A Total Suficiência de Cristo
A incerteza em que vivem muitos filhos de Deus se deve a não ter recebido em seus corações um Cristo pleno, como a total provisão de Deus para eles.
A partir do momento em que a alma é levada a sentir a realidade de sua condição diante de Deus – à profundidade de sua ruína, culpa e miséria – não poderá haver descanso até que o Espírito Santo revele ao coração um Cristo pleno e todo suficiente.
Esta é a única solução possível, e o remédio perfeito de Deus para a nossa completa pobreza.
Trata-se de uma verdade muito simples, mas da maior importância; e podemos dizer com toda a segurança, que quanto mais completa e profundamente o leitor aprender isto para si mesmo, melhor será. O verdadeiro segredo da paz está em descer até o fundo de um eu irremediavelmente culpado, arruinado e sem esperanças, e aí encontrar um Cristo todo suficiente como a provisão de Deus para a nossa mais profunda necessidade. Isto é verdadeiramente descanso – um descanso que nunca pode ser perturbado.
Neste artigo nos propomos mostrar ao leitor necessitado, que em Cristo se encontra entesourado para ele tudo o que possa chegar a necessitar, seja para atender as necessidades de sua própria consciência, os ardentes desejos do seu coração, ou as exigências do seu caminho.
Procuraremos provar, pela graça de Deus, que a obra de Cristo é o único lugar de repouso verdadeiro para a consciência; que a sua Pessoa é o único objeto para o coração; e que a sua Palavra é a única guia verdadeira para o caminho.
A Obra de Cristo Para a Consciência
Ao considerar este importante assunto, há duas coisas que exigem a nossa atenção: primeiro, o que Cristo fez por nós; segundo, o que ele está fazendo para nós. Na primeira, temos a expiação; na última, a intercessão como Advogado. Ele morreu na cruz por nós: ele vive para nós sentado no trono.
a) O que Cristo fez por nós
Por sua preciosa morte expiatória ele supriu plenamente tudo o que tinha que ver com nossa condição de pecadores. Ele carregou os nossos pecados, e os levou de todo e para sempre. Ele levou a culpa por todos os nossos pecados – os pecados de todos os que creem em seu nome. O Senhor carregou nele todas as nossas iniquidades (Is 53). «Porque também Cristo padeceu uma só vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para nos levar a Deus» (1 Pe 3:18).
Esta é uma verdade imensa, e de total importância para a alma necessitada – uma verdade que se assenta no próprio fundamento da posição cristã. É impossível que uma alma despertada, espiritualmente esclarecida, possa desfrutar da paz divinamente estabelecida até que esta tão preciosa verdade seja recebida em simplicidade de fé. Devo saber, sobre a base da autoridade divina, que todos os meus pecados foram tirados da vista de Deus para sempre; que ele mesmo se desfez deles de modo que viesse a satisfazer todas as exigências do seu trono e todos os atributos de sua natureza; que ele se glorificou a si mesmo por lançar fora os meus pecados, e isto, de uma maneira muito mais tremenda e maravilhosa que se me tivesse enviado ao inferno eterno por causa deles.
Sim, foi ele mesmo quem o fez. Esta é a essência e a medula de todo o assunto. Deus pôs os nossos pecados sobre Jesus, e ele nos diz isto em sua Santa Palavra, a fim de que possamos saber sobre a base da autoridade divina – uma autoridade que não pode mentir. Deus planejou assim, Deus fez assim; e assim Deus diz. Tudo vem de Deus, do principio ao fim, e nós tão somente temos que descansar nisso como meninos. Como sei que Jesus levou os meus pecados em seu próprio corpo sobre o madeiro? Pela mesma autoridade que me diz que eu tinha pecados e que deveriam ser levados. Deus, em seu maravilhoso e inigualável amor, assegura-me, um pobre e culpado pecador, merecedor do inferno, que ele mesmo cuidou de todo o assunto dos meus pecados, e se livrou deles de um modo tal que veio trazer uma rica colheita de glória para o seu eterno Nome, por todo o universo, na presença de toda inteligência criada.
E nisto, a fé viva deve tranquilizar a consciência. Se Deus se satisfez a si mesmo com a solução para os meus pecados, eu devo ficar igualmente satisfeito. Sei que sou um pecador – pode ser inclusive que seja o maior dos pecadores. Sei que os meus pecados são maiores em número que os cabelos da minha cabeça; que são negros como a meia-noite – negros como o próprio inferno. Sei que qualquer desses pecados, o menor deles, merece as chamas eternas do inferno. Sei – porque a Palavra de Deus o diz – que uma simples partícula de pecado não pode jamais entrar em sua Santa presença; e que, por esta razão, não havia para mim outro destino a não ser a eterna separação de Deus.
Tudo isso sei, sobre a base da clara e indisputável autoridade daquela Palavra que está para sempre afirmada nos céus.
Mas, Oh profundo mistério da cruz, o glorioso mistério do amor redentor! Vejo o próprio Deus levando todos os meus pecados – pecados da pior espécie – todos os meus pecados, da maneira como ele os viu e os avaliou. Vejo-o colocando todos sobre a cabeça do meu bendito Substituto, e tratando com ele ali por causa dos pecados. Vejo as ondas da justa ira de Deus – a sua ira contra os meus pecados – a sua ira que deveria me haver queimado, alma e corpo, no inferno, por toda uma terrível eternidade; eu as vejo precipitando-se sobre o Homem que ficou em meu lugar, que me representou diante de Deus, que suportou tudo o que eu merecia, com Quem um Deus santo tratou como se tivesse tratado comigo. Vejo a imparcialidade de um Juiz, a santidade, verdade e justiça tratando com os meus pecados, e me libertando deles eternamente, não deixando escapar nenhum deles! Sem conivência, sem paliativos, sem indiferença, pois o mesmo Deus tomou o caso em suas mãos. A sua glória estava em jogo; a sua imaculada santidade, a sua eterna majestade, as sublimes reivindicações do seu governo.
Tudo isso tinha que ser satisfeito em uma medida tal que o glorificasse diante dos anjos, homens e demônios. Ele poderia me haver enviado ao inferno por causa dos meus pecados. Eu não merecia nada menos que isso. Todo o meu ser moral, do mais profundo, merecia isto – e deveria havê-lo recebido. Não tenho nem sequer uma palavra como desculpa para um simples pensamento pecaminoso, isso para não falar de uma vida manchada pelo pecado do princípio ao fim.
Outros podem argumentar como quiserem a respeito da injustiça de uma eternidade de castigo para uma vida de pecado – a completa falta de proporção que há entre alguns anos de práticas más e as intermináveis eras de tortura no lago de fogo. Podem argumentar, mas creio plenamente, e o confesso sem reservas, que por um simples pecado contra um Ser tal como é o Deus que vejo na obra da cruz, eu merecia com sobras o castigo eterno, escuro, e o sombrio abismo do inferno.
Não estou escrevendo como um teólogo; se fosse um deles, seria uma tarefa muito simples adornar isto com uma larga lista de evidências das Escrituras a fim de provar a solene verdade do castigo eterno. Mas não; estou escrevendo como alguém que foi divinamente instruído do verdadeiro deserto que é o pecado, e este deserto, eu, calmo, deliberado, e solenemente declaro, é, e só pode ser, a eterna exclusão da presença de Deus e do Cordeiro – tortura eterno no lago que arde com fogo e enxofre.
No entanto – e eternas aleluias sejam dadas ao Deus de toda graça, porque, em vez de nos enviar ao inferno por causa dos nossos pecados, ele enviou o seu Filho para ser a propiciação por esses mesmos pecados. E no desenvolvimento do maravilhoso plano de redenção, vemos um Deus santo tratando com a questão dos nossos pecados, e executando juízo sobre eles na Pessoa de seu tão amado, eterno e co-igual Filho, a fim de que o pleno manancial do seu amor pudesse fluir em nossos corações. «Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou, e enviou a seu Filho em propiciação por nossos pecados» (1 Jo 4:10).
Portanto, isto deve trazer paz à consciência, se tão somente for recebido com simplicidade de fé. Como é possível que alguém creia que Deus se satisfez a si mesmo quanto aos pecados dele, e ao mesmo tempo ele mesmo não ter paz? Se Deus nos disser: «Não me lembrarei mais do seu pecado» (Jr 31:34) que mais poderíamos desejar como fundamento de paz para a nossa consciência? Se Deus me assegurar que todos os meus pecados estão invisíveis como em densa escuridão – que foram lançados para trás de Si – e que saíram para sempre de diante dos seus olhos, por que é que eu não teria paz? Se ele me mostrar o Homem que carregou os meus pecados sobre a cruz, agora coroado à mão direita da Majestade nas alturas, por acaso a minha alma não deveria entrar no perfeito descanso no que se refere aos meus pecados? Com toda segurança.
A libertação do pecado. No entanto, bendito seja o Deus de toda graça, porque não é só a remissão dos pecados que nos anuncia por meio da morte expiatória de Cristo. Temos também completa libertação do presente poder do pecado. Este é um grande assunto para todo verdadeiro amante da santidade. De acordo com a gloriosa dispensação da graça, a mesma obra que assegura a completa remissão dos pecados quebrou para sempre o poder do pecado. Não se trata apenas de terem sidos apagados os pecados da vida, mas o pecado da natureza está condenado. O crente tem o privilégio de considerar-se a si mesmo como morto para o pecado.
«Com Cristo estou juntamente crucificado, e já não vivo eu, mas Cristo vive em mim» (Gl 2:20). Isto é cristianismo. O velho eu crucificado, e Cristo vivendo em mim. O cristão é uma nova criação. As coisas velhas já passaram. A morte de Cristo encerrou para sempre a história do velho eu; e, portanto, mesmo que o pecado habite ainda no crente, o seu poder está quebrado e eliminado para sempre. Não somente a culpa que ele levava está paga, mas o seu terrível domínio também foi totalmente destruído.
Este é o glorioso ensino de Romanos 6 a 8. O estudioso atento desta magnífica epístola observará que a partir do capítulo 3:21, até o capítulo 5:11 temos a obra de Cristo aplicada à questão dos pecados; e do capítulo 5:12 até o final do capítulo 8 temos outro aspecto da obra de Cristo, quer dizer, a sua aplicação à questão do pecado – «do nosso velho homem … o corpo do pecado … o pecado na carne». Não há, nas Escrituras algo como o perdão do pecado. Deus condenou o pecado; Deus não o perdoou – uma distinção que é imensamente importante. Deus demonstrou a sua eterna aversão ao pecado na cruz de Cristo. Ele expressou e executou o seu julgamento sobre o pecado, e agora o crente pode considerar-se ligado e identificado com Aquele que morreu na cruz e que ressuscitou dentre os mortos. Ele saiu da esfera do domínio do pecado e entrou naquela esfera nova e bendita onde a graça reina pela justiça. «Mas graças a Deus, diz o apóstolo, que ainda que éramos escravos do pecado (antes, não agora), obedecestes de coração a aquela forma de doutrina a qual fostes entregues; e libertados do pecado(não meramente tendo os pecados perdoados), viestes a ser servos da justiça. Falo como homem, por vossa humana fraqueza, que assim como para iniquidade apresentastes os vossos membros para servir à imundície e à iniquidade, assim agora apresenteis os vossos membros para a santificação para servir à justiça. Porque quando éreis escravos do pecado, éreis livres a respeito da justiça. Mas que fruto tínheis daquelas coisas das quais agora vos envergonhais? Porque o fim delas é a morte. Mas agora que fostes libertados do pecado e feitos servos de Deus, tendes por vosso fruto a santificação, e por fim, a vida eterna» (Rm 6:17-22).
Aqui está o precioso segredo de uma vida santa. Estamos mortos para o pecado; vivos para Deus. O reino do pecado terminou. O que o pecado tem que ver com um homem morto? Nada. Bem, então, o crente morreu com Cristo; está sepultado com Cristo; está ressuscitado com Cristo para andar em novidade de vida. Ele vive sob o precioso reino da graça, e tem como fruto a santificação. O homem que faz uso da abundante graça divina como desculpa para viver no pecado e nega o próprio fundamento do cristianismo. «Porque se morremos para o pecado, como ainda viveremos nele?» (Rm 6:2). Impossível. Seria uma negação de toda a posição cristã. Imaginar o cristão como alguém que deve seguir, dia após dia, semana após semana, mês após mês, e ano após ano, pecando e arrependendo-se, pecando e arrependendo-se, é degradar o cristianismo e falsificar a posição cristã como um todo. Dizer que um cristão deve seguir pecando porque ele tem a carne em si é ignorar a morte de Cristo em um dos seus grandes aspectos, e reputar como mentira todo o ensino dos apóstolos em Romanos capítulos 6 a 8.
Graças a Deus, não existe razão do por que o crente deveria cometer pecado. «Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo para que não pequeis» (1 Jo 2:1). Não deveríamos justificar nem sequer o mais simples pensamento pecaminoso. Trata-se do nosso doce privilégio de andar na luz, como Deus está na luz; e com toda certeza, quando estamos andando na luz, não estamos cometendo pecados, ou saímos da luz e cometemos pecado; mas a ideia normal, verdadeira e divina de um cristão é a de alguém andando na luz, e não cometendo pecado. Um pensamento pecaminoso é estranho ao verdadeiro caráter do cristianismo. Temos pecado em nós, e vamos continuar tendo-o enquanto estivermos no corpo; mas se andarmos no Espírito, o pecado em nossa natureza não irá se manifestar na vida. Dizer que não precisamos pecar é a afirmação de um privilégio cristão; dizer que não podemos pecar é um engano e ilusão.
b) O que Cristo está fazendo para nós
Considerando que nossa condição é imperfeita e que o nosso andar é imperfeito; considerando também que a nossa comunhão é suscetível de ser interrompida, é por esta razão que necessitamos do atual ofício de Cristo por nós.
Jesus vive à mão direita de Deus por nós. A sua ativa intervenção a nosso favor não cessa nem por um momento. Ele atravessou os céus em virtude da expiação consumada, e ali exerce continuamente a sua perfeita intercessão por nós diante de Deus. Ele está ali como a nossa justiça permanente, a fim de nos manter sempre em divina integridade da posição e da relação para a qual a sua morte expiatória nos introduziu. Por isso lemos em Romanos 5:10: «Porque se sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, estando reconciliados, seremos salvos por sua vida». Assim também lemos em Hebreus 4:14-16: «portanto, tendo um grande sumo sacerdote que transpassou os céus, Jesus o Filho de Deus, retenhamos a nossa confissão. Porque não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, mas um que foi tentado em tudo segundo a nossa semelhança, mas sem pecado. Aproximemo-nos, pois, confiadamente ao trono da graça, para alcançar misericórdia e achar graça para o oportuno socorro».
E também no Hebreus 7:24-25: «Mas este, porque permanece para sempre, tem um sacerdócio imutável; pelo qual pode também salvar perpetuamente os que por ele se achegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles». E em Hebreus 9:24: «Porque Cristo não entrou no santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, mas no próprio céu para apresentar-se agora por nós diante de Deus».
Temos também, na 1a Epístola de João, o mesmo assunto representado sob um aspecto um pouco diferente. «meus filhinhos, estas coisas vos escrevo para que não pequeis; e se alguém tiver pecado, temos um advogado para com o Pai, a Jesus Cristo o justo. E ele é a propiciação por nossos pecados; e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo» (1 Jo 2:1-2).
Quão precioso é tudo isto para o cristão sincero, que está sempre consciente – perfeita e dolorosamente consciente – de sua fraqueza, necessidade e fracasso! Como é possível que alguém que veja estas passagens que acabamos de citar possa pôr em dúvida a necessidade do cristão de um ininterrupto ministério de Cristo em seu favor? Não é espantoso que algum leitor da Epístola aos Hebreus, algum observador da condição e do andar do crente mais fiel, pudesse ser achado negando a aplicação do sacerdócio e intercessão de Cristo pelos cristãos hoje?
A favor de quem (permita nos perguntar) Cristo está vivendo e atuando agora à mão direita de Deus? Será a favor do mundo? Certamente que não; pois ele diz, em João 17:9: «Não rogo pelo mundo, mas sim pelos que me deste, porque são teus». E quem são esses? Tratar-se-á por acaso do remanescente judeu? Não; esse remanescente ainda não entra em cena. Quem são eles, então? Crentes, filhos de Deus, cristãos, que estão agora passando por este mundo pecaminoso, sujeitos a falhar e a serem enganados a cada passo do caminho. Estes são o objeto do ministério sacerdotal de Cristo. Ele morreu para fazê-los limpos; ele vive para mantê-los limpos. Por sua morte ele expiou a nossa culpa, e por sua vida ele nos limpa, por meio da ação da Palavra pelo poder do Espírito Santo. «Este é Jesus Cristo, que veio mediante água e sangue; não mediante água somente, mas mediante água e sangue» (1 Jo 5:6). Temos expiação e somos limpos por meio de um Salvador crucificado. A dupla fonte emanou do flanco ferido de Cristo, morto por nós. Todo louvor seja dado ao seu Nome!
Temos tudo, em virtude da preciosa morte de Cristo. A nossa culpa é o problema? Ela foi cancelada pelo sangue da expiação. São nossas faltas diárias? Temos um Advogado para com o Pai – um grande Sumo Sacerdote para com Deus. «Se alguém tiver pecado» (1 Jo 2:1). Ele não diz «se alguém se arrepender». Não há dúvida de que há, e deve haver arrependimento e julgamento-próprio; mas como eles são produzidos? Aqui está: «Temos um Advogado para com o Pai». E sua sempre prevalecente intercessão consegue, para aquele que peca, a graça do arrependimento, o julgamento próprio e a confissão.
É algo de suma importância para o cristão ter bem claro o que se refere esta verdade cardeal da intercessão advocatícia ou sacerdócio de Cristo. Acostumamos erroneamente a pensar que precisamos fazer algo por nós mesmos para resolver a questão entre a nossa alma e Deus. Esquecemos-nos até do por que estamos conscientes das nossas falhas – antes que nossa consciência se tornasse consciente do fato já nosso Advogado esteve diante do Pai para tratar disso; e é por sua intercessão que temos a graça do nosso arrependimento, confissão e restauração. «Se alguém tiver pecado…», temos o que? O sangue para o qual devemos recorrer? Não; repare cuidadosamente o que o Espírito Santo declara. «Temos um advogado para com o Pai, a Jesus Cristo o justo». E por que diz, «o justo»? Por que não diz, «o bondoso», «o misericordioso», ou «o que se compadece de nós»? Por acaso ele não é tudo isso? Certamente; mas nenhum desses atributos caberia aqui, ainda que pudessem estar. O bendito apóstolo coloca diante de nós a consoladora verdade de que em todos os nossos enganos, pecados e falhas, temos um representante «justo» diante do Deus justo, o Pai santo, de modo que as nossas questões nunca terminem em fracasso. Ele vive sempre para fazer intercessão por nós, e porque ele vive sempre «pode salvar perpetuamente» – salvar até o fim – «aos que por ele se achegam a Deus».
Que firme consolo existe aqui para o povo de Deus! E quão necessário para as nossas almas é estar fundamentados no conhecimento e compreensão disso! Há alguns que possuem uma compreensão imperfeita da verdadeira posição de um cristão, por não compreender o que Cristo fez por eles no passado; outros, ao contrário, têm uma visão tão unilateral da condição do cristão que não percebem a nossa necessidade do que Cristo está agora fazendo por nós. Ambos devem ser corrigidos. Os primeiros ignoram a extensão e o valor da expiação; os últimos ignoram o lugar e a aplicação que tem a intercessão advocatícia. A perfeição da nossa posição é tal, que o apóstolo diz: «Pois como ele é, assim somos nós neste mundo» (1 Jo 4:17). Se isso fosse tudo, certamente não teríamos necessidade do sacerdócio ou da intercessão advocatícia; mas a nossa condição é tal, que o apóstolo precisa dizer: «Se alguém tiver pecado…». Isto prova quão continuamente necessitamos do Advogado. E, bendito seja Deus, nós o temos continuamente; nós o temos vivendo sempre por nós. Ele vive e serve nas alturas. Ele é a nossa justiça substitutiva diante do nosso Deus. Ele vive para nos manter justos no céu, e para nos fazer justos quando tivermos errado na terra. Ele é o vínculo divino e indissolúvel entre as nossas almas e Deus.
A Pessoa de Cristo Para o Coração
Tendo revisado até aqui as verdades fundamentais relacionadas com a obra de Cristo por nós – sua obra no passado e sua obra no presente – sua expiação e sua intercessão, devemos agora tentar, pela graça do Espírito de Deus, apresentar ao leitor algo daquilo que as Escrituras nos ensinam quanto ao segundo tema do nosso assunto, ou seja, Cristo como um objeto para o coração.
Trata-se de algo maravilhosamente bendito poder dizer: «Encontrei a Alguém que satisfaz plenamente o meu coração – encontrei a Cristo». É isto o que nos põe verdadeiramente no topo do mundo. Torna-nos completamente independentes dos recursos aos quais o coração inconverso sempre se apega. Concede-nos um descanso permanente. Dá-nos uma calma e quietude de espírito que o mundo não pode compreender. O pobre amante do mundo pode pensar que a vida do cristão é muito estática, insípida, chegando inclusive a ser uma ocupação idiota. Talvez ele fique espantado de ver como alguém pode viver sem aquilo que ele chama «diversão». Privar o inconverso daquilo seria quase o mesmo que levá-lo ao desespero ou à loucura; mas o cristão não deseja tais coisas – ele não as praticaria. Elas são inclusive um aborrecimento para ele. Falamos aqui, evidentemente, do verdadeiro cristão, de alguém que não é um mero cristão de nome, mas de verdade.
O que é um cristão? É um homem celestial, um participante da natureza divina. Ele está morto para o mundo – morto para o pecado – vivo para Deus. Não tem nem sequer uma conexão com o mundo: pertence ao céu. Assim como Cristo, o seu Senhor, ele não pertence mais ao mundo. Poderia Cristo tomar parte nas diversões e festejos deste mundo? A própria ideia disso seria uma blasfêmia. Bem, então, o que dizer do cristão? Ele pode tomar parte em coisas que ele sabe em seu coração que são contrárias a Cristo? Pode ir a lugares, frequentar ambientes e envolver-se em circunstâncias onde, ele tem que admitir, o seu Salvador e Senhor não pode tomar parte? Ele pode ter comunhão com um mundo que odeia a Aquele a Quem ele professa dever todas as coisas?
Talvez a alguns dos nossos leitores possa parecer que estamos falando de um terreno muito elevado. A estes perguntamos: Que terreno devemos tomar? Certamente, o terreno cristão, se formos cristãos. Bem, então, se devemos assumir uma posição cristã, como podemos saber o que é uma posição cristã? Evidentemente, procurando no Novo Testamento. E o que é que ensina ali? Acaso ele dá alguma autorização para que o cristão se misture, em qualquer forma ou medida, com as diversões e os vãos desejos deste presente século mau? Escutemos com atenção as importantes palavras do nosso bendito Senhor em João 17. Escutemos dos seus próprios lábios a verdade quanto a nossa porção, nossa posição, e nosso caminho aqui neste mundo. Ao dirigir-se ao Pai, ele diz: «Eu lhes dei a tua palavra; e o mundo os aborreceu, porque não são do mundo, como também eu não sou do mundo. Não rogo que os tire do mundo, mas que os guarde do mal. Não são do mundo, como também eu não sou do mundo. Santifica-os em tua verdade; a tua palavra é a verdade. Como tu me enviaste ao mundo, assim eu os enviei ao mundo» (Jo 17:14-18).
Será possível conceber uma medida mais próxima de identificação da que nos apresenta nestas palavras? Por duas vezes, nesta breve passagem, nosso Senhor declara que não somos do mundo, assim como ele também não o é. O que o nosso bendito Senhor tinha que ver com o mundo? Nada. O mundo o rejeitou completamente e o expulsou. O mundo o cravou em uma vergonhosa cruz, entre dois malfeitores. O mundo continua atual e plenamente sob a acusação de tudo isso como se o ato de crucificação tivesse ocorrido ontem, bem no centro de sua civilização e com o consentimento unânime de todos. Não existe nem sequer um vínculo moral entre Cristo e o mundo. Sim, o mundo está manchado com o seu assassinato, e nada tem que dizer a Deus a favor do seu crime.
Que solene é isto! Que assunto sério para ser considerado pelos cristãos! Estamos passando por um mundo que crucificou o nosso Senhor e Mestre, e ele declara que não somos deste mundo, assim como ele também não é. Daí que se tivermos alguma comunhão com o mundo estaremos sendo falsos para com Cristo. O que pensaríamos de uma esposa que se sentasse, risse, e contasse anedotas com um grupo de homens que tivesse assassinado o seu marido? É exatamente o que os cristãos professantes estão fazendo quando se misturam com o presente século mau, e se fazem parte e porção dele.
Talvez alguém pergunte: O que devemos fazer? Devemos sair do mundo? Não. Nosso Senhor disse expressamente: «Não rogo que os tire do mundo, mas que os guarde do mal» (Jo 17:15). No mundo, mas não do mundo, é o verdadeiro princípio para o cristão. Para nos valer de uma figura, o cristão no mundo é como um mergulhador equipado com um escafandro. Ele está imerso em um elemento que o destruiria se não estivesse protegido de sua ação, e mantido por uma contínua comunicação ambiente que está em cima dele.
O que o cristão deve fazer com o mundo? Qual é a sua missão aqui? Esta: «Como tu me enviaste ao mundo, assim eu vos enviei ao mundo». «Como me enviou o Pai, assim também eu vos envio» (Jo 17:18; 20:21).
Tal é a missão do cristão. Ele não deve encerrar-se entre as paredes de um monastério ou convento. Nada disso. Somos chamados para estar ocupados nas diversas responsabilidades da vida, e para atuar nas esferas que nos são divinamente atribuídas, para a glória de Deus. Não é um assunto do que estamos fazendo, mas sim de como o estamos fazendo. Tudo depende do objeto que governa os nossos corações. Se for Cristo quem comanda e cativa o coração, tudo estará bem; se não for ele, nada estará bem. É nosso doce privilégio colocar o Senhor sempre diante de nós. Ele é o nosso modelo. Assim como ele foi enviado ao mundo, nós também o somos. O que ele veio fazer? Glorificar a Deus. Como ele viveu? Pelo Pai. «Como me enviou o Pai vivo, e eu vivo pelo Pai, deste modo aquele que come de mim, ele também viverá por mim» (Jo 6:57).
Isso torna tudo muito simples. Cristo é o patrão e a chave de tudo. Já não se trata meramente de uma questão de que algo seja correto ou incorreto de acordo com as regras humanas; é uma questão do que é digno de Cristo. Faria ele isto ou aquilo? Ele iria lá ou acolá? Ele nos deixou «exemplo, para que sigamos as suas pisadas» (1 Pe 1:21). E com toda segurança, nunca deveríamos ir aonde não pudéssemos perceber as suas benditas pisadas. Se formos de um lado a outro só para satisfazer a nós mesmos, não estaremos seguindo suas pisadas, e não podemos esperar desfrutar de sua bendita presença.
Aqui está o verdadeiro segredo de todo o assunto. A grande questão é esta: Cristo é o meu objeto? Para que estou vivendo? Posso dizer que «a que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou e a si mesmo se entregou por mim»? (Gl 2:20). Nada menos que isto é o que corresponde a um cristão. Trata-se de algo muito miserável estar contente só sendo salvo, e em seguida seguir adiante abraçados com o mundo, vivendo para a satisfação própria e em busca dos próprios interesses – aceitar a salvação como o fruto da paixão e aflição de Cristo e depois viver longe dele. O que pensaríamos de um menino a que só lhe importam as coisas boas que o pai lhe dá, e que alguma vez procura a companhia de seu pai, preferindo a companhia de estranhos? Certamente seria alguém digno de desprezo. Quão desprezível é o cristão que deve todo o seu presente e o seu futuro eterno à obra de Cristo e, mesmo assim se contente em viver a uma fria distância de sua bendita Pessoa, sem preocupar-se nem um pouco com o fomento da sua causa – com a promoção da sua glória!
A Palavra de Cristo Para o Caminho
Para terminar, devemos fazer uma breve referência ao terceiro e último tema do nosso assunto: A Palavra de Cristo como a guia todo suficiente para o nosso caminho.
Se a obra de Cristo é suficiente para a consciência; se a sua bendita Pessoa for suficiente para o coração; com toda segurança, a sua preciosa Palavra é suficiente para o caminho. Podemos admitir, com toda a confiança possível, que possuímos no divino volume das Sagradas Escrituras tudo o que poderíamos necessitar, não só para atender as necessidades do nosso caminho individual, mas também para as variadas necessidades da Igreja de Deus, nos mínimos detalhes de sua história neste mundo.
Estamos bem conscientes de que ao fazer tal afirmação nos expomos a muito escárnio e oposição, procedentes de mais de uma direção. Seremos confrontados, por um lado, com os que defendem a tradição e, por outro, por aqueles que lutam pela supremacia da razão e vontade humanas. Mas isso nos preocupa muito pouco. Consideramos as tradições dos homens, eles sejam de pais, irmãos ou doutores, quando são apresentados como provindo de alguma autoridade, como uma partícula de pó em uma balança; e no que se refere ao racionalismo humano, só pode ser comparado a um morcego posto ao sol do meio-dia, cego pela luz, e lançando-se contra obstáculos que não pode ver.
É motivo de profundo gozo para o coração do cristão poder escapar das chatas tradições e doutrinas dos homens e entrar na tranquila luz das Sagradas Escrituras, e ao estar diante dos imprudentes raciocínios do ímpio, do racionalista, do cético, sujeitar todo o seu ser moral à autoridade e o poder das Sagradas Escrituras. Ele reconhece, com gratidão, na Palavra de Deus o único padrão perfeito para a doutrina, moral, e todo o resto. «Toda a Escritura é inspirada por Deus, e útil para ensinar, para replicar, para corrigir, para instruir em justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, inteiramente preparado para toda boa obra» (2 Tm 3:16-17).
Que mais podemos necessitar? Nada. Se as Escrituras podem fazer a um menino «sábio para a salvação», e se elas podem tornar um homem «perfeito e inteiramente preparado para toda boa obra», o que nós temos que ver com a tradição ou com o racionalismo humano? Se Deus escreveu um volume para nós, se ele condescendeu em nos dar uma revelação do seu pensamento, quanto a tudo o que devemos conhecer, pensar, sentir, crer e fazer, nos voltaremos para um pobre mortal semelhante a nós – seja ele ritualista ou racionalista – para nos ajudar? Longe de nós tal pensamento! Seria o mesmo que nos voltássemos para o nosso semelhante a fim de acrescentar algo à obra consumada de Cristo, a fim de fazê-la suficiente para a nossa própria consciência, ou suprir o necessário para cobrir alguma deficiência que encontrássemos na Pessoa de Cristo a fim de fazê-lo suficiente para o nosso coração.
Todo louvor e graças sejam dadas ao nosso Deus por não ser este o caso. Ele nos deu, em seu amado Filho, tudo o que necessitamos para a consciência, para o coração, para o caminho aqui – para o tempo, com todos os seus cenários em constante mutações – para a eternidade, com suas eras incontáveis.
Podemos dizer: «Tu, Oh Cristo, é tudo o que necessitamos / mais do que tudo em ti encontramos». Não há, nem pode existir, nenhuma falta no Cristo de Deus. A sua expiação e a sua intercessão devem satisfazer todos os desejos da consciência mais profundamente exercitada. As glórias morais – a poderosa atração de sua divina Pessoa – devem satisfazer as mais intensas aspirações e desejos do coração. E sua inigualável revelação – esse volume sem preço – contém, entre as suas etapas tudo o que possamos necessitar, do principio ao fim, em nossa carreira cristã.
Leitor cristão: Por acaso estas coisas não são assim? Por acaso você não reconhece a verdade que há nelas, no mais íntimo do seu ser moral renovado? Se assim é, você está descansando, em tranquilo repouso, na obra de Cristo? Está se deleitando em sua Pessoa? Está se sujeitando, em todas as coisas, à autoridade de sua Palavra? Deus queira que assim seja com você, e com todos os que professam o seu Nome! Possa haver um testemunho cada vez mais pleno, mais claro e mais decidido para a total suficiência de Cristo, até aquele dia.
Charles Henry Mackintosh (Outubro de 1820 – 2 de Novembro de 1896) – Extraído da revista “Águas Vivas”, ano 10, nº 60 – MACKINTOSH foi um pregador cristão do século XIX, dispensacionalista, escritor de comentários bíblicos, editor de revista e membro dos irmãos Plymouth.