Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre o monte; nem se acende uma candeia para colocá-la debaixo do alqueire, mas no velados, e alumia a todos que se encontram na casa. Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus (Mt 5:13-16).
As bem-aventuranças descrevem o caráter essencial dos discípulos de Jesus; o sal e a luz são metáforas que denotam a sua influência para o bem no mundo.
Ademais, a simples ideia de que os cristãos podem exercer uma influencia sadia no mundo deveria nos causar um sobressalto. Que influencia poderia, exercer as pessoas descritas nas bem-aventuranças, neste mundo violento e agressivo? Que bem duradouro poderiam proporcionar o humilde e o manso, os que choram e os misericordiosos, ou aqueles que tentam fazer paz e não guerra? Não seriam simplesmente tragados pela enchente do mal? O que poderiam realizar aqueles cuja única paixão é apetite pela justiça, e cuja única arma é a pureza de coração? Essas pessoas não seriam frágeis demais para conseguir realizar alguma coisa, especialmente se constituem uma minoria no mundo?
É evidente que Jesus não participava desse ceticismo. Antes, o contrário. O mundo, sem dúvida, perseguirá a igreja (10-12); apesar disso, a igreja é chamada para servir a este mundo que a persegue (13-16). “Vossa única vingança”, expressou Rudolf Stier, “deve ser o amor e a verdade contra o ódio e as mentiras”. Por mais incrível que pareça, Jesus referiu-se àquele punhado de camponeses palestinos, chamando-os de sal da terra e luz do mundo, por causa do alcance que sua influência teria. Também é notável providencia divina que, neste mais judaico dos quatro Evangelhos, haja uma tal alusão a toda a terra, ao poder benéfico de alcance mundial dos discípulos de Cristo.
A fim de definir a natureza de sua influencia, Jesus recorreu a duas metáforas domésticas. Todo lar, por mais pobre que seja, usava e ainda usa tanto o sal como a luz. Durante a sua própria infância, Jesus devia ter observado frequentemente sua mãe usando o sal na cozinha e acendendo as luzes quando o sol se punha. Sal e luz são utilidades domésticas indispensáveis. Diversos comentaristas citam o ditado de Plínio, de que nada é mais útil do que” o sal e o sol” (sale et sole). A necessidade da luz é óbvia. O sal, por outro lado, tem uma variedade de usos. É condimento e preservativo. Parece que já era conhecido desde os tempos imemoriais como componente essencial da dieta humana e um tempero ou condimento alimentar: “Comer-se-á sem sal o que é insípido?” Entretanto, particularmente nos séculos antes do invento da refrigeração, ele era usado para preservar a carne do apodrecimento. E na verdade ainda o é. Qual é o brasileiro que nunca comeu ou pelo menos não ouviu falar da famosa carne de sol, ou charque, jabá, carne do ceará…? Qualquer que seja o nome dado, de acordo com a região, o segredo é sempre o mesmo: o sal, que conserva e lhe dá sabor.
A verdade básica que jaz por trás destas metáforas, sendo comum às duas, é que a Igreja e o mundo as comunidades separadas. De um lado está “o mundo”; de outro, “vós” que sois a luz do mundo. É verdade que as duas comunidades (“eles” e “vós”) estão relacionadas uma com a outra, mas essa relação depende da sua diferença. É importante declará-lo hoje em dia, quando é teologicamente elegante tornar obscuras as fronteiras entre a Igreja e o mundo, bem como referir-se a toda a humanidade indiscriminadamente como “o povo de Deus”.
Mais ainda, as metáforas nos dizem algo sobre as duas comunidades. O mundo é evidentemente um lugar escuro, com pouca ou nenhuma luz própria, pois precisa de uma fonte de luz externa para iluminá-lo. É verdade que ele “sempre está falando sobre a sua iluminação, mas na realidade grande parte de sua pretensa luz não passa de trevas. O mundo manifesta também uma tendência constante à deterioração. A ideia não é que o mundo seja insípido e que os cristãos o tornem menos insípido (“a ideia de que se possa tornar o mundo mais agradável a Deus é totalmente absurda”), mas que o mundo está apodrecendo. Ele não pode impedir a sua própria deterioração. Apenas o sal, quando introduzido de fora, pode fazê-lo. A Igreja, por outro lado, foi colocada no mundo com duplo papel: como sal, para interromper, ou pelo menos retardar, o processo da corrupção social; e, como luz, para desfazer as trevas.
Quando examinamos mais detalhadamente as duas metáforas, vemos que foram deliberadamente proferidas a fim de serem comparadas uma com a outra. Nos dois casos, Jesus primeiro faz umas afirmação (“Vós sois o sal da terra”, “Vós sois a luz do mundo”). Depois, ele acrescenta um apêndice, a condição da qual depende a afirmação (o sal deve manter sua qualidade de salgar e a luz deve brilhar). O sal para nada serve se perde a sua salinidade; a luz torna-se inútil, se for escondida.
1 – O sal da terra (13)
A afirmação é direta: “Vós sois o sal do mundo”. Isto significa que, quando cada comunidade se revela tal como é, o mundo se deteriora como peixe ou a carne estragada, enquanto que a Igreja pode retardar a sua deterioração.
É claro que Deus estabeleceu outras influencias restringentes na comunidade. Em sua graça comum, ele mesmo estabeleceu certas instituições, que controlam as tendências egoístas do homem e evitam que a sociedade acabe na anarquia. A principal delas é o Estado (com a sua autoridade de estruturar executar leis) e o lar (incluindo o casamento e a vida em família). Estes exercem uma influencia adia sobre a comunidade. Não obstante, deus planejou que a mais poderosa coibição de todas, dentro da sociedade pecadora, fosse o seu próprio povo redimido, regenerado e justificado. Como R. V. G. Tasker o explicou, os discípulos são “chamados a ser um purificador moral em um mundo onde os padrões morais são baixos, instáveis, ou mesmo inexistentes”.
A eficácia do sal, entretanto, é condicional: tem de conservar a sua salinidade. Mas, em termos precisos, o sal nunca pode perder a sua salinidade. Entendo que o cloreto de sódio é um produto químico muito estável, resistente a quase todos os ataques. Não obstante, pode ser contaminando por impurezas, tornando-se, então, inútil e até mesmo perigoso. O sal que perdeu a sua propriedade de salgar não serve nem mesmo para adubo, isto é fertilizante. O Dr. David Turk me explicou que, naquele tempo, chamava-se de “sal” um pó branco (talvez apanhado á volta do Mar Morto), o qual, embora contivesse cloreto de sódio, também continha muita coisa mais, pois antigamente não existiam refinarias. Nesse pó, o cloreto de sódio era provavelmente o componente mais solúvel e , portanto, o que mais facilmente desaparecia. O resíduo de pó branco ainda parecia ser sal, e sem dúvida era chamado de sal, mas não tinha o seu gosto nem agia como tal. Não passava de pó do chão.
Da mesma forma, o cristão. “Tende sal em vós mesmos”, disse Jesus em outra ocasião. A salinidade do cristão é o seu caráter conforme descrito nas bem-aventuranças, é discipulado cristão verdadeiro, visível em atos e palavras. Para ter eficácia, o cristão precisa conservar a sua semelhança com Cristo, assim como o sal de vê preservar a sua salinidade. Se os cristãos foram assimilados pelos não cristãos, deixando-se contaminar pelas impurezas do mundo, perderão a sua capacidade de influenciar. A influência dos cristão na sociedade e sobre a sociedade depende da sua diferença e não da identidade. O Dr. Lloyd-Jones enfatizou: “A glória do Evangelho é que, quando a Igreja é absolutamente diferente do mundo, ela invariavelmente o atrai. É então que o mundo se sente inclinado a ouvir a sua mensagem , embora talvez no princípio a odeie”. Caso contrário, se nós os cristãos, formos indistinguíveis dos não cristãos, seremos inúteis. Teremos de ser igualmente jogados fora, como o sal sem salinidade, “lançado fora” e “pisado pelos homens”. “Mas que decadência!”, comenta A. B. Bruce, “De salvadores da sociedade a material de pavimentação de estradas!”
2 – A luz do mundo (14-16)
Jesus apresentou a sua segunda metáfora com uma afirmação semelhante: vós sois a luz do mundo. É verdade, mais tarde ele diria: “Eu sou a luz do mundo”. Mas, por derivação, nós também o somos, pois brilhamos com a luz de Cristo no mundo, como estrelas no céu à noite. Às vezes, fico imaginando como seria esplendido se os não cristãos, curiosos por descobrir o segredo e a fonte de nossa luz, viessem a nós e nos indagassem sobre isso.
Jesus esclarece que essa luz são as nossas “boas obras”. Que os homens vejam as vossas boas obras, disse, e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus, pois é através dessas boas obras que a nossa luz tem de brilhar. Parece que “boas obras” é uma expressão generalizada, que abrange tudo o que o cristão diz e faz porque é cristão, toda e qualquer manifestação externa e visível de sua fé cristã. Considerando que a luz é um símbolo bíblico comum da verdade, a luz do cristão deve certamente incluir o seu testemunho verbal. Assim, a profecia do Velho Testamento de que o Servo de Deus seria uma “luz para os gentios”, cumpriu-se não só no próprio Cristo, a luz do mundo, mas também nos cristãos que dão testemunho de Cristo. A evangelização deve ser considerada como uma das “boas obras” pelas quais a nossa luz brilha e o nosso Pai é glorificado.
Lutero tinha razão quando enfatizava isto, mas errou (na minha opinião) ao fazer disto referencia exclusiva: “Mateus não tem em mente as obras comuns que as pessoas deveriam fazer umas pelas outras por causa do amor… Antes, ele estava pensando principalmente na obra que distingue o cristão quando mostra como fortalecê-la e preservá-la; é assim que testemunhamos de que realmente somos cristãos”.
Ele prossegue em seu comentário traçando um contraste entre as primeiras e as últimas tábuas do decálogo, isto é, os dez mandamentos que expressam o nosso dever para com Deus e o nosso próximo. “As obras que agora comentamos tratam dos três primeiros grandes mandamentos, que se referem à honra, ao nome e à Palavra de Deus”. É bom lembrar-se de que crer, confessar e ensinar a verdade também fazem parte das “boas obra” que evidenciam a nossa regeneração pelo Espírito Santos. Contudo, não devemos nos limitar a isto. “Boas obras” são obras também do amor, além da fé. Elas expressam não só a nossa lealdade a Deus, mas também o nosso interesse pelos nossos semelhantes. Na verdade, o significado primário de “obras” tem de ser atos práticos e visíveis gerados pela compaixão. Quando os homens veem tais obras, disse Jesus, glorificam a Deus, pois elas encarnam as boas novas do seu amor que nós proclamamos. Sem elas, o nosso Evangelho perde a sua credibilidade; e Deus, a sua honra.
Assim como acontece com o sal, também a afirmação referente à luz foi seguida de uma condição: Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens. Se o sal pode perder sua salinidade, a luz em nós pode transformar-se em trevas. Mas nós temos de permitir que a luz de Cristo de nós brilhe para fora, a fim de que as pessoas a vejam. Não devemos ser como uma cidade ou vila aninhada em um vale, cujas luzes ficam ocultas, mas sim como uma cidade edificada sobre um monte, que não se pode esconder e cujas luzes são claramente visíveis a quilômetros de distância. E mais, devemos ser como uma lâmpada acesa, como João Batista, “que ardia e alumiava”, colocada no velador, numa posição de destaque na cassa a fim de iluminar a todos que se encontram em casa, e não ficando “debaixo da gamela” ou “debaixo do balde”, onde não produz bem algum.
Isto é, na qualidade de discípulos de Jesus, não devemos esconder a verdade que conhecemos ou a verdade do que somos. Não devemos fingir que somos diferentes, mas devemos desejar que o nosso Cristianismo seja visível a todos. “Refugiar-se no invisível é uma negação do chamado. Uma comunidade de Jesus que procura esconder-se deixou de segui-lo”. Antes, nós devemos ser cristãos autênticos, vivendo abertamente a vida descrita nas bem-aventuranças, sem nos envergonhar de Cristo. Então as pessoas verão, e verão as nossa boas obras e, assim glorificarão a Deus, pois reconhecerão inevitavelmente que é pela graça de Deus que somos assim, que a nossa luz é a luz dele, e que as nossas obras são obras dele feitas em nós e através de nós. Desse modo, louvarão a luz, e não a lâmpada que a transmite, glorificarão a nosso Pai que está nos céus, e não aos filhos que ele gerou e que têm traços da sua família. Até mesmo aquele que nos injuriam não poderão deixar de glorificar a Deus por causa da própria justiça pela qual eles nos perseguem (10-12).
3 – Lições a aprender
As metáforas usadas por Jesus, referentes ao sal e à luz têm muito a nos ensinar sobre nossas responsabilidades cristãs no mundo Três lições se destacam.
Há uma diferença fundamental entre os cristãos e os não cristãos, entre a igreja e o mundo.
É verdade que alguns não cristãos adotam uma falsa aparência de cultura cristã. Por outro lado, alguns cristãos professos parecem indiscerníveis dos não cristãos e, assim, negam o nome de cristão através do seu comportamento não cristão. Mas a diferença essencial permanece. Podemos dizer que são tão diferentes quanto o alho do bugalho. Jesus disse que são tão diferentes como a luz e as trevas, tão diferentes como o sal e a deterioração ou a doença. Quando tentamos obliterar, ou até mesmo reduzir o mínimo esta diferença, não servimos a Deus, nem a nós mesmos, nem ao mundo.
Este tema é básico no Sermão do Monte. O Sermão foi elaborado na pressuposição de que os cristãos são por natureza diferentes, e convoca-nos a sermos diferentes na prática. Provavelmente, a maior de todas as tragédias da Igreja através de sua longa história, cheia de altos e baixos, tem sido a sua constância de conformar-se à cultura prevalecente, em lugar de desenvolver uma contracultura cristã.
Temos de aceitar a responsabilidade que esta diferença coloca sobre nós.
Quando em cada metáfora reunimos a afirmação e a condição, a nossa responsabilidade se destaca. Cada afirmação começa, em grego, com o enfático pronome “vocês”, que seria o mesmo que dizer “vocês simplesmente não podem falhar para o mundo ao qual foram chamados a servir. Vocês têm de ser o que são. Vocês são o sal e, por isso, têm de conservar a sua salinidade e não podem perder o seu sabor cristão. Vocês são a luz e, por isso, devem deixar que a sua luz brilhe e não devem escondê-la de modo algum, quer seja através do pecado ou da transigência, pela preguiça ou pelo medo.
Esta vocação para assumir a nossa responsabilidade cristã, por causa do que Deus fez por nós e por causa de onde ele nos colocou, é particularmente relevante aos jovens que se sentem frustrados no mundo moderno. Os problemas da comunidade humana são tão grandes e eles se sentem tão pequenos, tão frágeis, tão ineficientes! “Alienação”, um termo popularizado por Marx, é a palavra comumente usada hoje para descrever estes sentimentos de frustração.
Que mensagem temos, então, para essas pessoas que se sentem estranguladas pelo “sistema”, esmagadas pela máquina da moderna tecnologia, dominadas pelas forças políticas, sociais e econômicas que as controlam e sobre as quais elas não têm controle? Sentem-se vítimas de uma situação que não têm poder de mudar. O que podemos fazer? E no solo desta frustração que os revolucionários são produzidos, dedicados á violenta subversão do sistema. É exatamente deste mesmo solo que podem brotar os revolucionários de Jesus, igualmente ativistas dedicados, e até mais; mas antes, comprometidos a propagar a sua revolução do amor, alegria e da paz. E esta revolução pacífica é mais radical do que qualquer programa de violência, por causa dos seus padrões incorruptíveis e porque modifica as pessoas e as estruturas. Perdemos a nossa confiança no poder do Evangelho de Cristo? Então, ouçam Lutero: “Com a simples palavra de Cristo eu posso ser mais desafiador e mais jactancioso do que eles com todo o seu poder, suas espadas e sua armas”.
Portanto, apesar de tudo, não somos indefesos e impotentes! Temos Jesus Cristo, o seu Evangelho, suas ideias e o seu poder. E Jesus Cristo é todo o sal e toda a luz de que este mundo tenebroso e arruinado precisa. Mas precisamos ter o sal em nós mesmos, e devemos deixar que a nossa luz brilhe.
Temos de considerar a nossa responsabilidade cristã como sendo dupla.
“O sal e a luz têm uma coisa em comum: eles se dão e se gastam, e isto é o opção do que acontece com qualquer tipo de religiosidade ego centralizada”.
Não obstante, o tipo de serviço que cada um presta é diferente. Na verdade, seus defeitos são complementares. A função do sal é principalmente negativa: evitar a deterioração. A função da luz é positiva: iluminar as trevas.
Assim, Jesus chama os seus discípulos para exerceram uma influência dupla na comunidade secular: uma influencia negativa, de impedir a sua deterioração, e uma influência positiva de produzir a luz nas trevas. Pois impedir a propagação do mal é uma coisa; e promover a propagação da verdade, da beleza e da bondade é outra.
Reunindo as duas metáforas, parece-nos legítimo discernir nelas a relação correta entre evangelização e a ação social, na totalidade da missão de Cristo no mundo, uma relação que deixa as duas coisas, sal e luz, na comunidade secular.
Examinemos, primeiro, a nossas vocação para sermos sal. O apóstolo Paulo pinta um quadro sinistro no final do primeiro capítulo da sua carta aos Romanos, falando do que acontece quando a sociedade abafa (por causa do amor ao mal) a verdade que conhece por natureza. Ela deteriora. Seus valores e padrões declinam rapidamente, até ficar totalmente corrompida. Quando os homens rejeitam o que sabem de Deus, ele os abandona às suas próprias noções distorcidas e paixões perversas, até que a sociedade cheire mal às narinas de Deus e de todas as pessoas honesta.
Os cristãos foram colocados por Deus numa sociedade secular para retardar este processo. Deus pretende que penetremos no mundo. O sal cristão não tem nada de ficar aconchegado em elegantes e pequenas dispensas eclesiásticas; nosso papel é o de sermos “esfregados” na comunidade secular, como o sal é esfregado na carne, para impedir que apodreça. E quando a sociedade apodrece, nós, os cristãos, temos a tendência de levantar as mãos para o céu, piedosamente horrorizados, reprovando o mundo não cristão; mas não deveríamos, antes, reprovar-nos a nós mesmos? Ninguém pode acusar a carne fresca de deteriorar-se. Ela não ode fazer nada. O ponto importante é: onde está o sal?
Jesus ensinava em algum ponto perto do mar da Galileia. Menos de 160 quilômetros ao sul, o Rio Jordão corre para outro mar, que, por ser tão salgado, é chamado de Mar Morto. E, do lado ocidental, vivia naquele tempo uma Comunidade do Mar Morto, cuja biblioteca de pergaminhos causou verdadeira sensação ao ser acidentalmente descoberta há alguns anos atrás. Era uma comunidade monástica de essênios que tinham se afastado do mundo iníquo. Eles se intitulavam “filhos da luz”, mas não tomavam providencia alguma para que a sua luz brilhasse. Assim, no seu gueto, seu sal era tão inútil como os depósitos de sal sobre as praias do mar ali perto. Será que Jesus estava pensando neles? W. D. Davies pensa que Jesus de “uma olhadela de lado” na direção deles. É uma conjectura atraente.
O que significa, na prática, ser o sal da terra? Em primeiro lugar, nós, o povo cristão deveríamos ser mais corajosos, mais francos na condenação do mal. A condenação é negativa, é verdade, mas a ação do sal é negativa. Às vezes, os padrões de uma comunidade afrouxam-se por falta de um explicito protesto cristão. Lutero deu grande importância a isto, enfatizando que a denúncia e a proclamação andam de mãos dadas, quando o Evangelho é verdadeiramente pregado: “o sal arde. Embora eles nos critiquem como sendo desagradáveis, sabemos que é assim que tem que ser e que Cristo ordenou que o sal fosse forte e continuasse cáustico… Se você quiser pregar o Evangelho e ajudar as pessoas, terá de ser rude e esfregar sal nas feridas, mostrando o outro lado e denunciando o que não está certo… O verdadeiro sal é a verdadeira exposição das Escrituras, que denuncia todo o mundo e não deixa nada de pé a não ser a simples fé em Cristo”.
Helmut Thielicke aborda este mesmo tema da necessária qualidade incisiva ou “ardia” do verdadeiro testemunho cristão. Ao olharmos para alguns cristãos, diz ele, “poderíamos pensar que a sua ambição é ser a cumbuca de mel do mundo. Eles adoçam e açucaram a amargura da vida com um conceito demasiadamente complacente de um Deus amoroso. Mas Jesus, evidentemente, não disse: ‘Vocês são o mel do mundo.’ Ele disse: ‘Vocês são o sal da terra’. O sal arde, e a mensagem não adulterada do juízo e da graça de Deus sempre tem sido uma coisa que machuca”.
E ao lado desta condenação do que é falso e mau, deveríamos com ousadia apoiar o que é verdadeiro, bom descente, em nossa vizinhança, em nosso colégio ou negócio, ou na esfera mais ampla da vida nacional, incluindo os meios de comunicação de massa.
O sal cristão faz efeito através de atos e também de palavras. Já vimos que Deus criou a ambos, o Estado e a família, como estruturas sociais para reprimir o mal e incentivar o bem. E os cristãos têm a responsabilidade de verificar se essas estruturas estão sendo preservadas, e também se estão operando com justiça. Com demasiada frequência, os cristãos evangélicos têm interpretado a sua responsabilidade social em termos de apenas ajudar às vítimas de uma sociedade doente, nada fazendo para mudar as estruturas que provocam os acidentes. Exatamente como os médicos não se preocupam apenas o tratamento dos pacientes, mas também com a medicina preventiva e a saúde pública, nós deveríamos nos preocupar com o que poderíamos chamar de “medicina social preventiva” e padrões mais elevados de higiene moral. Por menor que seja a nossa contribuição, não podemos optar pela dispensa da busca da criação de melhores estruturas sociais, que garantem a justiça na legislação e o cumprimento das leis, a liberdade e a dignidade do indivíduo, os direitos civis para minorias e a abolição da discriminação social e racial. Não devemos nem desprezar essas coisas nem fugir de nossa responsabilidade para com elas. Isso faz parte do propósito de Deus para o seu povo. Sempre que os cristãos são cidadãos conscientes, agem como sal numa comunidade. Como Sir Frederick Catherwood expôs em sua contribuição ao simpósio Is Revolution Change? (A Revolução Muda Alguma Coisa?): “Tentar melhorar a sociedade não é mundanismo, mas amor. Lavar as mãos diante da sociedade não é amor, mas mundanismo”.
Mas os seres humanos decaídos precisam de mais do que barricadas que os impeçam de se tornarem tão maus quanto possível. Precisam de regeneração, vida nova através do Evangelho. Por isso, nossa segunda vocação é para sermos “a luz do mundo”, pois a verdade do Evangelho é a luz, contida, é verdade, em frágeis lâmpadas de barro, mas brilhando através de nossa mortalidade com amais conspícua das claridades. Fomos chamados a propagar o Evangelho e estruturar nosso modo de viver de um jeito que seja digno do Evangelho.
Portanto, nunca deveríamos colocar nossas duas vocações (sal e luz) e nossas responsabilidades cristãs (social e evangelística) em posições antagônicas, como se tivéssemos de escolher entre as duas. Não podemos exagerar uma delas, nem desacreditar uma às expensas da outra. Uma não pode substituir a outra. O mundo precisa de ambas. Ele está em decomposição e precisa de sal; ele é trevas e precisa de luz. Nossa vocação cristã é para sermos ambas. Jesus Cristo o declarou, e isso basta.
Nos Estados Unidos da América do Norte, um dos ministérios que se diz ter sido formado sob auspícios do chamado “Jesus Movement” é chamado de “Casa da Luz e Força de Jesus Cristo”. É uma comunidade cristã em Westwood, administrada por Hal Lindsey e Bill Counts, que ministra ensino bíblico aos seus residentes. “Luz e Força” é uma ótima combinação, e ambas se encontra, em Jesus Cristo. Mas quando alguém organizará na América uma “Sociedade do Sal e Luz de Jesus Cristo”?
Na Inglaterra surgiu nestes últimos anos um movimento quase espontâneo conhecido como o “Festival da Luz”. Agradeço a Deus pelo testemunho corajoso e exuberante dos seus componentes, na sua maioria jovens. Procuram combinar um protesto contra a pornografia, e uma campanha pela lei moral de Deus na vida pública, ao lado de um testemunho claro de Jesus Cristo. Talvez pudesse transformar-se em um “Festival de Sal e Luz” mais autoconscientes.
De qualquer modo, não devemos nos envergonhar de nossa vocação de sermos sal e também luz, ou seremos culpados de separar o que Jesus uniu.
O caráter do cristão, conforme descrito nas bem-aventuranças, e a influência do cristão, conforme definida nas metáforas do sal e da luz, estão organicamente relacionados um com o outro. Nossa influencia depende de nosso caráter. Mas as bem-aventuranças apresentam um padrão extremamente elevado e exigente. Seria útil, portanto, como conclusão deste capítulo, examinar novamente os dois parágrafos e observar os incentivos que Jesus deu à justiça.
Primeiro, é assim que nós mesmos seremos abençoados. As bem-aventuranças identificam aqueles a quem Deus declara “bem-aventurados”, aqueles que lhe agradam e que se realizam. A verdadeira bem-aventurança se encontra na bondade, e em nenhum outro lugar.
Segundo, é assem que o mundo será melhor servido. Jesus oferece aos seus seguidores o imenso privilégio de serem o sal e luz do mundo, contanto que vivam pelas bem-aventuranças.
Terceiro, é assim que Deus será glorificado. Aqui, no começo do seu ministério, Jesus diz aos seus discípulos que se deixarem a sua luz brilhar de modo que as sua obras sejam vistas, seu Pai no céu será glorificado. No fim do seu ministério, no cenáculo, ele expressou a mesma verdade com palavras semelhantes: “Nisto é glorificado meu Pai, em que deis muito fruto; e assim vos tornareis meus discípulos”.
Esta, então, é a grande vantagem da vida honesta e semelhante à de Cristo, e também da contracultura cristã. Produz bênçãos para nós mesmos, salvação para os outros e, finalmente glória para Deus.
John Robert Walmsley Stott (27 de abril de 1921 – 27 de julho de 2011) – Capítulo do livro “A Mensagem do Sermão do Monte”. ABU Editora – Foi um pastor e teólogo anglicano britânico, conhecido como um dos grandes nomes mundiais evangélicos. Stott tornou-se ainda mais conhecido depois do Congresso de Lausanne, em 1974, quando se destacou na defesa do conceito de Evangelho Integral – uma abordagem cristã mais ampla, abrangendo a promoção do Reino de Deus não apenas na dimensão espiritual, mas também na transformação da sociedade a partir da ética e dos valores cristãos.
Considerado uma das mais expressivas vozes da Igreja Evangélica contemporânea, o inglês John Stott nasceu em 27 de abril de 1921. Foi um agnóstico até 1939, quando ouviu uma mensagem do reverendo Eric Nash e se converteu ao cristianismo evangélico.
Estudou Línguas Modernas na Faculdade Trinity, de Cambridge. Foi ordenado pela Igreja Anglicana em 1945, e iniciou suas atividades como sacerdote na Igreja All Souls, em Langham Place. Lá continuou até se tornar pastor emérito, em 1975. Foi capelão da coroa britânica de 1959 a 1991.
Em 1982, fundou o “London Institute for Contemporary Christianity”, do qual hoje é presidente honorário. Escreveu cerca de 40 livros, entre os quais Ouça o Espírito, ouça o mundo (ABU), A cruz de Cristo (Vida) e Por que sou cristão (Ultimato).