Qualquer homem de inteligência média, ainda que não instruído das verdades do cristianismo, chegando a ler esse texto, certamente concluirá que João tencionava ensinar que falar faz parte da natureza de Deus, ou seja, Ele deseja comunicar seus pensamentos aos outros seres inteligentes. E teria plena razão. A palavra (verbo) é o meio através do qual os pensamentos são expressos – pelo que também a aplicação do termo “Verbo” ao Filho eterno de Deus leva-nos a crer que a auto expressão faz parte inerente da divindade, e que Deus está sempre procurando falar de Si mesmo às Suas criaturas. E a Bíblia inteira apoia essa ideia. Deus continua falando. Não somente falou, mas continua falando. Por força de Sua própria natureza, Ele se comunica continuamente. Enche o mundo com Sua voz.
Uma das grandes realidades que temos de levar em conta, e com a qual nos vemos a braços, é a voz de Deus neste mundo. A hipótese mais simples sobre a formação do universo, e a mais certa, é essa: “Ele falou, e tudo se fez”. A razão de ser da lei natural não é outra senão a voz de Deus, imanente em Sua criação. E essa palavra de Deus, que trouxe à existência todos os mundos criados, não pode ter sido a Bíblia, porquanto esta não fora escrita nem impressa ainda, mas é a expressão da vontade de Deus, manifesta na estrutura de todas as coisas. Essa palavra que vem de Deus é o sopro divino que enche o mundo de potencialidade vital. A voz de Deus é a mais poderosa força que há na natureza, e, na realidade, a única força que atua na natureza, onde reside toda a energia pelo simples fato de que a palavra de poder foi proferida.
A Bíblia é a Palavra escrita de Deus; e, por haver sido escrita, está confinada e limitada pelas necessidades da tinta, do papel e do couro. A voz de Deus, entretanto, é viva e livre como o próprio Deus. “As palavras que eu vos tenho dito, são espírito e são vida” (Jo 6:36). A vida está encerrada nas palavras proferidas por Deus. A Palavra de Deus, na Bíblia, só tem poder porque corresponde perfeitamente à palavra de Deus no universo. É a voz presente no mundo que dá à Palavra escrita todo o seu poder. De outro modo, estaria para sempre adormecida, aprisionada entre as páginas de um livro.
Temos uma visão muito pequena e primitiva das coisas, quando pensamos em Deus, no ato da criação, a entrar em contato físico com essas coisas, a modelar, adaptar, e fabricar, como se fosse um carpinteiro. A Bíblia ensina uma coisa totalmente diversa: “Os céus por sua palavra se fizeram, e pelo sopro de sua boca o exército deles. . . Pois ele falou, e tudo se fez; ele ordenou, e tudo passou a existir” (Sl 33:6, 3). “Pela fé entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das cousas que não aparecem” (Hb 11:3). Uma vez mais, convém que nos lembremos de que Deus se refere aqui, não à Sua Palavra escrita, à Bíblia, mas antes, à voz da Sua palavra. Isto se refere à voz que enche antes o mundo, aquela voz que antecede a Bíblia em séculos e séculos; aquela voz que não silenciou mais desde o início da criação, mas que continua a soar, e alcança todos os recantos desse imenso universo.A Palavra de Deus é viva e poderosa. No princípio Ele falou ao nada, e o nada se tornou em alguma coisa. O caos a ouviu e se fez ordem, as trevas a ouviram, e se transformaram em luz. “E disse Deus. . . e assim se fez”. Essas sentenças gêmeas, como se fossem causa e efeito, ocorrem em todo o relato da criação, no livro de Gênesis. O disse explica o assim se fez. O assim se fez é o disse, poso em forma de presente contínuo.
Deus está aqui, e está sempre falando. Essas verdades são o pano de fundo de todas as demais verdades bíblicas; sem elas estas últimas não poderiam ser revelações de forma alguma. Deus não escreveu um livro para enviá-lo através de mensageiros e ser lido à distância, por mentes desassistidas. Ele “falou” um livro e vive em Suas palavras proferidas, constantemente afirmando as Suas palavras e outorgando-lhes o poder que elas têm, pelo que também persistem através de todos os séculos. Deus soprou sobre o barro, e este se transformou em homem; Ele sopra sobre os homens, e estes se tornam barro. “Porque tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3:19) foi a palavra proferida quando da queda, mediante a qual decretou a morte física de todo homem, e não foi necessário dizer mais nenhuma palavra. O triste curso da humanidade, em toda a face da terra, desde o nascimento até à sepultura, é prova de que Sua palavra original foi o bastante.
Ainda não demos atenção suficiente àquela profunda declaração que lemos no Evangelho de João: “A verdadeira luz que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem” (Jo 1:9). Pode-se mudar à vontade a pontuação, que a verdade inteira continua ali encerrada: a Palavra de Deus afeta o coração de todos os homens, porque é luz para a alma. A luz brilha no coração de todos os homens e a palavra ali ressoa, e não há como escapar dela. Isso seria uma decorrência lógica do fato de Deus estar vivo e atuante neste mundo. E João afirma que isto realmente acontece. Até mesmo aqueles que nunca ouviram da Bíblia, já ouviram a pregação da verdade com clareza suficiente para que não tenham mais desculpas. “Estes mostram a norma da lei, gravada nos seus corações, testemunhando-lhes também a consciência, e os seus pensamentos mutuamente acusando-se ou defendendo-se” (Rm 2:15). “Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das cousas que foram criadas. Tais homens são por isso indesculpáveis” (Rm 1:20).
Essa voz universal de Deus era chamada de sabedoria, pelos antigos hebreus, e dizia-se que estava em toda a parte investigando e perscrutando toda a face da terra, buscando alguma reação favorável da parte dos filhos dos homens. O oitavo capítulo do livro de Provérbios começa com as palavras: “Não clama porventura a sabedoria, e o entendimento não faz ouvir a sua voz?” O escritor sagrado, em seguida, pinta a sabedoria como uma bela mulher, postada “no cume das alturas, junto ao caminho, nas encruzilhadas das veredas”. E faz ouvir a sua voz em todos os lugares, de tal maneira que ninguém pode deixar de ouvi-la. “A vós outros, ó homens, clamo; e a minha voz se dirige aos filhos dos homens”. Então conclama os simples e os néscios para que lhe deem ouvidos. O que a sabedoria de Deus requer é a reação espiritual favorável da parte dos homens, uma resposta que ela sempre tem buscado, mas que raramente tem conseguido. A tragédia é que nosso bem-estar eterno depende de ouvirmos, mas nós temos feito ouvidos moucos.
Essa voz universal sempre soou, e perturbou os homens, mesmo quando não eram capazes de compreender a origem de seus temores. Quem sabe se essa voz, derramando-se gota a gota no coração dos homens, não é a causa oculta da consciência perturbada e do anseio pela imortalidade, confessados por milhões de pessoas, desde o início da História? Não há o que temer. Essa voz é um fato. E qualquer um pode observar como a humanidade tem reagido em face dela.
Quando do céu Deus falou ao Senhor Jesus, muitos homens que ouviram a voz explicaram-na como sendo fenômenos naturais. Diziam ter ouvido um trovão. Esse hábito de apelar às leis naturais para explicar a voz de Deus é a própria raiz da ciência moderna. Nesse universo que vive e respira, há algo misterioso, por demais maravilhoso, por demais tremendo para que qualquer mente o compreenda. O crente não exige explicações, mas dobra os joelhos e adora, sussurrando: “Deus meu”. O homem mundano também se inclina, mas não para adorar. Inclina-se para examinar, para pesquisar, para descobrir a causa e o funcionamento das coisas. O que ocorre é que estamos vivendo na era secular. Estamos acostumados a pensar como cientistas e não como adoradores. Sentimo-nos mais inclinados a pensar do que a adorar. “Foi apenas um trovão!” exclamamos nós, e continuamos levando uma vida mundana. Contudo, a voz divina continua ecoando, chamando. A ordem e a vida do mundo dependem totalmente dessa voz, mas os homens estão por demais atarefados ou são teimosos demais para dar-lhe qualquer atenção.
Cada um de nós já experimentou sensações impossíveis de serem explicadas: um súbito senso de solidão, ou um sentimento de admiração e espanto em face da vastidão universal. Ou, como que recebendo um raio de luz de um outro sol, tivemos uma revelação momentânea de que pertencemos a um outro mundo, e que nossa origem se explica em Deus. O que então sentimos, ouvimos ou vimos, talvez tenha sido contrário a tudo quanto nos tem sido ensinado nas escolas, ou esteja em total conflito com nossas crenças e conceitos. Naquele momento, em que as nuvens se dissiparam e tivemos aquela revelação pessoal, fomos forçados a afastar as dúvidas costumeiras. Por mais que queiramos explicar essas coisas, penso que não estaremos sendo sinceros, enquanto não admitirmos pelo menos a possibilidade de que tais experiências venham da presença de Deus no mundo, bem como, de Seus persistentes esforços para comunicar-Se com a humanidade. Não ponhamos de lado essa hipótese, por julgá-la falsa.
Eu, particularmente, creio (e não me ressentirei se ninguém concordar comigo) que tudo quanto de bom e de belo o homem tem produzido neste planeta é resultado de sua resposta imperfeita e imaculada pelo pecado, à voz criadora que ecoa por toda a Terra. Como explicar os filósofos moralistas que tiveram elevados sonhos de virtude; os pensadores religiosos, com suas especulações acerca de Deus e da imortalidade; os poetas e os artistas, que da matéria criaram beleza pura e duradoura? Não basta dizer simplesmente: “Ele foi um gênio”. Pois, que é um gênio? Não seria possível que um gênio fosse um homem que, “importunado” por essa voz, esforça-se e luta freneticamente para atingir um objetivo que ele apenas vagamente entende? O fato de que, na lida diária, os homens tenham perdido Deus de vista, que até mesmo tenham falado ou escrito contra Deus, não destrói a ideia que eu procuro demonstrar. A revelação redentora de Deus, nas Sagradas Escrituras, é necessária para a fé salvadora e para a paz com Deus. Para que esta inconsciente aspiração pela imortalidade leve o homem a uma comunhão satisfatória com Deus, é necessário que ele confie no Salvador ressurreto. Para mim, essa é uma explicação plausível para tudo que é excelente fora de Cristo.
A voz de Deus é amiga. Ninguém precisa temê-la, a menos que já tenha resolvido resistir a ela. O sangue de Jesus Cristo cobriu não apenas a raça humana mas também toda a criação. “E que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as cousas, quer sobre a terra, quer nos céus” (Cl 1:20). Nós podemos falar, com toda segurança, de um céu que nos é propício. Tanto os céus como a terra estão cheios da boa-vontade daquele que veio manifestar-se na sarça ardente. O sangue santo de Cristo, na expiação, garante isso para sempre.
Quem quiser aplicar os ouvidos, ouvirá a todos dos céus. Estamos numa época em que os homens decididamente não aceitam exortações de bom grado, porquanto ouvir não faz parte do conceito popular da religião. E nisto, estamos fazendo exatamente o contrário do que devemos. As igrejas, de um modo geral, aceitam a grande heresia de que fazer barulho, ser grande e ativa torna-as mais preciosas para Deus. Mas não devemos desanimar, pois é a um povo atingido pela tormenta do último e maior de todos os conflitos que Deus diz: “Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus” (Sl 46:10). E ele ainda diz o mesmo hoje, como se quisesse informar-nos de que nossa força e segurança dependem não tanto de nossa agitação. mas de nosso silêncio e serenidade.
Precisamos estar quietos para esperar em Deus. Seria melhor se pudéssemos ficar a sós, com a Bíblia aberta à nossa frente. Se quisermos, podemos nos chegar a Deus e começar a ouvi-Lo falar ao nosso próprio coração. Penso que para a média das pessoas a manifestação dessa voz será mais ou menos assim: primeiramente, ouve-se um ruído como de uma presença a andar pelo jardim. Em seguida ouve-se uma voz, mais inteligível, mas ainda não muito distinta. Depois disto, vem um instante feliz em que o Espírito Santo começa a iluminar as Sagradas Escrituras, e aquilo que até ali fora apenas um ruído, ou quando muito uma voz, agora se torna em palavra calorosa, íntima e clara como a palavra de um amigo muito caro. Depois é que vêm a vida e a luz, e, melhor de tudo, a capacidade de ver, de descansar em Jesus Cristo e de aceitá-lo como Salvador e Senhor.
A Bíblia jamais será um livro vivo para nós enquanto não ficarmos convencidos de que Deus está articulado com seu próprio universo. A transição de um mundo morto e impessoal para uma Bíblia dogmática é difícil para a maioria das pessoas. Talvez admitam que devem aceitar a Bíblia como a Palavra de Deus, e talvez até tentem pensar nela como tal; mas depois descobrirão ser impossível crer que as palavras, escritas nas páginas da Bíblia, se aplicam à sua vida. Um homem pode dizer com os lábios: “Estas palavras foram dirigidas a mim”, e, contudo, em seu coração sentir que não sabe o que elas dizem. É, nesse caso, vítima de um raciocínio errado – pensa que Deus permanece mudo em tudo o mais, e se manifesta apenas em seu livro.
Acredito que grande parte de nossa incredulidade se deve a um conceito errôneo a respeito das Escrituras. Deus está silencioso e, subitamente, começa a falar em um livro. Terminado o livro, cai no silêncio outra vez, e para sempre. Por isso, muitos leem a Bíblia como se fora o registro do que Deus disse quando estava com vontade de falar. Se pensarmos desta forma, como poderemos confiar plenamente? O fato, contudo, é que Deus não está calado, e nunca esteve. Falar faz parte da natureza de Deus. A segunda pessoa da Trindade é chamada de Verbo (Palavra). A Bíblia é o resultado inevitável da contínua manifestação de Deus. É a revelação infalível de Sua mente, a nós dirigida, expressa em termos humanos, para que possamos compreendê-la.
Penso que um novo mundo surgirá entre as nebulosidades religiosas, quando nos aproximarmos da Bíblia munidos da ideia de que se trata não somente de um livro que foi falado numa certa época, mas que ainda continua falando. Os profetas sempre afirmavam: é esta a substância moral que se compõe o chamado mundo civilizado. Todo o ambiente está contaminado; nós o respiramos a cada momento e bebemos dele juntamente com o leite materno. A cultura e a educação refinam apenas superficialmente essas qualidades negativas, mas deixam-nas basicamente intactas. Todo um mundo literário foi criado para defender a tese de que esta é a única maneira normal de se viver. E isso se torna ainda mais estranho quando percebemos que são justamente esses os males que tanto amarguram a existência de todos nós. Todas as nossas preocupações e muitas de nossas mazelas físicas originam-se diretamente dos nossos pecados. O orgulho, a arrogância, o ressentimento, os maus pensamentos, a malícia, a cobiça – essas são as fontes de todas as enfermidades que afligem a nossa carne.
Em um mundo como este, as palavras de Jesus soam de um modo maravilhoso e totalmente novo, como uma visitação do alto. Foi bom que Ele tivesse dito aquelas palavras, porque ninguém poderia tê-lo feito tão bem quanto Ele, e nós deveríamos dar ouvidos à Sua voz. Suas palavras são a essência da verdade. Ele não estava apenas exprimindo Sua opinião; Jesus jamais apresentou opiniões Ele nunca fazia conjecturas; pelo contrário Ele sabia e sabe todas as coisas. Suas palavras não foram, como as de Salomão, a súmula de uma profunda sabedoria ou o resultado de uma cuidadosa observação. Ele falava na plenitude da Sua divindade, e Suas palavras são a própria verdade. Ele era o único que poderia ter dito “bem-aventurados”, com a mais completa autoridade, pois Ele é o bendito de Deus que veio a este mundo a fim de conferir bênçãos à humanidade. Suas palavras foram apoiadas por feitos mais poderosos do que os de qualquer outra pessoa da Terra. Obedecê-las é prova de grande sabedoria.
Como geralmente acontecia, Jesus empregou o vocábulo “mansos” numa frase curta e resumida, e só algum tempo depois foi que passou a explicá-lo. No mesmo Evangelho de Mateus, Ele nos fala novamente nessa palavra e aplica-a à nossa vida. “Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11:28-30). Aqui vemos dois conceitos opostos: fardo e descanso. Este fardo não pesava somente sobre aqueles que ali se achavam, mas sobre toda a raça humana. Não se trata de opressão política, nem de pobreza. nem de trabalho árduo. É um problema bem mais complexo do que isso. Os ricos e os pobres o sentem da mesma forma, porque é um estado do qual nem riquezas nem lazeres podem nos libertar.
O fardo que pesa sobre a humanidade é grande e esmagador. O termo empregado pelo Senhor Jesus indica que é um peso que levamos conosco, ou uma fadiga que chega à exaustão. O descanso é simplesmente o alívio que sentimos quando essa carga nos é tirada dos ombros. Não se trata de algo que fazemos, mas de algo que nos é proporcionado, quando deixamos de fazer outra coisa. A Sua própria mansidão – esse é o nosso descanso.
Façamos um exame desse fardo. Ele se localiza em nosso íntimo. Chega primeiramente ao coração e à mente, e atinge o nosso corpo de dentro para fora. Primeiramente há o fardo do orgulho. Nosso esforço para resguardar o amor-próprio é realmente exaustivo. Se procurarmos examinar nossa vida, verificaremos que muitas das nossas aflições têm origem no fato de alguém ter falado de modo depreciativo a nosso respeito. Enquanto o homem se considerar um pequeno deus, o qual deve tributar sua lealdade, haverá sempre aqueles que se deleitarão cm afrontar seu ídolo. Como, então, esperamos ter paz interior? O veemente esforço que o coração envida para defender-se contra as injúrias, para proteger a sua honra sensível, contra toda opinião desfavorável da parte de amigos e adversários jamais permitirá que sua mente goze paz. Se persistirmos nessa luta, com o passar dos anos, o fardo se tornará simplesmente intolerável. No entanto, os homens continuam levando essa carga pela vida afora, desafiando cada palavra proferida contra eles, ressentindo-se contra toda crítica, magoando-se profundamente com a mais leve indiferença, revolvendo-se insones cm seus leitos, se outros forem preferidos em lugar deles.
Todavia ninguém é obrigado a carregar um fardo pesado como esse. Jesus nos convida a descansar n’Ele. e a mansidão é o método aplicado. O homem manso não se importa se alguém for maior do que ele, porque há muito compreendeu que as coisas que o mundo aprecia não são importantes para ele, e não vale a pena lutar por elas. Pelo contrário, desenvolve para consigo mesmo um interessante senso de humor e passa a dizer: “Ah, então você foi esquecido, hein? Passaram você para trás, não é? Disseram até que você é um traste sem importância? E agora você está ressentido porque os outros estão dizendo exatamente aquilo que você mesmo tem dito sobre si? Ainda ontem você disse a Deus que não representa nada, que é apenas um verme que vem do pó. Onde está a coerência? Vamos, humilhe-se, deixe de preocupar-se com o que os homens pensam”.
O homem manso não é covarde nem vive atormentado por reconhecer sua própria inferioridade. Pelo contrário, seu espírito é valente como um leão e forte como um Sansão; porém, deixou de iludir a si próprio. Reconheceu que é correta a avaliação que Deus faz de sua própria vida. Compreende que é fraco e necessitado tal como Deus afirmou que ele é; mas, paradoxalmente, ao mesmo tempo sabe que, aos olhos de Deus, é mais importante que os próprios anjos. Nada representa em si mesmo, mas em Deus, tudo. Esse é o seu lema. Sabe perfeitamente bem que o mundo jamais o verá como Deus o vê, e por isso deixou há muito de importar-se com os conceitos dos homens. Sente-se plenamente satisfeito em deixar que Deus restabeleça os seus valores. Aguarda pacientemente o dia em que todas as coisas, serão julgadas, e o seu verdadeiro valor será reconhecido por todos. Só então é que os justos resplandecerão no reino de seu Pai. Ele está disposto a esperar esse dia.
Nesse ínterim, terá encontrado descanso para sua alma. Se andar em mansidão, ele ficará satisfeito em permitir que Deus o defenda. |á não precisa lutar para defender o seu “eu”, porque encontrou a paz que a mansidão proporciona.
Outrossim, ficará livre do fardo do fingimento. Quando digo fingimento não me refiro à hipocrisia, mas o desejo muito comum no homem de mostrar ao mundo o seu lado melhor, ocultando sua verdadeira pobreza e miséria internas. Pois o pecado tem usado conosco de muitas artimanhas traiçoeiras, e uma delas foi incutir em nós um falso sentimento de vergonha. Dificilmente encontramos alguém que queira ser exatamente o que é, sem tentar forjar uma aparência exterior para o mundo. O temor de ser descoberto corrói o coração humano. O homem de cultura sente-se perseguido pelo receio de algum dia aparecer um homem mais culto do que ele. O erudito teme encontrar outro mais erudito do que ele. O rico vive preocupado, sempre com receio de que suas roupas, seu automóvel ou sua casa algum dia pareçam baratos em comparação com as posses de outro homem mais rico do que ele. Os motivos que impulsionam a chamada “alta sociedade” não são mais nobres do que esses, e as classes mais pobres, em seu próprio nível, também, não são muito melhores em suas atitudes.
Ninguém deve menosprezar essas verdades. Esse fardo é real, e, pouco a pouco, ele mata as vítimas dessa maneira de viver nociva e antinatural. Esta mentalidade adquirida através dos anos faz com que a mansidão autêntica nos pareça irreal como um sonho, e distante como as estrelas. Ê justamente às vítimas dessa enfermidade corrosiva que o Senhor Jesus diz: “Deveis tornar-vos como criancinhas”. Isso porque as criancinhas não fazem comparações dessa natureza, mas alegram-se naturalmente com aquilo que possuem, sem se incomodar com o que as outras crianças possam ter. Somente quando se tornam maiores, e o pecado começa a afetar seus corações, é que aparecem o ciúme e a inveja. Daí por diante são incapazes de desfrutar do que possuem, se alguém tiver algo maior ou melhor. E desde essa tenra idade o fardo passa a pesar sobre suas almas, e nunca mais as deixa, até que o Senhor Jesus lhes dê a libertação.
Outro pecado que representa uma carga pesada para o homem é a artificialidade. Estou certo de que a maioria das pessoas vive com um receio íntimo de que algum dia acabarão se descuidando e, talvez, um amigo ou inimigo consiga ver o interior de suas almas vazias e pobres. Dessa forma, elas vivem numa constante tensão. As pessoas mais inteligentes vivem preocupadas e alertas, com medo de serem levadas a dizer algo que pareça vulgar ou estúpido. As viajadas receiam encontrar algum Marco Polo que lhe fale de algum lugar remoto, onde jamais estiveram.
Essa condição antinatural faz parte de nossa triste herança de pecado; em nossos dias, entretanto, o problema é agravado pelo nosso modo de viver. A propaganda baseia-se quase inteiramente nesse hábito de preocupar-se com a aparência externa. Oferecem-se “cursos” sobre este ou aquele campo do saber humano, os quais apelam claramente para o desejo que a vítima tem de se sobressair. Vendem-se livros, inventam-se vestes e cosméticos, brincando continuamente com esse desejo que o homem tem de parecer o que não é. A artificialidade é uma maldição que desaparece no momento em que nos ajoelhamos aos pés do Senhor Jesus e nos rendemos à Sua mansidão. Daí para a frente não nos incomodaremos com o que as pessoas pensam a nosso respeito, contanto que Deus nos esteja aprovando. Então o que somos será tudo; e o que parecemos ser descerá na escala de valores das coisas que nos interessam. Afastado o pecado, nada temos de que nos possamos envergonhar. Somente o nosso desejo de prestígio é que nos faz querer parecer aos outros aquilo que não somos.
O mundo inteiro está a ponto de sucumbir sob esse fardo tremendo de orgulho e dissimulação. Ninguém pode ser liberto dessa carga a não ser através da mansidão de Cristo. Uma racionalização inteligente pode ajudar, mas muito pouco, pois esse hábito é tão forte, que, se o abafarmos aqui, ele surgirá mais adiante. Jesus diz a todos: “Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. “O descanso oferecido por ele é o descanso da mansidão, aquele alívio bendito que sentimos quando admitimos o que realmente somos, e deixamos de lado todo o fingimento. É preciso bastante coragem a princípio, mas a graça necessária nos será dada, pois veremos que estamos partilhando esse outro jugo com o Filho de Deus. Ele mesmo o chama de “meu jugo”, e leva-o ombro a ombro conosco. Senhor, torna meu coração como o de uma criança. Livra-me do impulso de competir com os outros, buscando posição mais elevada entre os homens. Desejo ser simples e ingênuo como uma criança. Livra-me das atitudes fingidas e da dissimulação. Perdoa-me por haver pensado tanto em mim. Ajuda-me a esquecer a mim mesmo e a encontrar minha verdadeira paz na Tua contemplação. A fim de que possas responder a esta oração, eu me humilho perante Ti. Coloca sobre mim Teu fardo suave do auto desprendimento, para que eu possa encontrar descanso. Amém.
Aiden Wilson Tozer, “À Procura de Deus“.