A Tentação de Cristo
Uma exposição confortadora de Mateus 4, concernente a tentação de Cristo no deserto – A causa que me moveu a tratar desta passagem das Escrituras, foi para que aqueles que, pela inescrutável providência de Deus, caem em diversas tentações, não se julguem, por causa disso, menos aceitáveis na presença de Deus; mas, pelo contrário, tendo o caminho preparado para vitória através de Cristo Jesus, não temam, acima da medida, as astutas investidas da ardilosa serpente, Satanás; mas, com alegria e coragem, tendo tal Guia, tal Campeão e tais armas, como as encontradas nesta passagem (se com obediência ouvirmos e crermos verdadeiramente), possam assegurar-se do presente favor de Deus e da vitória final, por meio de Cristo, que, para nossa segurança e livramento, entrou na batalha e triunfou sobre seu adversário e sobre toda sua fúria, e também, para que as subsequências, sendo ouvidas e entendidas, possam ser melhor guardadas na memória.
Pela graça de Deus, nos proporemos a observar, no trato deste assunto:
- Primeiro, o significado da palavra tentação e como ela é usada nas Escrituras;
- Em segundo lugar, quem é tentado aqui e quando esta tentação aconteceu;
- Em terceiro lugar, como e por quais meios Ele foi tentado;
- E por último, porque Ele deveria experimentar aquela tentação e qual o proveito decorrente deste episódio, para nós (a parte aqui traduzida).
“Se és Filho de Deus manda que estas pedras se transformem em pães. Jesus, porém, respondeu: Está escrito: Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4:3-4)
O propósito pelo qual o Espírito Santo conduziu Jesus ao deserto para que Jesus fosse tentado, é nos fazer entender, através deste fato, que Satanás nunca cessa de se opor aos filhos de Deus, mas continuamente, por um meio ou outro, os conduz e os provoca a algum juízo pecaminoso sobre o Deus deles.
Desejar que pedras se transformem em pães ou que a fome seja satisfeita, nunca foi pecado, nem tão pouco uma opinião pecaminosa sobre Deus, mas, creio que esta tentação foi mais espiritual, mais sutil e mais perigosa. Satanás estava se referindo a voz de Deus que disse ser Cristo Seu Filho Amado.
Contra esta declaração ele luta, como lhe e intrínseco fazer, contra a indubitável e imutável palavra de Deus; pois sua malícia contra Deus e seus filhos escolhidos é tal, que para quem Deus declara amor e misericórdia, a estes ele ameaça com desprazeres e maldições; e onde Deus ameaça morte, lá ele é audacioso em declarar vida. Por causa disto Satanás é chamado de mentiroso desde o princípio (Jo 8:44).Assim sendo, o objetivo de Satanás é levar Cristo a desesperança, para que Ele não creia na voz de Deus seu Pai; e este parece ser o significado desta tentação: “Tu ouviste”, Satanás diria, “uma voz dos céus dizer que Tu eras o amado Filho de Deus, no qual Ele se compraz (Mt 3:17), mas não te julgarão louco ou um tolo sem juízo, se creres em tal promessa? Onde estão os sinais deste amor? Tu não estás sem o conforto de todas as criaturas? Tu estás pior do que as brutas feras, pois todo dia elas caçam para se alimentar e a terra produz grama e ervas para seu sustento, de forma que nenhuma delas definha ou é consumida pela fome. Mas tu jejuas há quarenta dias e quarenta noites, esperando sempre algum alívio e conforto dos céus, mas tua melhor provisão são pedras duras! Se Te glorias em teu Deus, e crês verdadeiramente na promessa que foi feita, ordena que estas pedras se transformem em pães. Mas, é evidente que Tu não o podes fazer, pois se pudesses, ou se teu Deus tivesse Te concedido tal privilégio, há muito terias matado tua fome e não necessitarias suportar este abatimento por falta de comida. Mas vendo que ainda continuas assim e que nenhum mantimento foi preparado para Ti, é presunção acreditar em tal promessa, e por isso, perca a esperança de qualquer socorro das mãos de Deus e proveja para Ti, por qualquer outro meio!”.
Eu usei muitas palavras, mas eu não posso expressar o grande despeito que se esconde nesta tentação de Satanás. Foi uma zombaria de Cristo e de sua obediência. Foi uma clara rejeição da promessa de Deus. Foi a voz triunfante dele que aparentava ter conseguido a vitória. Oh! quão amargo este tipo de tentação é, nenhuma criatura pode entender, a não ser os que sentem a dor de tais dardos lançados por Satanás na consciência sensível dos que alegremente descansam e repousam em Deus e nas suas promessas de misericórdia.
Mas aqui devemos notar a base e o fundamento desta tentação. A conclusão de Satanás é esta: “Tu não és um eleito de Deus, muito menos seu Filho amado”. Sua razão é esta: “Tu estás em dificuldades e não achas alívio”. Logo, o fundamento da tentação era a pobreza de Cristo e a falta de comida, sem esperança de receber, da parte de Deus, o remédio. É a mesma tentação com a qual o diabo objetou a Cristo por meio dos principais sacerdotes, quando em seu tormento atroz na cruz; eles gritavam: “Se Ele é Filho de Deus, deixe que desça da cruz e creremos nele. Confiou em Deus; pois venha livrá-Lo agora, se de fato Lhe quer bem” (Mt 27:40, 43). Como se dissessem: “Deus liberta os seus servos dos problemas. Ele nunca permite que os que O temem sejam envergonhados. Mas vemos este homem em angústia extrema. Se Ele é o Filho de Deus, ou ainda um verdadeiro adorador do Seu nome, Deus o livrará desta calamidade. Se não livrá-Lo, mas permitir que pereça nesta angústia, então é um sinal seguro de que Deus O rejeitou, como hipócrita, que não terá porção de sua glória”. Assim, Satanás tem oportunidade para tentar e também para mover outros a julgar e condenar os eleitos de Deus e seus filhos escolhidos, em função de que lhes sobrevêm muitas angústias.
Aprenderemos, agora, com quais armas devemos lutar contra tais inimigos e assaltos, na resposta de Jesus: “Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus”.
A resposta de Cristo prova aquilo que estivemos mencionando antes, pois a menos que o propósito de Satanás tenha sido demover Cristo de toda esperança na providência misericordiosa de Deus concernente a Ele, naquela sua necessidade, Cristo não respondeu diretamente às palavras de Satanás: “ordene que estas pedras se transformem em pães” (Mt 4:3). Mas Jesus Cristo, percebendo sua astúcia e malícia sutis, respondeu diretamente ao significado delas, desconsiderando suas palavras. Nesta resposta Satanás foi tão frustrado, que teve vergonha de replicar além, sobre este assunto.
Mas para que você entenda melhor o significado da resposta de Cristo, a expressaremos em outras palavras: “Você labora”, Cristo diria, “em trazer ao meu coração dúvida e suspeita com relação a promessa de meu Pai, que foi publicamente proclamada no meu batismo, por causa da minha fome e da carência de toda provisão carnal. Você é audacioso em afirmar que Deus não cuida de mim. Mas você é enganador e sofista corrupto, e seu argumento é vão e repleto de blasfêmias; pois você vincula o amor, misericórdia e providência de Deus, a ter ou carecer da provisão carnal, o que não nos é ensinado em nenhuma parte das Escrituras de Deus, mas antes, elas expressam o contrário. Como está escrito “Nem só de pão…”., ou seja, a vida e a felicidade do homem não consistem na abundância de coisas corpóreas, pois a possessão delas não abençoa ou torna feliz o homem, nem a falta delas é a causa da sua miséria final; mas a vida do homem consiste em Deus e nas suas promessas, e os que nelas se apegam sinceramente, viverão a vida eterna. E embora todas as criaturas na terra o desamparem, sua vida corpórea não perecerá até que o tempo apontado por Deus chegue. Pois Deus tem meios para alimentar, preservar e manter, ignorados pela razão humana e contrários ao curso comum da natureza. Ele alimentou seu povo Israel no deserto quarenta anos sem provisão humana. Ele preservou Jonas na barriga do grande peixe e manteve e guardou os corpos dos seus três filhos (Sadraque , Mesaque e Abede-Nego) no fogo da fornalha. A razão e o homem natural não viam saída nestes casos, a não ser destruição e morte, e julgariam que Deus havia retirado o Seu cuidado destas suas criaturas; e todavia, sua providência foi mais zelosa em relação a eles no limite dos perigos que enfrentaram, dos quais Ele os libertou de tal forma (e durante os assistiu), que sua glória, que é sua misericórdia e bondade, apareceu e sobressaiu-se mais, depois de seus problemas, do que se eles tivessem sucumbindo neles. E por esta razão, eu não meço a verdade e favor de Deus pelo fato de ter ou não necessidades físicas, mas pela promessa que Ele fez para mim. Assim como Ele é imutável, também são a sua palavra e promessa, as quais, Eu creio, me apego e sou fiel, independentemente do que possa vir externamente ao corpo”.Nesta resposta de Cristo podemos discernir quais armas devem ser usadas contra nosso adversário, o diabo, e como devemos refutar seus argumentos, que, com astúcia e malícia, ele faz contra os eleitos de Deus. Cristo poderia ter repelido Satanás com uma palavra ou pensamento, ordenando-o calar, como Aquele a quem todo poder foi dado no céu e na terra. Mas foi agradável a sua misericórdia, nos ensinar como usar a espada do Espírito Santo, que é a palavra de Deus, na batalha contra nosso inimigo espiritual. O texto da Escritura mencionado por Cristo, encontra-se no oitavo capítulo de Deuteronômio. Foi dito por Moisés, um pouco antes de sua morte, para firmar o povo na misericordiosa providência de Deus; pois no mesmo capítulo, e em outros depois deste, ele avalia a grande luta, os diversos perigos e as necessidades extremas que eles tiveram que suportar no deserto, no período de quarenta anos; e quão constante Deus tinha sido em mantê-los e em cumprir sua promessa, conduzindo-os através de todos os perigos até a terra prometida. E assim, este texto da Escritura responde, mais diretamente, às tentações de Satanás, pois Satanás raciocina deste modo(como mencionei antes): “Tu estás em pobreza e não tens provisão para sustentar tua vida. Isto prova que Deus não considera e nem toma conta de Ti, como Ele faz com os seus filhos escolhidos”, Jesus Cristo responde: “Teu argumento é falso e vão, pois pobreza ou necessidade não excluem a providência ou cuidado de Deus, os quais são facilmente provados pelo exemplo do povo de Israel, que no deserto, muitas vezes, necessitou de coisas necessárias ao sustento da vida e, por carecerem delas, invejaram e murmuraram. Apesar disto, o Senhor nunca retirou deles seu cuidado e providência, mas, em conformidade ao que uma vez falou, a saber, que eles eram seu povo peculiar, e em conformidade a promessa feita a Abraão e àqueles que saíram do Egito, Ele continuou sendo seu guia e condutor, até que os colocou na tranquila possessão da terra de Canaã, não obstante a grande debilidade e as diversas transgressões do seu povo”.
Assim, nós somos ensinados, por Jesus Cristo, a repulsar Satanás e seus assaltos pela palavra de Deus e a aplicar os exemplos de sua misericórdia, mostrada a outros antes de nós, para nossa alma nas horas de tentação e nos tempos de nossas tribulações; pois aquilo que Deus faz a alguém em determinada época, cabe a todos que confiam e dependem Dele e nas suas promessas. Por esta razão, por mais que sejamos assaltados pelo nosso adversário Satanás, encontramos, na Palavra de Deus, armadura e armas suficientes.
A principal astúcia de Satanás é atormentar aqueles que começaram a abandonar seu domínio e a declarar inimizade contra a iniquidade, com diversos ataques, tendo como objetivo colocar em suas consciências, divergências entre eles e Deus, para que eles não descansem e repousem nas seguras promessas de Deus. E para conseguir isto, ele usa e inventa vários argumentos. Algumas vezes ele chama à lembrança deles, os pecados de sua juventude ou aqueles que cometeram no tempo de cegueira. Frequentemente ele objeta a ingratidão deles em relação a Deus e suas presentes imperfeições. Através de doença, pobreza, tribulações nos seus lares, ou pela perseguição, ele pode alegar que Deus está zangado e não liga para eles. Ou pela cruz espiritual, que poucos sentem e menos ainda entendem sua utilidade e proveito, ele poderia levar os filhos de Deus ao desespero e, através de infinitos meios mais, ele anda ao redor como um leão que ruge, para minar e destruir nossa fé.
Mas é impossível para ele prevalecer contra nós, a menos que nós, obstinadamente, nos recusemos a usar a proteção e a arma que Deus tem oferecido.
Os eleitos de Deus não podem recusá-la, mas buscar pelo seu Defensor quando a batalha estiver mais acirrada, pois os soluços, gemidos e lamentações de tal luta (vencer o medo, as súplicas por persistência), são a busca incontestável e certa de Cristo nosso campeão. Não recusamos a arma, embora algumas vezes, por debilidade, não a usemos como devêssemos. É suficiente que seus corações sinceramente clamem por forca maior, por persistência e pelo livramento final de Cristo Jesus.
Aquilo que carecemos, Sua suficiência supre; pois é Ele que luta e triunfa por nós.
John Knox (1503-1572) – Grande reformador da igreja na Escócia, contemporâneo de João Calvino.