Deus, por meio da Cruz de Cristo, fez plena provisão para a nossa redenção, mas não Se deteve aí. Nessa Cruz, Ele também assegurou, além de toda a possibilidade de fracasso, aquele plano eterno de que Paulo fala como sendo, desde todos os tempos, “oculto em Deus, que criou todas as coisas”. Proclamou esse plano “para que, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus se torne conhecida agora dos principados e potestades nos lugares celestiais, segundo o eterno propósito que estabeleceu em Cristo Jesus nosso Senhor” (Ef 3.9-11).
Já dissemos que a obra da Cruz tem duas consequências que dizem respeito diretamente à realização daquele propósito em nós. Por um lado, resultou na Sua vida ser liberada a fim de ser concedida a nós, para que possa manifestar-se e expressar-se em nós por meio do Espírito Santo, que em nós habita. Por outro lado, possibilitou aquilo que chamamos “tomar a Cruz”, isto é, a nossa cooperação na operação interior e diária da Sua morte, por meio da qual se cria em nós a possibilidade daquela nova vida se manifestar, fazendo com que o “homem natural” volte progressivamente ao seu devido lugar de sujeição ao Espírito Santo. Evidentemente, estes são os aspectos positivo e negativo da mesma coisa.De modo igualmente claro, estamos tocando no âmago do assunto de se progredir na vida vivida para Deus. Nas nossas considerações feitas até aqui, no tocante à vida cristã, ressaltamos principalmente a crise de acesso a ela. Agora a nossa atenção se dedica mais definitivamente ao andar do discípulo, tendo especialmente em vista a sua preparação como servo de Deus. Foi a respeito dele que o Senhor Jesus Cristo disse: “Qualquer que não tomar a sua cruz e vier após mim, não pode ser meu discípulo” (Lc 14.27).Assim, chegamos à altura de considerar o homem natural e o significado de “tomar a Cruz”. Para compreender isto devemos voltar de novo ao Gênesis e considerar o que Deus queria originalmente que o homem tivesse, e como o Seu propósito foi frustrado. Com esta compreensão, teremos condições de descobrir os princípios que nos levarão de volta à harmonia com este propósito original.
A Verdadeira Natureza da Queda
Por mínima que seja a luz que possuímos sobre a natureza do plano de Deus, sempre a palavra “homem” nos virá à mente. Diremos com o salmista: “O que é o homem, para que Te lembres dele? ” A Bíblia mostra claramente que o que Deus deseja acima de todas as coisas é um homem – um homem que seja segundo o Seu próprio coração.
Assim, Deus criou um homem. Em Gênesis 2.7, lemos que Adão foi criado uma alma vivente, com um espírito interior para comunicar-se com Deus, e com um corpo exterior para ter contato com o mundo material. (Passagens do Novo Testamento tais como I Ts 5.23 e Hb 4.12 confirmam este caráter tríplice do ser humano). Por meio do seu espírito, Adão estava em contato com o mundo espiritual de Deus; por meio do corpo, ele estava em contato com o mundo físico das coisas materiais. Reunia em si mesmo estes dois aspectos do ato criador de Deus, tornando-se uma personalidade, uma entidade viva no mundo, movendo-se por si mesmo e tendo poderes de livre escolha. Visto assim, como um todo, achou-se constituído um ser com consciência e expressão próprias, “uma alma vivente”.
Já vimos que Adão foi criado perfeito – queremos dizer com isto que não tinha imperfeições porque foi criado por Deus – mas ainda não tinha sido aperfeiçoado. Precisava de um toque final, porque Deus ainda não fizera tudo quanto tencionava fazer em Adão – pretendia fazer algo mais, mas agora isto estava em suspenso. Deus estava operando, ao criar o homem, para cumprir um propósito que ia além do próprio homem, porque tinha em vista usufruir de todos os Seus direitos no Universo, pela instrumentalidade do homem. Como, afinal, podia o homem ser instrumento de Deus nesta obra? Somente por meio de uma cooperação que resulta da viva comunhão com Deus. Deus queria ter na terra uma raça de homens que não somente participasse de um só sangue, como também da própria vida de Deus, raça essa que não somente derrotaria Satanás como também levaria a efeito tudo quanto Deus propusera no Seu coração.
Além disso, vemos que Adão foi criado com um espírito que lhe permitia ter comunhão com Deus, mas, como homem, ainda não estava, por assim dizer, com sua orientação final; tinha poderes de escolha e, se o desejasse, podia tomar o caminho oposto. O alvo de Deus para o homem era a “filiação”, ou, em outras palavras, a expressão da Sua vida nos seres humanos. A Vida Divina estava representada no jardim pela árvore da vida, que produzia fruto passível de ser recebido e ingerido. Se Adão voluntariamente seguisse aquele caminho, escolhendo a dependência em Deus, e comesse da árvore da vida (representando a própria vida de Deus), receberia então aquela vida em união com Deus, que é a referida “filiação”. Mas, ao invés disso, Adão se voltasse para a árvore do conhecimento do bem e do mal, ficaria, em resultado disso, “livre” para se desenvolver segundo os seus próprios recursos e desejos, separadamente de Deus. E, porque esta última escolha envolvia cumplicidade com Satanás, Adão perderia desta forma a possibilidade de atingir o alvo que Deus lhe designara.
A Questão Básica: A Alma Humana
Ora, sabemos a direção que Adão escolheu. Situado entre as duas árvores, submeteu-se a Satanás e tomou do fruto da árvore do conhecimento. Isto determinou o sentido do seu desenvolvimento. Desde então, podia comandar o conhecimento; ele “conhecia”. Mas – e é esta a lição da questão – o fruto da árvore do conhecimento tornou o homem super-desenvolvido quanto à sua alma. A emoção foi tocada, porque o fruto era agradável aos olhos, fazendo-o “desejar”; a mente, com o seu poder de raciocinar foi desenvolvida, porque ele foi “feito sábio”, e a vontade foi fortalecida, de modo que, no futuro, ele poderia sempre decidir o caminho que quisesse seguir. Todo o fruto serviu à expansão e ao pleno desenvolvimento da alma, de modo que o homem era não somente uma alma vivente, mas também, doravante, o homem viveria pela alma. Não se trata meramente de o homem ter alma, senão que a alma, daquele dia em diante, com os seus poderes independentes de livre escolha, toma o lugar do espírito como o poder animador do homem.
Temos que distinguir entre duas coisas, quanto a isso, porque a diferença é da maior importância. Deus não Se opõe a termos uma alma como a que deu a Adão, pois é esta a Sua intenção; o que Ele Se propôs a fazer foi inverter alguma coisa. Há algo errado hoje no homem, que não é o fato de ter uma alma, e, sim, de viver pela alma. Foi esta situação que Satanás criou pela Queda. Ardilosamente levou o homem a seguir uma direção em que podia desenvolver a Sua alma de modo a derivar dela a sua própria vida.Devemos, contudo, ser cuidadosos; o remédio não significa eliminar inteiramente a nossa alma. Não podemos fazê-lo. Quando a Cruz opera hoje realmente em nós, não nos tornamos inertes, insensatos, sem caráter. Não, ainda possuímos uma alma e, sempre que recebemos alguma coisa da parte de Deus, a alma será o instrumento, a faculdade em verdadeira sujeição a Ele, através do que a recebemos. A questão, porém, é: mantemo-nos dentro dos limites indicados por Deus? – dentro dos limites fixados por Ele no princípio, no Jardim – no que diz respeito à alma, ou estamos saindo fora desses limites?Deus agora está realizando a obra da poda, como Viticultor. Há nas nossas almas um desenvolvimento sem domínio e sem orientação, um crescimento inoportuno, que tem que ser verificado e submetido a tratamento.
Deus tem que cortar isso. De modo que há agora perante nós duas coisas, em relação às quais os nossos olhos devem ser abertos. Por um lado, Deus quer nos levar à posição de vivermos pela vida do Seu Filho. Por outro lado, Ele opera diretamente nos nossos corações, para desfazer aquela outra fonte de recursos naturais que é o resultado do fruto do conhecimento. Aprendemos cada dia estas duas lições: uma crescente manifestação da vida d’Ele, e uma verificação e uma entrega à morte daquela outra vida, a alma. Estes dois processos sempre estão em andamento, porque Deus procura em nós a vida plenamente desenvolvida do Seu Filho, para que Ele seja manifestado em nós, e, com este fim em vista, nos faz retroceder, quanto à alma, ao ponto de partida de Adão. Pelo que Paulo diz: “Porque nós, que vivemos, estamos sempre entregues à morte por causa de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal” (2 Cor 4.11).
O que significa isto? Significa que não empreenderei nenhuma ação sem depender confiadamente de Deus. Não encontrei suficiência em mim mesmo. Não darei qualquer passo somente porque tenho o poder de fazê-lo. Mesmo que tenha em mim aquele poder herdado, não o usarei; não depositarei confiança em mim mesmo. Ao tomar o fruto, Adão ficou possuído de um poder inerente de agir, foi, porém, um poder que o colocava ao alcance de Satanás. Perdemos aquele poder de agir quando chegamos a conhecer o Senhor. O Senhor corta-o, e então percebemos que já não podemos agir segundo a nossa iniciativa própria. Temos que viver pela vida de Outro; temos que derivar tudo d’Ele.
Penso que todos nos conhecemos a nós mesmos, até certo ponto, mas muitas vezes não trememos verdadeiramente com receio de nós mesmos. Podemos dizer, como fórmula de cortesia para com Deus: “Se o Senhor não quiser, não posso fazê-lo”, mas, na realidade, o nosso pensamento subconsciente é que, realmente, podemos fazê-lo muito bem por nós mesmos, mesmo se Deus não nos pedir para fazê-lo nem nos der o poder necessário para realizá-lo. Muitíssimas vezes temos sido levados a agir, a pensar, a decidir, a ter poder, separadamente d’Ele. Muitos de nós, cristãos, hoje, somos homens de alma superdesenvolvida. Ficamos demasiadamente grandes em nós mesmos. Adquirimos “grandes almas”. Quando estamos nesta condição, a vida do Filho de Deus em nós fica restrita e quase posta fora de ação.
A Energia Natural na Obra de Deus
A energia da alma está presente em todos nós. Todos os que têm sido ensinados pelo Senhor repudiam aquele princípio como princípio de vida. Recusam viver orientados por ele; não o deixarão reinar nem lhe permitirão tornar-se o poder impulsionador da obra de Deus. Aqueles, porém, que não têm sido ensinados por Deus, dependem dele; utilizam-no, consideram isto o poder.
Muitos de nós temos pensado da seguinte maneira: eis um homem dotado de uma natureza verdadeiramente encantadora, possuidor de um bom cérebro, esplêndidos poderes orientadores e um julgamento sábio. Dizemos, nos nossos corações: “Se este homem fosse cristão, de que valor seria para a Igreja! Se ele pertencesse ao Senhor, quanto representaria para a Sua causa!”.
Mas, pensemos por um momento. De onde vem a boa natureza daquele homem? De onde provêm aqueles esplêndidos poderes orientadores e aquele bom juízo? Não vêm de novo nascimento, porque ele ainda não nasceu de novo. Sabemos que todos já nascemos na carne, e que necessitamos de um novo nascimento. O Senhor Jesus disse algo a este respeito em João 3.6: “O que é nascido da carne, é carne”. Tudo o que não vem do novo nascimento, mas do meu nascimento natural, é carne, e apenas trará glória para o homem e não para Deus. Esta declaração não é muito agradável, mas é a verdade.
Mencionamos o poder da alma, a energia natural. O que é esta energia natural? É simplesmente o que eu posso fazer, o que eu sou em mim mesmo, o que eu tenho herdado em matéria de dons e recursos naturais. Nenhum de nós está isento do poder da alma e a nossa primeira necessidade é reconhecê-lo por aquilo que é.
Tomemos a mente humana como exemplo. Posso ter, por natureza, uma mente viva. Já a tinha antes do meu novo nascimento, como algo derivado do meu nascimento natural. Mas é aqui que reside o problema. Converto-me, nasço de novo, uma obra profunda é realizada no meu espírito, uma união essencial foi operada com o Pai dos espíritos. Daí em diante, há em mim duas coisas: tenho agora união com Deus, que foi estabelecida no meu espírito, mas, ao mesmo tempo, continuo a levar comigo alguma coisa que derivei do meu nascimento natural. Ora, o que vou fazer a respeito disso?
A tendência natural é esta: inicialmente, eu costumava usar a minha mente para esquadrinhar a história, os negócios, a química, as questões do mundo, a literatura, ou a poesia. Usava a minha mente viva para tirar o melhor proveito destes estudos. Mas agora, os meus desejos mudaram de maneira que, daqui em diante, emprego a mesma mente nas coisas de Deus. Portanto, mudei o assunto que ocupa o meu interesse, mas não mudei o meu método de agir. Aí está o problema total. Os meus interesses foram mudados de uma forma absoluta (e graças a Deus por isso!) mas agora eu emprego o mesmo poder para estudar Coríntios e Efésios que usava antes para me dedicar à história e à geografia. Mas esse poder não é de Deus, e Deus não permitirá isso. O problema, para muitos de nós, é que mudamos o canal para o qual as nossas energias se dirigem, mas não mudamos a fonte dessas energias.
Verificaremos que há muitas dessas coisas que transferimos para o serviço de Deus. Consideremos a questão da eloquência. Há alguns homens que nascem oradores; podem apresentar um caso de forma realmente convincente. Depois, convertem-se e, sem inquirirmos qual a posição em que de fato se acham em relação às coisas espirituais, colocamo-los no púlpito, constituindo-os pregadores. Encorajamo-los a usar os seus poderes naturais na pregação e, de novo, o que se verifica? Urna mudança de assunto, o poder, porém, é o mesmo. Esquecemo-nos de que, na questão dos recursos que possuímos para tratar das coisas de Deus, a questão não é de valor comparativo mas de origem – de onde dimanam os recursos que usamos. O problema não está tanto no que fazemos, mas nos poderes que empregamos para fazê-lo. Pensamos muito pouco a respeito da fonte da nossa energia, e pensamos demais no fim para que ela se dirige, esquecendo-nos de que, com Deus, os fins nunca justificam os meios.
O seguinte caso hipotético nos ajudará a demonstrar a verdade do nosso argumento. O Sr. A é um orador muito bom: pode falar fluentemente e com a maior convicção sobre qualquer assunto, mas, em questões práticas, é um homem de desempenho fraco. O Sr. B., pelo contrário, é um orador pobre ;não consegue se expressar com clareza; por outro lado, é um esplêndido homem de ação, muito competente em todas as questões de negócios. Ambos estes homens se convertem e ambos se tornam cristãos fervorosos. Suponhamos agora que chamo os dois e lhes peço que falem numa convenção, e que ambos aceitam.
O que acontecerá agora? Pedi a mesma coisa a ambos, mas, quem pensa você que vai orar mais intensamente? O Sr. B., certamente. Por quê? Porque ele não é bom orador. No que se refere à eloquência, ele não tem recursos próprios de que dependa. Oraiá: “Senhor, se não me deres poder para fazer isto, não poderei fazê-lo”. Evidentemente, o Sr. A. também orará, mas talvez não o faça da mesma forma que o Sr. B., porque ele tem alguns recursos naturais em que pode confiar.
Agora, suponhamos que, em vez de lhes pedir para falar, peço aos dois que tomem conta das questões de ordem prática e material da convenção. O que acontecerá? A posição será exatamente o reverso. Será agora o Sr. A, que se dedicará mais intensamente à oração, porque ele sabe perfeitamente bem que não tem capacidade organizadora. O Sr. B., evidentemente, também orará, mas talvez sem a mesma qualidade de urgência porque, embora reconheça a sua necessidade do Senhor, ele não se acha tão consciente da sua necessidade em questões materiais como o Sr. A.
Você percebe a diferença entre os dons naturais e espirituais? Qualquer coisa que possamos fazer sem oração e sem uma dependência extrema de Deus, deverá certamente ser suspeitada como provindo daquela fonte de vida natural. Devemos compreender isto claramente. Evidentemente, isto não quer dizer que somente se deve indicar para um trabalho especial aqueles a quem falta o dom natural para fazê-lo. A questão é que, quer dotados ou não de dons naturais, devem conhecer o toque da Cruz, numa experiência de morte, sobre tudo o que é natural, e devem experimentar completa dependência do Deus da ressurreição. Às vezes estamos prontos a sentir inveja do dom muito notável do nosso próximo, sem reconhecer que se nós possuíssemos este dom, independentemente da operação da Cruz já descrita, o próprio dom poderia ser um empecilho àquilo que Deus quer manifestar em nós.
Pouco depois da minha conversão, saí pregando nas aldeias. Recebera uma boa instrução e estava bem versado nas Escrituras, de modo que me considerava absolutamente capaz de instruir o povo nas aldeias, entre o qual havia um bom número de mulheres analfabetas. Mas, depois de algumas visitas, descobri que, apesar da sua ignorância, aquelas mulheres tinham um conhecimento íntimo do Senhor. Eu conhecia o Livro que elas liam com muita dificuldade; elas conheciam Aquele de Quem o livro fala. Eu tinha muito da carne; elas tinham muito do Espírito. Há tantos educadores cristãos hoje que ensinam outras pessoas como eu então o fazia: dependendo, em grande parte, do poder do seu equipamento carnal.
Não quero dizer que não podemos fazer uma série de coisas, porque na verdade podemos. Podemos fazer reuniões e construir casas de oração, podemos ir aos confins da Terra e fundar missões, e pode parecer que damos fruto; mas lembremo-nos, a Palavra do Senhor diz: “Toda planta que o meu Pai celestial não plantou, será arrancada” (Mt 15.13). Deus é o único originador legítimo do Universo (Gn 1.1). Qualquer coisa elaborada por nós tem a sua origem na carne e nunca alcançará a esfera do Espírito, por mais fervorosamente que busquemos a bênção de Deus sobre ela. Pode durar anos e então podemos pensar que, fazendo ajustamentos aqui e ali, talvez possamos colocar essa iniciativa num plano melhor, mas não se pode fazer tal coisa.
A origem determina o destino, e o que originalmente foi “da carne”, nunca se tornará espiritual, por mais que se procure aperfeiçoá-lo. Aquilo que é nascido da carne, é carne, e nunca será doutra forma. Qualquer coisa que contribui para a nossa “autossuficiência” é “nada” na estimativa de Deus, e temos que aceitar essa estimativa e registrar que o seu valor é, realmente, nada. “A carne para nada aproveita”. É apenas o que vem de cima que permanecerá.
Este não é um assunto que se aprende através da sua simples apresentação: só Deus pode nos fazer entender do que se trata, quando indica algo em nossas vidas, dizendo: “Isto é meramente natural, e sua origem é a velha criação, e não pode permanecer”. Antes de Ele assim fazer, talvez concordemos com tal doutrina, sem, porém, a sentir em nossa vida. Podemos aprovar o ensino, e até mesmo ter prazer nele, sem, porém, chegar a realmente sentir repugnância por aquilo que somos em nós mesmos.
Chegará, porém, o dia em que Deus abrirá os nossos olhos. Encarando determinada circunstância, teremos que dizer, como resultado da revelação: “Isto é impuro, impuro mesmo; Senhor, agora é que percebo isto”. A palavra “pureza” é uma palavra abençoada. Associo-a sempre com o Espírito. Pureza significa alguma coisa inteiramente do Espírito. A impureza significa mistura. Quando Deus abre os nossos olhos e nos capacita a perceber que a vida natural é algo que Ele nunca pode usar na Sua obra, então verificamos que já não consideramos com prazer esta doutrina. Antes, nos aborrecemos a nós mesmos, pela impureza que há em nós; mas, quando se atinge esta posição, Deus começa o Seu trabalho de libertação”.
A Luz de Deus e o Conhecimento
Evidentemente, se alguém não se propõe a servir ao Senhor de todo o coração, não sente necessidade de luz. É só quando alguém foi chamado por Deus e procura avançar com Ele que sente grande necessidade da luz.
Precisamos urgentemente de Luz, a fim de conhecermos a mente do Senhor, para distinguirmos entre as coisas do Espírito e as da alma; para saber o que é divino e o que é meramente do homem; para discernir o que é verdadeiramente celestial e o que é apenas terreno; para compreender a diferença entre o que é espiritual e o que é carnal; para saber se realmente estamos sendo guiados por Deus, ou se andamos pelos nossos próprios sentimentos, sentidos ou imaginações. Achamos que a luz é a coisa mais necessária na vida cristã, quando atingimos a posição em que desejamos seguir plenamente a Deus.Nas minhas conversas com jovens irmãos e irmãs, há uma pergunta que surge repetidamente: “Como posso saber que estou andando no Espírito? “Como vou distinguir quais os impulsos, dentro de mim, que são do Espírito Santo e quais os que provêm de mim mesmo? ” Parece que todos são unânimes nisso, embora alguns vão mais longe. Procuram olhar para dentro de si, a fim de diferenciar, discriminar, analisar e, ao fazê-lo, colocam-se a si mesmos numa escravidão mais profunda. Ora, esta é uma situação que realmente é perigosa na vida cristã, porque o conhecimento interior nunca se alcançará por meio dessa vereda árida do exame próprio.
A Palavra de Deus não nos manda examinar a nossa condição interior; esse caminho conduz apenas à incerteza, à vacilação e ao desespero. É certo que devemos ter o conhecimento de nós mesmos. Temos que conhecer o que se passa em nosso íntimo. Não queremos ter a alegria dos que não sabem a verdadeira situação perigosa, errando sem reconhecer o erro, exercendo a nossa vontade própria e ainda pensando ser esta a vontade de Deus. Este conhecimento de nós mesmos, no entanto, não resulta de olharmos o nosso próprio íntimo; não vem como resultado da nossa análise dos nossos sentimentos e motivos e de tudo quanto se processa no nosso íntimo; não é assim que se descobre se estamos andando na carne ou no Espírito.
Há várias passagens nos Salmos que iluminam este assunto. A primeira é o Salmo 36.9: “Na tua luz, veremos a luz”. Há duas luzes aqui. Há a “Tua luz”, e, depois, quando entramos nesta luz, “veremos a luz”.Ora, estas duas luzes são diferentes. Podíamos dizer que a primeira é objetiva e a segunda subjetiva. A primeira luz é a luz que pertence a Deus, e que Ele derrama sobre nós; a segunda é o conhecimento comunicado por essa luz. “Na tua luz veremos a luz”: conheceremos alguma coisa, seremos esclarecidos a respeito de algo, perceberemos. Nunca chegaremos à posição de vermos claramente, por meio do exame auto introspectivo ; só veremos quando há luz proveniente de Deus.
Penso que isto é muito simples. Se quisermos verificar se o nosso rosto está limpo, o que devemos fazer? Procuramos apalpá-lo, cuidadosamente, com as mãos? Evidentemente que não. Procuramos um espelho e trazemo-lo para a luz. À luz, tudo se torna claro. Nada vemos por meio das sensações ou da análise. Somente é possível nos ver mediante a manifestação da luz de Deus; uma vez que brilha a luz de Deus, já não é mais necessário perguntar se determinada coisa está certa ou errada, porque já o sabemos.Relembremo-nos do que diz o escritor de Salmo 139. 23: “Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração”. Certamente não sou eu que me sondo a mim mesmo – Quem me sonda é Deus; é este o meio de iluminação. É Deus que Se manifesta e me sonda; não me cabe a mim sondar-me. Evidentemente, isso nunca significará que vou prosseguir cega e descuidadamente a respeito da minha verdadeira condição. Não é essa a ideia. A questão é que, por muito que o meu autoexame possa revelar, a meu respeito, que eu necessito de correção, ele nunca poderá ir muito além da superfície. O verdadeiro conhecimento de mim mesmo não resulta de um autoexame, mas do exame que Deus faz de mim.
Perguntar-se-á o que significa, na prática, entrar na luz? Como é que isto opera? Como é que vemos luz na Sua luz? Uma vez mais o salmista vem ajudar-nos; “A revelação das tuas palavras esclarece (dá luz); dá entendimento aos simples” (Salmo 119.30). Nas coisas espirituais, todos somos “simples”. Dependemos de Deus para recebermos d’Ele, de forma muito especial, entendimento a respeito da nossa verdadeira natureza. É neste sentido que opera a Palavra de Deus. No Novo Testamento, a passagem que o declara, de forma mais acessível, se encontra na Epístola aos Hebreus: “Porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração. E não há criatura que não seja manifesta na sua presença; pelo contrário, todas as cousas estão descobertas e patentes aos olhos daquele a quem temos que prestar contas” (Hb 4. 12,13). Sim, é a Palavra de Deus, a penetrante Escritura da Verdade, que resolve as nossas perguntas. É ela que discerne os nossos motivos e revela se a sua verdadeira origem é alma ou o espírito.
Com isto, podemos partir para o aspecto prático das coisas. Muitos de nós, estou certo, vivemos honestamente diante de Deus. Temos feito progresso e não conhecemos qualquer coisa, em nós, que possa ser considerada muito errada. Então, um dia, à medida que prosseguimos, deparamos com o cumprimento daquela palavra: “A revelação das tuas palavras esclarece”. Deus usou algum dos Seus servos para nos confrontar com a Sua Palavra viva, e essa Palavra entrou em nós. Ou, talvez, nós mesmos temos esperado em Deus e, quer por meio das Escrituras memorizadas, quer pela leitura da Bíblia, a Sua Palavra vem a nós em poder. É então que vemos algo que nunca viramos antes. Ficamos convictos. Sabemos onde estamos errados e olhamos para cima e confessamos: “Senhor, agora entendo. Há impurezas neste assunto. Há uma mistura. Como eu estava cego! E pensar que durante tantos anos estive errado, sem disso ter consciência!” A luz se manifesta, e nós vemos a luz. A luz de Deus nos leva a ver a luz a respeito de nós mesmos e, é princípio permanente que todo o conhecimento de nós mesmos nos sobrevém desta forma.Talvez nem sempre sejam as Escrituras que operam isto. Alguns de nós temos conhecido santos que conheciam de perto o Senhor por termos orado ou conversado com eles, e, nesta intimidade, no meio da luz de Deus que deles se irradiava, chegamos a perceber algo que nunca tínhamos visto antes. Encontrei-me com uma destas pessoas, que agora está com o Senhor, e sempre penso nela como sendo uma cristã fervorosa. Mal entrava no quarto dela, ficava imediatamente cônscio da presença de Deus. Naqueles dias, era eu muito jovem, convertera-me havia dois anos, e tinha uma série de planos, de belos pensamentos, de esquemas, de projetos para o Senhor sancionar, inúmeras coisas que pensava que seria maravilhoso se chegassem a frutificar, e dirigi-me a ela para procurar persuadi-la de que deveria fazer isto ou aquilo.Antes que pudesse abrir a boca, ela dizia apenas algumas palavras de modo absolutamente normal. A luz raiava! Sentia-me simplesmente envergonhado. O meu “fazer” era tão natural, tão cheio do homem! Alguma coisa acontecia. Era levado a uma posição em que podia dizer: “Senhor, a minha mente apenas se prende a atividades humanas. Mas eis aqui alguém que não está, de forma alguma, envolvida nelas”. Ela apenas tinha um motivo, um desejo, e esse era Deus. Escrita na capa da sua Bíblia estavam estas palavras: “Senhor, não quero nada para mim”. Sim, ela vivia apenas para Deus, e onde quer que encontremos um caso semelhante, verificaremos que essa pessoa está banhada em luz, e que essa luz ilumina os outros. Isto, realmente, é testemunhar.
A luz tem uma lei: brilha onde quer que seja admitida. Esta é a única condição. Nós temos a possibilidade de excluí-la de nós mesmos; ela nada mais teme senão a exclusão da nossa parte. Se nos mantivermos abertos para Deus, Ele nos revelará o nosso íntimo. O problema surge quando mantemos áreas fechadas e lugares cerrados e trancados em nossos corações, quando orgulhosamente pensamos que temos toda a razão. A nossa derrota não consiste em estarmos errados, mas em não sabermos que estamos errados. Estar errado pode ser questão de força natural; a ignorância de que se está errado é questão de luz. Podemos ver a força natural em outras pessoas, mas elas não podem vê-la em si mesmas. Como necessitamos de sermos sinceros e humildes, e de nos abrirmos diante de Deus! Só aqueles que se abrem poderão ver. Deus é luz, e não podemos viver na Sua luz e ainda ficar sem entendimento. Digamos, outra vez, com o Salmista: “Envia a tua luz e a tua verdade, para que me guiem” (Salmo 43.3).
Damos graças a Deus porque hoje a atenção dos crentes é chamada para a realidade do pecado mais do que antes. Em muitos lugares, os seus olhos tem-se aberto para ver a vitória sobre os pecados, como experiência separada de grande importância na vida cristã, e, em consequência disso, muitos estão andando mais perto do Senhor, procurando libertação e vitória sobre os mesmos. Graças a Deus por qualquer movimento para Ele, qualquer movimento de regresso a uma verdadeira santidade perante Deus! Isto, porém, não é suficiente. Há ainda uma coisa em que se deve tocar: a própria vida do homem, e não meramente os seus pecados. A questão da personalidade do homem, do poder da sua alma, é o coração do problema. Considerar que os pecados constituam a totalidade do problema, equivale a ficar ainda à superfície. A santidade, se apenas levarmos em conta os pecados, é, ainda, uma experiência exterior e superficial. Nesse caso, ainda não atingimos a raiz do problema.
Adão deixou o pecado entrar no mundo ao escolher o desenvolvimento do seu próprio-eu, da sua alma, separadamente de Deus. Quando, pois, Deus alcançar uma raça de homens que será para a Sua própria glória, e que será Seu instrumento para realizar os Seus propósitos no Universo, será uma raça cuja vida – sim, até a própria respiração – estará na total dependência d’Ele. Ele será, para esta raça, “a árvore da vida”.
A necessidade que sinto sempre mais, em mim mesmo e entre todos os filhos de Deus, é a revelação real de nós mesmos, que devemos pedir da parte de Deus. Já disse que não se trata de sempre esquadrinharmos o nosso próprio íntimo, perguntando se isto ou aquilo vem da alma ou do Espírito. Esta atitude não terá qualquer resultado prático, pois é escuridão. Não, a Escritura nos mostra como os santos chegaram ao conhecimento de si mesmos. Foi sempre pela luz de Deus, luz que é o próprio Deus. Isaías, Ezequiel, Daniel, Pedro, Paulo, João: todos chegaram a possuir verdadeiro conhecimento de si mesmos porque a luz do Senhor brilhou sobre eles, trazendo-lhes revelação e convicção (Is 6.5; Ez 1. 28; Dn 10.8; Lc 22.61,62; At 9.3-5; Ap 1.17).
Nunca conheceremos a hediondez do pecado e as nossa própria hediondez sem que haja uma manifestação da luz de Deus sobre nós. Não falo de uma sensação e, sim, de uma revelação que o Senhor faz ao nosso íntimo, através da Sua Palavra. Isto fará por nós o que a doutrina, por si só, nunca poderia fazer.
Cristo é a nossa luz, a Palavra viva que nos traz revelação enquanto lemos as Escrituras: “A vida era a luz dos homens” (João 1.4). Tal iluminação talvez nos sobrevenha apenas gradualmente, mas será cada vez mais clara e nos sondará mais e mais perfeitamente até que nos vejamos na luz de Deus que dissipará toda a nossa confiança própria. A luz é a coisa mais pura do mundo. Purifica. Esteriliza. Matará tudo o que não deve estar presente, transformando em realidade a doutrina da “divisão de juntas e medulas”. Conheceremos o temor e tremor na medida em que reconhecermos a corrupção da natureza humana, a hediondez da nossa própria personalidade, e a ameaça real que representa para a obra de Deus a energia e vida insubordinada da alma. Como nunca antes, vemos agora quão necessária nos é aquela ação drástica de Deus, se realmente quisermos ser usados, e sabemos que, sem Ele, somos inúteis como servos de Deus. Aqui também, a Cruz, no seu sentido mais amplo, nos auxiliará, e passaremos agora a examinar o aspecto da sua obra que diz respeito ao problema da alma humana. Somente a compreensão completa da Cruz pode nos levar àquela posição de dependência que o próprio Senhor Jesus voluntariamente assumiu, quando disse: “Eu nada posso fazer por mim mesmo; na forma por que ouço, julgo. O meu juízo é justo porque não procuro a minha própria vontade, e, sim, a daquele que me enviou” (João 5.30).
Watchman Nee – Extraído do livro “A Verdadeira Vida Cristã”, cap. 12.