“Respondeu-lhe, pois, Simão Pedro: Senhor, para quem iremos nós? Tu tens as palavras de vida eterna” (João 6:68).
O capítulo do texto que encabeça esta página é riquíssimo em assunto. Ele começa, devemos lembrar, com aquele milagre bem conhecido, a multiplicação dos cinco pães e dois peixes para alimentar 5000 homens – o que alguns escritores antigos chamam de o maior prodígio que Cristo já operou – o único que os quatro evangelistas registram; um feito que mostrou poder criativo.
Ele então nos mostra um outro milagre de caráter dificilmente menos impressionante, o caminhar de Cristo sobre as águas do mar da Galiléia, que exibiu o poder do nosso Senhor, quando Ele achou conveniente suspender as assim chamadas leis da natureza. Foi tão fácil para Ele caminhar sobre a água como tinha sido para criar terra e mar no princípio.
O capítulo então nos leva àquele maravilhoso discurso na sinagoga de Cafarnaum, que apenas João, dos quatro autores dos Evangelhos, foi inspirado para entregar ao mundo. Cristo, o verdadeiro pão da vida; os privilégios de todos que vêm a Ele e creem; o profundo mistério de Maria, no ano de 1880 [1]. Ele é agora publicado com algumas omissões e alterações: comer a carne de Cristo e beber o sangue de Cristo, e a vida que esta carne e sangue transmitem. Que riqueza de verdade preciosa se encontra aqui! Quão grande dívida que a Igreja mantém ao quarto Evangelho!
E finalmente, conforme o capítulo aproxima-se do fim, observamos esta nobre explosão do amável apóstolo Pedro “Senhor, para quem iremos nós? Tu tens as palavras de vida eterna”. Este notável versículo dispõe de três pontos para os quais eu agora proponho chamar a atenção de todos em cujas mãos este papel cair.
I. Em primeiro lugar, peço que observem a ocasião em que essas palavras foram pronunciadas. O que levou esse discípulo ardente e impulsivo a clamar “Para quem iremos nós?”. Os versos que precedem nosso texto oferecem uma resposta. ` Desde então muitos dos seus discípulos tornaram para trás, e já não andavam com ele. Então disse Jesus aos doze: Quereis vós também retirar-vos?
Contemos aqui o registro de um fato melancólico e muito instrutivo. O próprio Cristo, que “falou como nenhum homem nunca falara”, realizou obras de poder inigualável, viveu como ninguém jamais vivera, santo, inofensivo, imaculado, separado de pecadores, o próprio Cristo, muitos, após o seguirem por um tempo, deixaram-no. Sim! Muitos, não poucos, no brilho do meio dia de milagres e sermões, tais quais o mundo jamais vira ou ouvira antes, muitos viraram as costas para Cristo, deixaram-no, abandonaram-no, desistiram do Seu bendito ministério, e retrocederam; alguns para o Judaísmo, alguns para o mundo, e alguns, podemos temer, para os seus pecados. “Se fizeram isto com uma árvore verde, o que podemos esperar com uma seca?”. Se homens puderam abandonar a Cristo, não temos o direito de ficar surpresos se seus ministros fracos e errôneos também forem abandonados nestes últimos dias.
Mas por que estes homens retrocederam? Alguns deles, é provável, voltaram porque não tinham avaliado o custo, e “chegada a angústia e a perseguição, por causa da Palavra”, se ofenderam. Alguns deles recuaram porque tiveram uma total má interpretação da natureza do reino do nosso Senhor, e sonhavam apenas com vantagens temporais e recompensas. A maioria deles, entretanto, está bem claro, retiraram-se porque não podiam receber a profunda doutrina recém proclamada; e eu quero dizer aqui que doutrina de “comer a carne de Cristo e beber o sangue de Cristo” é absolutamente necessária para a salvação. É a velha história. Assim como foi no princípio, assim será no fim. Nada alimenta tanto desgosto no coração escuro do homem quanto a chamada “teologia do sangue”. Caim, em sua ignorância, rejeitou a ideia de sacrifício vicário, e os judeus que abandonaram nosso Senhor, “retrocederam” porque ouviram que precisavam “comer a carne e beber o sangue” do Filho do homem.
Mas não há como negar o fato de que esses judeus que “voltaram” nunca estiveram sem seguidores e imitadores. A sucessão deles, de qualquer forma, nunca findou. Milhões em todas as épocas foram admitidos na Igreja pelo batismo, e começaram a vida como cristãos professos, e então, chegando ao estado de homem, viraram suas costas tanto a Cristo como ao Cristianismo. Ao invés de “continuarem soldados e servos fiéis de Cristo”, se tornaram servos do pecado, do mundo e da descrença. A apostasia mostra-se costumeira: é uma velha doença, e não deve nos surpreender. O coração é sempre enganoso e desesperadamente corrupto; o diabo está sempre ocupado, buscando quem ele possa tragar; o mundo é sempre traiçoeiro; o caminho para a vida é estreito, os inimigos são muitos, poucos os amigos, grandes as dificuldades, pesada a cruz e a doutrina do Evangelho é ofensiva ao homem natural. Que pessoa atenta se surpreende que multidões em todas as épocas dão as costas a Cristo? Eles são criados dentro do aprisco externo da Igreja na infância, e então, chegando a vida adulta, lançam fora toda religião, e sucumbem no deserto.
No entanto ouso dizer que a disposição de deixar a Cristo nunca foi tão forte como é nesses dias. Nunca foram tantas as objeções ao Cristianismo essencial, tão plausíveis e tão capciosas. Pois esta caracteriza-se uma época de pensamento livre e liberdade de ação, uma época de investigação científica, e de determinação de questionar e interrogar opiniões antigas, uma época de busca ávida por prazeres e impaciência a restrições, uma época de idolatria ao intelecto e admiração extravagante da chamada inteligência, uma época de busca ateniense por novidade e um amor constante a mudança, uma época quando vemos de todos os lados um corajoso mas sempre instável ceticismo, que uma hora nos afirma que o homem é um pouco melhor que um macaco e em seguida que ele é um pouco menos que um deus, uma época de uma disposição mórbida para aceitar os argumentos mais superficiais em favor da descrença e uma simultânea indisposição preguiçosa para investigar as grandes evidências fundamentais da revelação divina. E, pior de tudo, é uma época de liberalidade espúria, quando, debaixo dos altissonantes ditados “sem espírito partidário! sem discriminação!” e coisa do tipo, homens vivem e morrem sem portar qualquer opinião definida. Numa época como esta, pode algum cristão racional se surpreender que o desvio de Cristo é tão comum? Que ele cesse de pasmar, e não perca seu tempo reclamando. Que cinja seus lombos como um homem, e faça o que puder para impedir a praga. Que ele firme seus pés nos “antigos caminhos”, e lembre que a apostasia observada é apenas uma velha queixa em forma agravada. Que se posicione entre os mortos e vivos, e tente parar o engano. Que “grite, e não poupe esforços”. Que ele declare, “Contenham-se, a batalha do Cristianismo não está perdida: Quereis vós também retirar-vos?”.
Eu ouso acreditar que muitos jovens em cujas mãos este papel cair são, de tempos em tempos, tentados amargamente a deixarem a Cristo. Vocês partem ao mundo, talvez vindos de lares tranquilos, onde as verdades primárias do Cristianismo jamais foram questionadas por sequer um momento, para ouvir todo tipo de teorias estranhas abordadas e opiniões estranhas desenvolvidas, contraditórias aos velhos princípios que vocês foram ensinados a acreditar. Vocês notam, para a própria surpresa, que o pensamento livre e o livre manuseio de assuntos sagrados chegou a tal intensidade que os próprios fundamentos da fé parecem abalados. Então descobrem, para o assombro de vocês, que inteligência e religião nem sempre caminham juntas, e que é possível ao mais alto intelecto estar pronto para expulsar Deus do seu próprio mundo. Quem se espanta se essa confusão provoca um forte choque a fé delicada de muitos jovens, e que, cambaleando debaixo disto, muitos são tentados a deixarem a Cristo, e descartarem o Cristianismo juntamente?
Agora, se qualquer leitor desta folha experimenta tal tentação, eu o imploro por amor a Cristo a permanecer firme, a agir como homem e resistir à tentação. Tente perceber que não há nada de novo nas perplexidades circundantes. Não passa da velha doença que sempre atormentou e tentou à Igreja em todas as épocas, desde o dia em que Satanás disse a Eva, “certamente não morrerás”. Este apresenta-se como o único processo de peneiração que Deus permite, a fim de separar o joio do trigo, pelo qual todos nós precisamos passar. O mundo, afinal de contas, com suas armadilhas e ciladas para a alma, suas competições e lutas, seus fracassos e sucessos, seus desapontamentos e suas perplexidades, sua perpétua safra de teorias toscas e opiniões extremistas, seus conflitos mentais e ansiedades, seu extravagante pensamento livre, e sua igualmente extravagante superstição, o mundo é uma ardente fornalha de aflição, pela qual todos os crentes devem se preparar para atravessar. A tentação de deixar sua primeira fé e voltar as costas para Cristo certamente o encontrará mais cedo ou mais tarde, como encontrou milhões antes de nós, de uma forma ou de outra. Entender que ao resistir esta tentação, você está apenas resistindo a um antigo, e muitas vezes vencido, inimigo da alma, é metade da batalha.
Enquanto lhe peço para não se admirar com a tentação de deixar a Cristo, também lhe imploro que não se abale por ela. E se dezenas de homens que você conhece cederem sob o ataque, jogarem fora suas armaduras cristãs, negligenciarem suas Bíblias, fizerem uso indevido dos seus domingos, e viverem praticamente sem Deus no mundo? E se homens inteligentes, homens de futuro, filhos de pais que nunca sonharam tais coisas, abandonarem a bandeira sob a qual eles se alistaram, e tornarem-se meros “niilistas”, ou crentes em nada? Que nenhuma destas coisas o abale. Fixe o seu rosto como um seixo apontado para Jerusalém. Firme seu pé nos caminhos antigos, o bom e provado caminho para a cidade celestial.
Que fruto possuem os desertores para mostrar comparados com os seguidores de Pedro, Tiago e João? Que aumento da paz interna e da utilidade externa? Que descanso para a consciência? Que conforto nas provações? Não! Enquanto muitos abandonam a Cristo, apegue-se a Ele com firmeza de coração. Apegue-se aos antigos hábitos de oração e leitura diária da Bíblia e à participação regular dos meios de graça. Mil vezes melhor estar do lado de Cristo com poucos, e ser zombado e desprezado por um tempo, do que ter o louvor de muitos por alguns curtos anos, e então acordar tarde demais para ver que sem Cristo você não tem paz, esperança e céu.
II. Em segundo lugar, consideremos a pergunta levantada por Pedro em resposta ao apelo de seu Mestre, “Quereis vós também retirar-vos?”. “Senhor”, clama o amável e impulsivo Apóstolo, “Senhor, para quem iremos nós?”. Esta pergunta, sem dúvida alguma, como centenas de outras na Bíblia, era equivalente a uma forte afirmação “Não há outro além de Ti para quem podemos ir”. É como declara Davi, “Quem tenho eu no céu senão a ti? e na terra não há quem eu deseje além de ti” (Salmo 73:25).
Quando refletimos sobre a época em que Pedro viveu, não há como não sentir que ele tinha causa abundante para proferir tal pergunta. Nos seus dias, após 4.000 anos, o mundo não havia conhecido a Deus pela sua sabedoria (1 Coríntios 1:21). O Egito, a Assíria, a Grécia e Roma, nações que alcançaram a maior excelência nas matérias seculares, estavam afundadas em escuridão bruta quanto à religião. Os conterrâneos de inigualáveis historiadores, dramaturgos, poetas, oradores e arquitetos, adoravam a ídolos e prostravam-se diante do trabalho de suas próprias mãos. Os mais sábios filósofos da Grécia e Roma tateavam em busca da verdade como cegos, e cansavam-se em vão em busca da porta. Toda a terra estava manchada de ignorância espiritual e imoralidade, e os homens mais sábios podiam apenas confessar sua necessidade de luz, como o filósofo grego Platão, e seus gemidos e suspiros por um Libertador. Pedro pode muito bem clamar, “Senhor, se Te deixarmos, para quem iremos?”.
Aonde, de fato, poderia o Apóstolo encontrar paz de coração, satisfação de consciência, esperança no mundo vindouro, se deixasse a sinagoga de Cafarnaum com os desertores, e abandonasse a Cristo? Teria ele obtido o que desejava entre os Fariseus cerimoniosos, ou entre Saduceus céticos, Herodianos mundanos, Essenenses ascéticos, ou nas escolas filosóficas de Atenas, Alexandria ou Roma? Teria Gamaliel, Caifas, Estóicos, Epicureus ou Platonistas matado sua sede espiritual, ou alimentado sua alma? É perda de tempo sugerir tais perguntas. Todas estas assim ditas “fontes de sabedoria” há muito provaram-se cisternas humanas e quebradas, que não poderiam conter água. Elas não satisfizeram as mentes aflitas. Aquele que destas águas bebeu logo teve sede.
Mas a indagação trazida por Pedro é uma que cristãos verdadeiros podem utilizar corajosamente, ao serem tentados a deixarem a Cristo. Hoje mesmo, quando os homens nos alegam que o Cristianismo é decadente e esgotado, podemos, com segurança, desafiá-los a nos mostrar algo melhor. Eles podem nos interrogar, se assim desejarem, com muitas objeções à religião revelada e diversas questões às quais não conseguimos responder. No entanto, depois de tudo, podemos desafiá-los a apresentar-nos um caminho mais excelente; um alicerce mais sólido que aquele ocupado pelo homem que simplesmente crê em toda a Bíblia e segue a Cristo.
Suponha por um momento, que na hora da fraqueza, somos tentados a abandonar a Cristo. Suponha que fechemos nossas Bíblias, rejeitemos todos os dogmas, e com um desprezo sublime pela teologia fossilizada dos nossos antepassados, nos contentemos com um ‘nadismo’ polido, ou alguns resquícios de formalidade fria. De que maneira descobriremos que nossa felicidade ou utilidade aumentou? Que base encontraremos para repor à que desocupamos? Uma vez viradas as costas para Cristo, e onde obterás paz para a consciência, força para as responsabilidades, poder sobre a tentação, conforto na tribulação, suporte na hora da morte e esperança ao olhar avante para a sepultura? Você pode perguntar e o ‘nadismo’ não lhe dará respostas. Estas bênçãos só são gozadas por aqueles vivem a vida da fé no Cristo crucificado e ressurreto.
Em quem, de fato, buscaremos socorro, força e conforto, se largarmos Cristo? Vivemos num mundo de aflições, quer gostemos ou não. Você não pode repeli-las mais do que o rei Canute pôde impedir o subir da maré e a rude expansão em torno do trono real. Nossos corpos são suscetíveis à milhares de distúrbios, e nossos corações à milhares de angústias. Nenhuma criatura na terra é tão vulnerável, e tão capaz de intenso sofrimento físico e mental como o homem. Doenças, mortes, funerais, divisões, separações, perdas, falhas, desapontamentos, lutas privadas de família, que nenhum olho mortal vê, nos afligirão de tempos em tempos, e a natureza humana demanda ajuda, ajuda e mais ajuda para enfrentá-las. Oh, onde nossa natureza humana sedenta e lamentável encontrará socorro se deixarmos a Cristo?A pura verdade é que nada além de um poderoso Amigo pessoal jamais satisfará os anseios legítimos da alma do homem. Noções metafísicas, teorias filosóficas, ideias abstratas, especulações vagas sobre “o invisível, o infinito, a luz interna`” e assim por diante, talvez satisfaçam alguns poucos por um período. Mas a grande maioria da humanidade, se tiver algum tipo de religião, nunca se contentará com uma religião que não lhes ofereça uma Pessoa para quem possam olhar e confiar. É exatamente este anseio por uma pessoa que atribui a Mariolatria de Roma seu curioso poder. E este princípio admitido, onde encontrarás alguém tão apto para saciar o homem como o Cristo da Bíblia? Procure por todo o mundo, e aponte, se puder, qualquer objeto de fé digno de ser comparado ao bendito Filho de Deus, a nós apresentado nos Evangelhos. Diante de um mundo decadente desejamos positivos e não negativos. A quem iremos, se nos afastarmos de Cristo?
Homens podem nos dizer, se quiserem, que a nossa velha fonte de água viva está secando, e que o século XIX requer uma nova teologia. Mas não noto evidências que confirmem esta assertiva. Observo multidões de homens e mulheres por todo o mundo, após 1800 anos, continuando a beber desta fonte; e nenhum que se inclina honestamente para beber, reclama que sua sede não foi saciada. E por todo este tempo, aqueles que professam desprezar a boa e velha fonte não conseguem nos mostrar o que quer que seja para substituí-la. A liberdade mental e luz mais elevada que prometem são enganosas como a miragem do deserto africano, e tão irreais como um sonho. Um substituto para a antiga fonte existe somente na imaginação do homem. Aquele que a deixa descobrirá que deve retornar, ou morrer de sede. Talvez alguns dos meus jovens leitores presumam secretamente que as dificuldades da religião revelada são inexplicáveis, e tentam persuadir a si próprios que não sabem para onde ir nestes dias sombrios e nebulosos. Eu lhes suplico a considerarem que as dificuldades da descrença são muito maiores do que as da fé. Quando homens disseram o que puderam a fim de depreciar os antigos caminhos da Bíblia, e para te afastar de Cristo; quando eles empilharam as antigas e obsoletas objeções contra diversos textos, alegando autoria duvidosa, afirmações inconsistentes, e supostos milagres incríveis, ainda assim não conseguem apresentar um substituto para as Escrituras, ou responder à pergunta: “para quem iremos?”. Ainda permanece o grande e amplo fato de que as principais evidências da revelação jamais foram derrubadas, que nós somos criaturas frágeis num mundo pesaroso, e precisamos de uma mão amiga, que somente Cristo estende, e que milhões durante 18 séculos julgaram, e ainda julgam, suficiente. O grande argumento da probabilidade está inteiramente ao nosso lado. Certamente é mais sábio apegar-se a Cristo e ao Cristianismo, com todas as suas supostas dificuldades, do que se lançar num oceano de incertezas, e caminhar para o túmulo sem esperança e conforto, professando não saber nada sobre o mundo invisível.
E, afinal de contas, o desvio de Cristo por conta da suposta dureza de certas doutrinas não nos garantirá imunidade à conflitos mentais. Os problemas do Cristianismo talvez pareçam grandes e profundos, mas os problemas da descrença são ainda maiores e mais profundos e não o menor dos seus problemas é a impossibilidade de responder à pergunta “Por acaso encontrarei qualquer paz real e descanso para a alma, se deixar a Cristo? Para quem irei? Onde, em toda a terra, me depararei com um caminho mais excelente que o da fé em Jesus?”. Onde está o amigo pessoal para tomar Seu lugar? Dê-me mil vezes antes o Cristianismo Evangélico, com todos seus fatos e doutrinas complicadas, a encarnação, a propiciação, a ressurreição e a ascensão em vez da crença fria e estéril dos Socinianos ou dos Deístas, ou as negações melancólicas da descrença moderna. Dê-me a religião de textos, hinos e uma simples fé, que satisfaz a milhares, em vez do assombroso vazio da filosofia especulativa, que não satisfaz ninguém completamente.
Consideremos, por último, a nobre declaração que Pedro profere em nosso texto. “Tu tens as palavras de vida eterna”.
Não suponho, nem por um momento, que o Apóstolo compreendeu totalmente o significado das palavras por ele usadas. Seria inconsistente com tudo que lemos do seu conhecimento, antes da ressurreição do nosso Senhor, supor o contrário. Pode muito bem ser questionado se ele não queria dizer mais que isso: “Tu és o verdadeiro Messias; Tu és o Profeta prometido, como Moisés, sobre quem está escrito: ‘e porei as Minhas palavras na Sua boca, e Ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar”. Creio que aquele texto tão conhecido estava na mente de Pedro, ainda que não assimilasse toda a sua riqueza de significado.
Mas de uma coisa podemos estar certos. Esta expressão “vida eterna” deve ter sido muito familiar a ele e aos doze. Enquanto Jesus entrava e saía do meio deles, suspeito que poucos dias não ouviam isto sair de Seus lábios, e eles foram envolvidos ainda que não entendessem completamente. No breve relato do ensino de nosso Senhor, contido nos quatro Evangelhos, encontramos esta expressão 25 vezes. Somente no Evangelho de João ela é mencionada 17 vezes. Neste mesmo capítulo 6 a lemos 5 repetidas vezes. Sem dúvida ela estava soando nos ouvidos de Pedro quando a pronunciou.
Mas ainda que Pedro “não soubesse o que dissera” naquele dia, houve um dia quando seu entendimento foi aberto, após a ressurreição de seu Senhor, e ele percebeu a altura e a profundidade das “palavras de vida eterna” que antes da crucificação apenas observava através de óculos escuros. E nós, em plena luz dos Atos e das Epístolas, não devemos ter dúvida alguma quanto a abrangência desta poderosa frase, tão frequentemente usada por nosso Senhor.
As palavras de vida eterna de Cristo tratavam da natureza da vida que Ele veio ao mundo para proclamar, uma vida iniciada na alma pela fé enquanto vivemos, e aperfeiçoada na glória quando morrermos. Foram palavras sobre a maneira como esta vida eterna é fornecida ao pecador, através de Sua morte propiciatória, como nosso Substituto, na cruz. Suas palavras abordavam os termos através dos quais esta vida eterna é apropriada, se sentirmos necessidade, os próprios termos da simples fé. Como Latimer disse, é apenas “creia e obtenha”. Tratavam também sobre o treinamento e disciplina na jornada para a vida eterna, que são tão necessários ao homem e tão ricamente providos, a própria graça renovadora e santificadora do Espírito Santo. Foram palavras sobre os confortos e encorajamentos pelo caminho, armazenados para todos os que creem para a vida eterna, a própria ajuda, simpatia, cuidado atento e socorro diário de Cristo. Tudo isto e muito mais, sobre o qual não posso curiosamente entrar em detalhes, está contido naquela pequena frase: “Palavras de vida eterna”. Não é de admirar que nosso Senhor afirma em certo lugar: “Eu vim para que tivessem vida, e vida em abundância;” “Porque lhes dei as palavras que Tu me deste” (João 10:10; 17:8).
Consideremos por um momento a vasta quantidade de homens e mulheres, nestes últimos 18 séculos, que descobriram essas “palavras de vida eterna” não como meras palavras, mas como uma sólida realidade. Estes foram por elas persuadidos, as abraçaram, e obtiveram nelas comida e bebida para suas almas. Estamos rodeados de tão grande nuvem de testemunhas, que pela fé nestas palavras viveram feliz e por fim morreram de forma gloriosa. Onde está aquele que ousa negar isto? Onde encontraremos tais vidas e mortes à parte de Cristo?
Foi a fé nas “palavras de vida eterna” de Cristo que permitiu a Pedro e João permanecerem corajosamente diante do conselho judaico e confessarem seu Mestre sem medo das consequências, declarando, “debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual devamos ser salvos” (Atos 4:12).
Foi a fé nas “palavras de vida eterna” de Cristo que levou Paulo a deixar o Judaísmo e gastar sua vida pregando o Evangelho, e clamar à beira da morte, “porque eu sei em quem tenho crido, e estou certo de que é poderoso para guardar o meu depósito até àquele dia” (II Timóteo 1:12).
Foi a fé nas “palavras de vida eterna” de Cristo que capacitou o Bispo Hooper [2] a caminhar para a estaca em Gloucester, após dizer, “A vida é doce, e a morte amarga, mas a vida eterna é ainda mais doce, e a morte eterna mais amarga”.
Da mesma maneira foram fortalecidos Nicholas Ridley e Hugh Latimer para suportarem a morte ardente em Broad Street, Oxford, em vez de negar os princípios da Reforma.
Esta mesma fé possibilitou a Henry Martyn [3] virar as suas costas para o conforto e prestígio de Cambridge, a fim de ir para um clima tropical, e morrer solitariamente como um missionário.
Ainda a mesma fé moveu àquela mulher honrosa, Catherine Tait, como registrado numa biografia comovente, a renunciar 5 filhos em 5 semanas para a sepultura, na plena confiança de que Cristo manteria Sua palavra, e cuidaria deles tanto na alma como no corpo, e os levaria ao seu encontro no último dia.
Que terrível contraste a esses fatos aparece nas vidas e mortes daqueles que abandonaram a Cristo, e buscaram outros mestres. Que frutos podem os advogados de teorias, ideias e princípios não cristãos apontarem com toda sua inteligência? Que santa, amável e serena quietude de espírito eles mostraram? Que vitórias tiveram sobre a escuridão, a imoralidade, a superstição e o pecado? Que missões de sucesso eles empreenderam? Que mares cruzaram? Que países civilizaram ou moralizaram? Que populações de lares negligenciados desenvolveram? Por quais trabalhos de renúncia eles passaram? Que libertação forjaram na terra? Podes perguntar; e não obterás resposta. Não é de surpreender que nosso Senhor disse dos falsos profetas: “Pelos seus frutos os conhecerão” (Mateus 7:15-16). Apenas aqueles que se juntam a Pedro clamando “Tu tens as palavras de vida eterna” deixam uma marca na humanidade enquanto vivem, e declaram “Ó morte, onde está o teu aguilhão?” quando morrem.
(a) Em conclusão, apelo a cada leitor a perguntar a si mesmo se está se afastando de Cristo, como os judeus, ou se apegando corajosamente a Ele, como Pedro. Vivemos em dias perigosos. Houve um tempo em que a irreligião era dificilmente respeitada; mas este tempo já se foi. Entretanto, Cristo ainda continua a bater na porta de seus corações, pedindo que ponderem seus caminhos e prestem atenção no que fazem. Quereis vós também retirar-vos? Ouse estabelecer um tribunal no mais íntimo do seu coração, e olhe adentro. Resista ao sentimento preguiçoso Epicureu que lhe ordena a nunca perscrutar seu caráter interno. Lembre disto, chegará a hora quando você terá necessidade de um grande Amigo no céu. Sem Ele talvez você viva toleravelmente; mas sem Ele você jamais morrerá com conforto.
Talvez me alegue que você não quer realmente abandonar a Cristo, embora não seja no presente tudo o que deveria ser. Mas há certos assuntos na religião acerca dos quais você não pode ter entendimento, e está esperando por mais luz. Ou está trabalhando duro por algum objeto especial, e não tem tempo agora, e você espera, como Felix, por “uma época conveniente”. Mas, ah! Alma que espera e hesita, o que é negligenciar as ordenanças, dia e Palavra de Cristo senão abandoná-lo? Acorde para perceber que você está num voo inclinado, descendo gradualmente. Você está afastando-se mais e mais de Cristo diariamente. Acorde, e resolva, pelo auxílio de Deus, a não mais se distanciar.
(b) Mas, ao lado de não ter religião alguma, rogo a cada leitor a acautelar-se de uma religião onde Cristo não possui Seu devido lugar. Que nunca tentemos nos saciar com um barato e cerimonioso Cristianismo, tomado descuidadamente no domingo de manhã, e deixado de lado à noite, sem nos influenciar durante a semana. Tal Cristianismo nunca nos oferecerá paz na vida, ou esperança na morte, nem poder para resistir a tentação, ou conforto na tribulação. Somente Cristo tem “as palavras de vida eterna”, e Suas palavras devem ser recebidas, cridas, abraçadas e se tornar a comida e bebida de nossas almas. Um Cristianismo sem uma viva e sentida comunhão com Cristo, sem a compreensão dos benefícios de Seu sangue e intercessão, sem o Seu sacrifício e sacerdócio, é uma formalidade impotente e enfadonha.
(c) Finalmente, “mantenhamos a profissão de nossa fé sem vacilar”, se tivermos razão para crer que somos verdadeiros servos de Cristo. Deixem os homens zombarem de nós e tentarem nos afastar de Cristo o quanto quiserem. Que calma e humildemente possamos dizer a nós mesmos em tais situações: “Afinal, para quem irei se deixar a Cristo? Sinto dentro de mim que Ele possui `as palavras de vida eterna`. Noto que milhares encontraram comida e bebida para suas almas. Onde Ele for, irei; e onde Ele se hospedar, ali me hospedarei. Num mundo decadente, não observo nada melhor. Me agarrarei a Cristo e às Suas palavras. Elas nunca falharam aqueles que nelas confiaram, e creio que não me desapontarão”.
John Charles Ryle – Sermão pregado na Universidade de Oxford por volta de 1880, e publicado como capítulo do livro “Cenáculo: Algumas verdades para os tempos“. Traduzido de Christian Classics Ethereal Library | Projeto Ryle – Anunciando a Verdade Evangélica.
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Notas: [1] A frase no original aparece “the deep mystery of Mary’s, in the year 1880”. Não sabemos porque essa frase está colocada ai nesse contexto, imaginamos que Ryle se refere com isso a citações como “E quando o viram, maravilharam-se, e disse-lhe sua mãe: Filho, por que fizeste assim para conosco? Eis que teu pai e eu ansiosos te procurávamos. E ele lhes disse: Por que é que me procuráveis? Não sabeis que me convém tratar dos negócios de meu Pai? E eles não compreenderam as palavras que lhes dizia. E desceu com eles, e foi para Nazaré, e era-lhes sujeito. E sua mãe guardava no seu coração todas estas coisas” (Lucas 2:48-51). Que esse mistério que Maria guardava, da divindade de Cristo, agora é revelado (Nota do Projeto Ryle). [2] Richard Hopper foi bispo em Gloucester, Inglaterra, e um dos reformadores da Igreja da Inglaterra. Foi queimado em martírio nos tempos da rainha Maria, a Sanguinária, que era católica romana e perseguia os protestantes. Ridley e Latimer, citados na frase posterior, também forma martirizados nesses dias (Nota do revisor). [3] Henry Martin foi clérigo e missionário da igreja da Inglaterra no começo do século XIX, esteve no Brasil, na Bahia, em 1810, porém desenvolveu seu ministério no Oriente Médio. Morreu na Pérsia.