesmo a dar instruções precisas concernentes ao exercício dos dons, e segue dizendo, “Se alguém cuida ser profeta, ou espiritual, reconheça que as coisas que vos escrevo são mandamentos do Senhor” (1 Cor 14.37). À assembleia é dado com isso o direito, ou mais ainda, a responsabilidade de julgar se aquilo que está sendo ministrado está de acordo com a verdade (1 Cor 14.29), e rejeitar tudo aquilo que não esteja de acordo com este critério. Portanto, não se trata de algo deixado à mercê de homens voluntariosos, mas é algo dado como salvaguarda para inspecionar e repreender toda manifestação que seja da carne e não do Espírito.
Pode-se acrescentar algo mais. Após tratar da questão dos dons, e mostrar que o seu exercício sem amor é de nenhum valor (1 Cor 12 e 13), o apóstolo ensina que o propósito do exercício dos dons é a edificação da assembleia (1 Cor 14.3-5). Quão maravilhosos são os caminhos de Deus! Reunidos pelo Espírito ao redor da Pessoa de nosso Senhor Jesus, à Sua mesa, para celebrar a Sua morte, Ele dirige os nossos corações em adoração e louvor, e então Ele ministra a nós aquilo que vem diretamente de Deus por meio dos vários membros do corpo de Cristo. Ocorre, assim, uma dupla ação do Espírito. Ele nos capacita a oferecer os sacrifícios de louvor a Deus e, consciente das nossas necessidades, provê a palavra de sabedoria, conhecimento ou exortação, conforme nossa necessidade no momento.
Creio que atingi os limites desta minha carta. De qualquer forma, você mesmo será capaz de descobrir mais sobre este assunto, e assim verificar se o que já lhe adiantei está de acordo com a Palavra de Deus. “Examinai tudo. Retende o bem” (1 Ts 5.21). É recomendável ainda a leitura de Romanos 12.4-8 e 1 Pedro 4.10-11.
A Palavra de Deus
Nunca é demais darmos ênfase à importância e ao valor da Palavra de Deus. O amor a ela deveria verdadeiramente ser uma característica de todo crente; e não seria demais acrescentar que o nosso crescimento na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo está amplamente ligado a ela. Veja, por exemplo, o Salmo 119 e você irá constatar como ele está relacionado com cada fase na vida espiritual do salmista. Algumas de suas expressões podem bem nos deixar humilhados, na medida em que nos revelam o lugar que a Palavra ocupava em suas afeições. Ele diz, “Recrear-me-ei nos Teus estatutos: não me esquecerei da Tua palavra”, “também os Teus testemunhos são o meu prazer e os meus conselheiros”, “e recrear-me-ei em Teus mandamentos, que eu amo” (versos 16, 24, 47). Em uma linguagem ainda mais forte, ele exclama, “Oh! quanto amo a Tua lei! é a minha meditação em todo o dia”; e ainda mais, “Pelo que amo os Teus mandamentos mais do que o ouro, e ainda mais do que o ouro fino” (versos 97, 127). Jó, de maneira semelhante diz, “as palavras da Sua boca prezei mais do que o meu alimento” (Jó 23.12). E desde aquela época até os nossos dias, a mesma característica sempre foi encontrada em todas as mentes sinceras, devotas e espirituais. Proponho, portanto, mostrar a você nesta carta alguns dos muitos aspectos nos quais a Palavra de Deus é apresentada, em sua relação com o crente.
1. É por meio dela que se dá o novo nascimento. “Segundo a Sua vontade, Ele nos gerou pela palavra da verdade” (Tg 1.18). “Sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre” (1 Pe 1.23). Nosso Senhor ensina a mesma verdade quando diz que o homem tem que “nascer da água e do Espírito” (Jo 3); pois a água é um bem conhecido símbolo da Palavra (Ef 5.26).
2. Assim como por meio dela se dá o novo nascimento, ela é também o alimento adequado para a nova natureza. Pedro assim declarou: “Desejai afetuosamente, como meninos novamente nascidos, o leite racional, não falsificado, para que por ele vades crescendo: se é que já provastes que o Senhor é benigno” (1 Pe 2.2-3). Somos constantemente lembrados de que “Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4.4; Deuteronômio 8.3). A Palavra é, portanto, o alimento e sustento adequado para a vida espiritual, o meio de nos mantermos nutridos e fortalecidos em Cristo, à medida que seguimos em nossa jornada através do deserto, aguardando a volta do Senhor, ou a nossa partida para estarmos com Ele, o que é muito melhor. Digo em Cristo, pois, como você já sabe, o próprio Cristo é nosso alimento, tanto no sentido do maná ou do fruto da terra prometida (Ex 16.15, 31; Js 5.11-12), como também, voltando ainda mais no tempo, o cordeiro assado no fogo de que nos fala Êxodo capítulo 12; e é somente na Palavra de Deus que Ele nos é revelado nestes Seus diversos caracteres. Se queremos colher o maná para nossa necessidade diária, temos que percorrer os Evangelhos e epístolas, onde encontramos Cristo apresentado de uma forma especial para nós como o humilde Cristo encarnado; e do mesmo modo, se desejarmos nos alimentar d’Ele como o “fruto da terra”, o Cristo glorificado, somos levados a buscar as epístolas, como Colossenses 3 ou Filipenses 3, que O apresentam em num caráter assim para nossa alma. As Escrituras são, deste modo, os “verdes pastos” aos quais o Bom Pastor quer levar o Seu rebanho.
3. A Palavra de Deus é nosso único guia. “Lâmpada para os meus pés é a Tua palavra, e luz para o meu caminho” (Sl 119.105). Quando Josué estava para introduzir o povo de Israel na terra de Canaã, o Senhor lhe disse, “Tão somente esforça-te e tem mui bom ânimo, para teres o cuidado de fazer conforme a toda a lei que Meu servo Moisés te ordenou; dela não te desvies, nem para a direita nem para a esquerda, para que prudentemente te conduzas por onde quer que andares. Não se aparte da tua boca o livro desta lei; antes medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer conforme a tudo quanto nele está escrito; porque então farás prosperar o teu caminho, e então prudentemente te conduzirás” (Js 1.7-8). Do mesmo modo como ocorre no Antigo Testamento, no Novo Testamento a Palavra de Deus é constantemente apresentada como nosso único guia, à medida que atravessamos este mundo cheio de perigos.
“Qual pilar de fogo numa noite atroz
E radiante nuvem na jornada ao dia;
Se nos ferem ondas deste mar veloz,
Tua Palavra é âncora, bússola e guia!”
(At 20.32; 2 Ts 3.14; 2 Tm 3.15-17; 2 Pe 1.15; 1 Jo 2.27; Jd 3).
4. A Palavra de Deus é nosso meio de defesa contra as tentações e “ciladas do Diabo”, ao mesmo tempo em que é chamada de “espada do Espírito” (Ef 6.17). Foi a única arma de nosso bendito Senhor durante a Sua tentação. A todas as seduções que Satanás colocou diante de Sua alma – e Satanás O atacou por todos os lados e de todas as formas – Ele respondia, “Está escrito…”. Da primeira à última, Ele nunca expressou um pensamento sequer de Si mesmo, mas confiou a Sua defesa inteira e unicamente na Palavra de Deus. Consequentemente, Satanás ficou completamente sem poder algum contra o Senhor; não podia avançar um passo sequer, tendo que bater em retirada derrotado e frustrado em seu intento. E como aconteceu então, ele fica sem poder ainda hoje, quando é enfrentado da mesma maneira. Ele não pode tocar um crente obediente e dependente de Deus. Que todo crente, jovem ou velho, possa ter sempre isto em mente!
5. A Palavra de Deus é o único padrão de doutrina e de prática. Por isso temos que provar pela Palavra tudo aquilo que nos for apresentado. Em cada uma das cartas às sete igrejas, lemos, “Quem tem ouvidos ouça o que o Espírito diz às igrejas” (Ap 2.7, 11, 17, 29; 3.6, 13, 22). Tanto elas como suas práticas tinham que ser avaliadas segundo o infalível padrão da Palavra. Do mesmo modo, com frequência o apóstolo Paulo recorda, àqueles a quem escreve, a responsabilidade de avaliar tudo à luz daquilo que ele havia ensinado (Gl 1.8-9; 1 Cor 15.1-11; 2 Ts 2.15; 3.14).
6. A Palavra de Deus é o meio pelo qual alcançamos santidade prática. Nosso Senhor assim orou, quando Se apresentou diante do Pai: “Santifica-os na verdade: a Tua palavra é a verdade” (Jo 17.17). É, portanto, somente pela aplicação constante da Palavra em nós mesmos, em nosso andar e em nossos caminhos, que vamos sendo gradativamente afastados do mal; do mesmo modo como é pela aplicação da Palavra por meio do Espírito que o Senhor, como nosso Advogado perante o Pai, lava os pés daqueles que são Seus. Esta é a obra que Ele, em Sua graça, tem executado em nosso favor. Não devemos, porém, nos esquecer da responsabilidade que nos cabe de continuamente nos julgarmos pela Palavra na presença de Deus. Quantas provas e repreensões seriam evitadas se fossemos mais fiéis neste particular! “Porque, se nós nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados” (1 Cor 11.31). Sendo assim, o salmista pergunta, “Como purificará o mancebo o seu caminho? observando-o conforme a Tua palavra” (Sl 119.9). E ele reafirma, “pela palavra dos Teus lábios me guardei das veredas do destruidor” (Sl 17.4). É somente pelas Escrituras que aprendemos a vontade de Deus; e é pela aplicação da Palavra no poder do Espírito que somos separados, por um lado, daquilo que é contrário à Sua vontade, e somos levados, por outro lado, a nos conformar com essa mesma vontade. Isto se torna um processo constante no qual vamos atingindo uma santidade cada vez maior, cuja perfeição só é encontrada no Cristo glorificado à direita de Deus.
7. Finalmente, gostaria de lembrá-lo do valor que Deus dá à obediência à Sua Palavra. Veja, por exemplo, a conhecida passagem, “Se alguém Me ama, guardará a Minha palavra, e Meu Pai o amará, e viremos para ele, e faremos nele morada” (Jo 14.23). Veja que imensa bênção está condicionada a guardarmos a Sua Palavra! Por isso jamais deveríamos passar por alto o fato de que nesta passagem é inteiramente condicional a promessa do amor do Pai e de Sua vinda juntamente com o Filho para fazer morada conosco. E ainda no capítulo seguinte, Ele diz, “Se guardardes os Meus mandamentos, permanecereis no Meu amor; do mesmo modo que Eu tenho guardado os mandamentos de Meu Pai, e permaneço no Seu amor” (Jo 15.10). Embora sem querer multiplicar as citações, pode-se acrescentar o versículo que se encontra no final do registro sagrado, quando Ele diz, “Eis que presto venho: Bem-aventurado aquele que guarda as palavras da profecia deste livro” (Ap 22.7). Desta forma Ele não apenas espera que apreciemos e entesouremos aquilo que Ele Se dignou a nos comunicar, mas também que nos deliciemos, em nossos corações, com cada Palavra que procede da Sua boca. Sim, Ele fez da obediência a mais alta expressão de nosso amor. “Se Me amardes, guardareis os Meus mandamentos” (Jo 14.15).
Por meio deste simples esboço de alguns dos usos da Palavra de Deus, e de algumas de nossas responsabilidades em relação a ela, você irá pelo menos reconhecer sua suprema importância para o crente. Permita-me, então, fazer uma ou duas observações práticas que poderão ser úteis a você e a outros jovens cristãos. Antes de mais nada, você verá a necessidade de se familiarizar com as Escrituras. Por exemplo, eu não poderia repelir uma tentação, como o Senhor o fez, a menos que estivesse familiarizado com as passagens das Escrituras que atendessem àquela necessidade específica. Do mesmo modo, podem existir muitas situações em que eu poderia me desviar simplesmente por não saber que o Senhor já revelou a Sua vontade na Sua Palavra para aquele determinado caso. Portanto, uma das primeiras obrigações do crente é estudar a Palavra de Deus. “Filho Meu, se aceitares as Minhas palavras, e esconderes contigo os Meus mandamentos, para fazeres atento à sabedoria o teu ouvido, e para inclinares o teu coração ao entendimento, e se clamares por entendimento, e por inteligência alçares a tua voz, como a prata a buscares e como a tesouros escondidos a procurares, então entenderás o temor do Senhor, e acharás o conhecimento de Deus. Porque o Senhor dá a sabedoria: da Sua boca vem o conhecimento e o entendimento” (Pv 2.1-6). É neste espírito que você deve buscar e sistematicamente estudar as Escrituras, se deseja estar “perfeitamente instruído para toda a boa obra” (2 Tm 3.17). Não estou dizendo: “Não leia outro livro”, mas sim que faça da Bíblia sua principal companhia, e limite-se tanto quanto for possível a ler somente aqueles livros que irão ajudá-lo a compreendê-la, pois deveria ser o principal desejo de todo crente conhecer plenamente a mente e a vontade de Deus.
Devo também aconselhá-lo, se você lê muito, que medite bastante. “O preguiçoso não assará a sua caça” (Pv 12.27). Ele encontra seu prazer na caçada, mas uma vez que encontra uma caça, já se dá por satisfeito. Assim acontece com muitos ao lerem a Palavra. O seu prazer fica sendo adquirirem a verdade, e uma vez que conseguem, se satisfazem e acabam não desfrutando das suas bênçãos. Em uma passagem que já citei, o Senhor diz a Josué, “Não se aparte da tua boca o livro desta lei; antes medita nele dia e noite” (Js 1.8; Sl 1.2; 119.97; Pv 22.17-18; 1 Tm 4.15). Pois é pela meditação na presença do Senhor que toda a doçura, beleza e poder da Palavra nos são desvendados. Nunca, portanto, perca uma oportunidade de meditar nas Escrituras que você estiver lendo. E, finalmente, lembre-se sempre de estar totalmente dependente do Espírito de Deus para a compreensão da Palavra. “Porque qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o espírito do homem, que nele está? assim também ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus. Mas nós não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que provém de Deus, para que pudéssemos conhecer o que nos é dado gratuitamente por Deus” (1 Cor 2.11-12).
Se você ler desta maneira as Escrituras, será levado diariamente a uma familiarização crescente com a verdade, estando então em uma comunhão cada vez mais íntima com o Pai e com Seu Filho Jesus Cristo.
Oração
Resta apenas mais um assunto para lhe apresentar nesta série de cartas. Em minha última carta mostrei a importância da Palavra de Deus e agora gostaria de falar da oração e de sua conexão com a vida espiritual. Ambas as coisas – a Palavra de Deus e a oração – estão sempre ligadas. Assim também foi nos benditos afazeres da vida de nosso Senhor. Após um longo dia de ministério, encontramos um registro como este: “Porém Ele retirava-se para os desertos, e ali orava” (Lc 5.16); “E aconteceu que naqueles dias subiu ao monte a orar, e passou a noite em oração a Deus” (Lc 6.12). O mesmo encontramos nos primórdios da igreja, pois quando surgiram dificuldades com respeito à distribuição das ofertas dos santos, o apóstolo disse, “Não é razoável que nós deixemos a palavra de Deus e sirvamos às mesas… nós perseveraremos na oração e no ministério da palavra” (At 6.2-4). O apóstolo Paulo também uniu a Palavra de Deus à oração quando descreveu a armadura completa de Deus: “Tomai também o capacete da salvação, e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus; orando em todo o tempo com toda a oração e súplica no Espírito” (Ef 6.17-18).
Temos, além do mais, exortações diretas para a oração, como por exemplo, “perseverai na oração”, “orai sem cessar”, etc. (Rm 12.12; I Ts 5.17; Lc 18). Se você ler também as introduções das epístolas de Paulo, verá como ele próprio agia de acordo com as suas exortações. À medida que você for seguindo o caminho do apóstolo, como nos é traçado no livro de Atos, chegará a pensar que ele nunca fez coisa alguma além de pregar; mas ao ler as introduções e outras partes de suas epístolas, você quase chegará a conclusão de que ele nunca fez outra coisa senão orar. Aproximando-se do exemplo de nosso bendito Senhor em Seus incansáveis trabalhos, iremos encontrar que Ele descobriu – sim, que Ele até mesmo aprendeu – a necessidade de esperar constantemente em Deus. De modo semelhante, a oração é uma necessidade para cada filho de Deus, pois em nós mesmos somos fracos e incapazes, totalmente dependentes, e a oração nada mais é do que a expressão de nossa dependência n’Aquele a Quem oramos. Sendo dependentes de Deus para tudo, nossas próprias necessidades nos levam correndo à Sua presença; e pela liberdade de acesso que temos por meio de Cristo, graças ao lugar que ocupamos e em virtude do parentesco que desfrutamos, é mister que “cheguemos pois com confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia e achar graça a fim de sermos ajudados em tempo oportuno” (Hb 4.16).
1. Nosso Senhor ensina como deveria ser, por assim dizer, a maneira de orarmos. Falando aos Seus discípulos acerca da época quando Ele estaria ausente, Ele diz, “E tudo quanto pedirdes em Meu nome Eu o farei”; e mais uma vez, “Se pedirdes alguma coisa em Meu nome, Eu o farei” (Jo 14.13-14). Duas coisas estão envolvidas nisto. O nome de Cristo é nossa garantia para nos apresentarmos diante de Deus, diante do Pai, recordando-nos de que nossas únicas credenciais para essa aproximação encontram-se em Cristo somente. Com certeza isto nos dá confiança. Se fosse para pensarmos em nós mesmos, em nossas falhas e indignidades, nunca iríamos nos aventurar a entrar na presença de Deus; mas quando os nossos olhos estão voltados para Cristo, para o que Ele é em Si mesmo, o que Ele é para Deus, e o que Ele é para nós, lembrando-nos de que entramos na presença de Deus em toda a infinita aceitação que Cristo ali desfruta, somos levados a compreender que Deus tem prazer em nós – em nos aproximarmos, em nossas lágrimas e orações. Somos, assim, encorajados a nos aproximarmos de Deus, e a derramarmos nosso coração diante d’Ele a qualquer hora de tribulação ou necessidade.
Mas pedir em nome de Cristo é mais do que usar o Seu nome como uma credencial de acesso; trata-se, na verdade, de nos apresentarmos diante de Deus munidos de todo o valor e autoridade daquele nome. Se, por exemplo, eu vou a um banco para sacar o dinheiro de algum cheque que recebi, estou retirando aquele valor em nome da pessoa que assinou o cheque. Do mesmo modo, quando me apresento diante de Deus em nome de Cristo, estou apresentando minhas súplicas a Deus com base em todo o valor que aquele nome tem para Deus. É por isso que nosso Senhor diz que, “se pedirdes alguma coisa em Meu nome Eu o farei” (Jo 14.14), pois trata-se verdadeiramente de um gozo para o coração de Deus aceitar toda petição que é assim apresentada. A promessa é absoluta, sem qualquer limitação; pela simples razão de que nada poderia ser pedido em nome de Cristo que não estivesse de acordo com a vontade de Deus. Pois não poderíamos nos valer de Seu nome para qualquer pedido que não tivesse sido inspirado em nosso coração pelo próprio Espírito de Deus.
2. No capítulo 15 de João, nosso Senhor nos dá mais instruções a respeito do mesmo assunto. “Se vós estiverdes em Mim, e as Minhas palavras estiverem em vós, pedireis tudo o que quiserdes, e vos será feito” (Jo 15.7). Podemos conectar isto com outra passagem: “E esta é a confiança que temos n’Ele, que, se pedirmos alguma coisa, segundo a Sua vontade, Ele nos ouve” (1 Jo 5.14). Vemos que é segundo a vontade de Deus, o que exclui tudo aquilo que não esteja neste caráter. Mas nosso Senhor diz, “tudo o que quiserdes”, e isto nos traz diante de um aspecto muito importante da oração. Neste caso trata-se de algo condicional: “Se vós estiverdes em Mim, e as Minhas palavras estiverem em vós”; isto é, permanecendo em Cristo, lembrando-nos sempre de nossa dependência d’Ele para tudo, e de que sem Ele nada podemos fazer; e Suas palavras permanecendo em nós, nos moldando conforme a Sua vontade, nos fazendo conformes a Si mesmo, necessariamente iremos expressar Seus próprios pensamentos e desejos, e, consequentemente, o “tudo o que quiserdes” acabará sendo, neste caso, “segundo a Sua vontade”. Será notado, ao mesmo tempo, que o poder de nossas orações depende de nossa condição espiritual. Trata-se de um princípio infalível. O mesmo é apresentado pelo apóstolo João: “Se o nosso coração nos condena, maior é Deus do que os nossos corações, e conhece todas as coisas. Amados, se o nosso coração nos não condena, temos confiança para com Deus; e qualquer coisa que Lhe pedirmos, d’Ele a receberemos; porque guardamos os Seus mandamentos, e fazemos o que é agradável à Sua vista” (1 Jo 3.20, 22). Tiago também nos diz que, “a oração feita por um justo pode muito em seus efeitos” (Tg 5.16). Isto é de extrema importância, pois se negligenciarmos nosso estado espiritual, e como consequência perdermos nossa presente comunhão com Deus, nossas orações se tornarão frias e sem vida, degeneradas em uma repetição de verdades conhecidas ou de velhas frases, perdendo assim todo o seu significado e transformando-se em fórmulas mortas. As palavras se repetirão a fim de satisfazer a consciência, mas não expressarão qualquer necessidade sincera, e nenhum derramar da alma perante Deus, deixando de trazer qualquer tipo de resposta ou bênção. Cuidado com um tal estado de espírito! Ele geralmente é prenúncio de um descarrilamento na vida do crente, e, se não for reprimido a tempo pela graça de Deus, irá acabar lançando a alma em aberta vergonha e desonra ao nome de Cristo.
3. Os usos da oração são múltiplos. Em primeiro lugar, o Senhor nos associou Consigo mesmo em todos os Seus desejos. Sim, nossa comunhão é com o Pai, e com o Seu Filho Jesus Cristo (1 Jo 1.3). Por isso, Deus espera que o nosso amor seja dirigido para tudo aquilo que é precioso ao Seu próprio coração. Ele nos incluiu em Seus interesses, e, portanto, quer que nos inteiremos da Sua vontade e que esta seja o objeto de nossas orações. Que imenso privilégio! Ele nos permite percorrer todos os Seus propósitos que nos são revelados na Sua Palavra; assistir com gozo ao cumprimento dos mesmos; observar a todos eles convergindo para a Pessoa do Seu amado Cristo e irradiando da mesma Pessoa, enquanto que tudo se reverte em glória ao Seu nome! Verdadeiramente, se formos capazes de entrar totalmente no gozo dessa esplêndida posição, pelo poder do Espírito, não deixaremos de ter um assunto ou um motivo para orar.
Além disso, podemos expressar em oração as múltiplas necessidades de nossas próprias almas. “Não estejais inquietos por coisa alguma: antes as vossas petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus pela oração e súplicas, com ação de graças. E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos sentimentos em Cristo Jesus” (Fp 4.6-7). O mais marcante nesta passagem é que ela é encontrada no mesmo capítulo em que o apóstolo nos assegura, “O meu Deus, segundo as Suas riquezas, suprirá todas as vossas necessidades em glória, por Cristo Jesus” (Fp 4.19). Apesar desta bendita confiança que temos, continua válido o desejo de Deus para que nós, com toda a liberdade que temos como filhos, façamos conhecidas diante d’Ele as nossas petições; e embora Ele não nos prometa que sempre atenderá a todas elas sem distinção, Ele nos assegura que a Sua paz guardará os nossos corações. É desta forma, portanto, que se estabelece a confiança em nosso relacionamento para com Deus; que é formado o inestimável hábito de podermos abrir o nosso coração, sem reservas, para com Ele, e que é cultivada a intimidade de comunhão. Foi em relação a isto que o salmista exclamou, “Confiai n’Ele, ó povo, em todos os tempos; derramai perante Ele o vosso coração” (Salmo 62.8); e o apóstolo Pedro disse, “Lançando sobre Ele toda a vossa ansiedade, porque Ele tem cuidado de vós” (1 Pe 5.7).
4. Deve ser acrescentado que a palavra de Deus dá grande ênfase à conexão da fé com a oração. Nosso Senhor diz, “Por isso vos digo que tudo o que pedirdes, orando, crede que o recebereis, e tê-lo-eis” (Mc 11.24). Tiago também, após sua exortação para que se peça a Deus a sabedoria, diz, “Peça-a, porém, com fé, não duvidando” (Tg 1.6); e em outra passagem, acrescenta que “a oração da fé salvará o doente” (Tg 5.15). O mesmo encontramos em Hebreus, quando lemos que “sem fé é impossível agradar-Lhe: porque é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que Ele existe, e que é galardoador dos que O buscam” (Hb 11.6). É fácil compreender isto, pois certamente Deus tem o direito de contar com nossa confiança em Seu amor e no Seu caráter, e com nossa fé na Sua Palavra, uma vez que Ele já Se revelou tão plenamente a nós na Pessoa de Seu Filho. Por isso, seria uma desonra para o Seu nome se duvidássemos ao nos aproximarmos d’Ele. E assim como Ele espera que tenhamos confiança e fé, Ele deseja que contemos com Sua fidelidade e amor. Por isso o nosso bendito Senhor recorda a Seus discípulos, “vosso Pai sabe o que vos é necessário, antes de vós Lho pedirdes” (Mt 6.8). E o apóstolo Paulo nos ensina que, “Aquele que nem mesmo a Seu próprio Filho poupou, antes O entregou por todos nós, como nos não dará também com Ele todas as coisas?” (Rm 8.32). Portanto, é o dom do Seu próprio Filho, Sua maior dádiva e a mais perfeita garantia do Seu amor, que é o fundamento sobre o qual podemos descansar, em completa confiança de que Ele não nos privará de qualquer bem, e que ainda Se deleitará em nos abençoar conforme o Seu próprio coração, e de acordo com o Seu próprio conhecimento de nossa necessidade.
5. Mais uma vez, toda verdadeira oração deve ser no Espírito Santo, e por meio d’Ele (Rm 8.26-27; Fp 3.3; Jd 20). Ele é o poder para a oração, como também o é para toda atividade da vida espiritual. Somos, assim, totalmente dependentes do Senhor Jesus Cristo para termos acesso a Deus; dependentes do Espírito Santo para termos o poder para orar, e dependentes de Deus para recebermos as bênçãos que buscamos. Ao Seu nome seja dado todo o louvor!
Não vou me estender mais do que isto. Porém creio que você entenderá que devo exortá-lo quanto à importância de perseverar em oração. Não temos o direito de impor quaisquer normas ou regras quanto a este assunto, seja com respeito à hora ou à frequência com que se deve orar. Mas de uma coisa você pode ter certeza – nunca é demais orar. E se você permanecer na presença de Deus, encontrará sempre o momento e a disposição necessários à oração. Nossa responsabilidade é orar sem cessar, sempre mantendo sem interrupção a consciência de dependência, e de nossa necessidade da graça divina. Assim estaremos sempre lançando sobre Deus toda a nossa ansiedade, sempre desfrutando de liberdade de coração em Sua presença, e consequentemente estaremos sempre encontrando, no constante recebimento de Suas misericórdias, graça e bênção como respostas às nossas petições, as quais certamente se transformarão em novos temas para louvor e ações de graças.
Edward Dennett, Blackheath, dezembro de 1877. Extraído da Revista “Christian’s Friend”.