A Ceia do Senhor

Durante o Seu ministério aqui na terra, nosso Senhor instituiu duas, e apenas duas, ordenanças para Sua igreja obedecer durante a época em que vivemos: O baptismo e a Ceia do Senhor. As tradições humanas e as autoridades eclesiásticas aumentaram este número, porém sem contar com qualquer autorização das Escrituras para isso.

Ambas as ordenanças estão intimamente associadas à morte de Cristo e à Sua ressurreição. O baptismo simboliza nossa associação com Cristo em Sua morte, sepultamento e ressurreição. A Ceia do Senhor focaliza Sua morte e ressurreição por nós. Mas existem dois contrastes marcantes entre estas ordenanças. O baptismo é um ato de obediência a ser realizado uma só vez, já que nossa identificação com Cristo não pode ser alterada. Entretanto, a influência e a manifestação prática de nossa morte e ressurreição com Ele deveria ser vista durante toda a nossa vida cristã.

A Ceia do Senhor, em contraste, deve ser observada repetidamente (semanalmente, se seguirmos o costume da igreja primitiva), já que se trata de uma festa de recordação. O baptismo é um ato individual por parte de cada crente, enquanto que a Ceia do Senhor é um ato corporativo da assembleia local. O baptismo não é um distintivo das assembleias, já que existem outros grupos que praticam o baptismo do crente por imersão.

Quanto à Ceia do Senhor, embora tenha sido mantida pela maior parte das denominações de uma forma ou de outra, existem, no mínimo, quatro características marcantes da festa de recordação conforme a prática das assembleias que justificam que ela seja incluída entre os distintivos das assembleias.

1. SIMPLICIDADE

Além do caminho da salvação, poucas áreas da verdade divina sofreram mais que a Ceia do Senhor devido à propensidade da mente religiosa de revestir simples práticas religiosas com cerimónias sumptuosas e ritualismo elaborado. Através dos séculos, esta preciosa festa de recordação tem sido incrustada com camadas sucessivas de distorções tradicionalistas, particularmente nas igrejas litúrgicas, mas também, embora em grau mais reduzido, nos círculos evangélicos.

A pior destas distorções, é, obviamente, a missa conforme ensinada e praticada pela igreja católica romana. O dogma da transubstanciação ensina que o padre oficiante realmente transforma o pão (ou hóstia) no corpo verdadeiro de Cristo, e o vinho no sangue verdadeiro do Salvador. A hóstia é, então, “elevada”, para ser adorada. como Cristo pelos adoradores presentes à cerimónia. Isto é uma terrível blasfémia, pois, se aceito literalmente, significa que “de novo estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus” (Hb 6:6). Ainda assim, Roma tem a ousadia de pronunciar um anátema sobre todos aqueles que não aceitam esta horrenda mentira.

Não muito atrás no erro está, infelizmente, a doutrina luterana da consubstanciação. Por sua posição magnífica pela verdade da justificação pela fé somente, Martinho Lutero colocou toda a igreja cristã sob uma dívida de profunda gratidão para com ele. Demonstrou uma louvável coragem ao deixar a corrupta igreja católica romana, na qual havia sido um padre. Mas, trouxe consigo uma bagagem desafortunada de tradições eclesiásticas, sendo a pior delas a sua doutrina da consubstanciação.

Como já vimos, a transubstanciação reivindica que a substância do pão e do vinho realmente transforma-se na substância real do corpo e sangue de Cristo. Substituindo o “tran” pelo “con”, Lutero ensinou que o corpo e sangue de Cristo coexistem com o pão e o vinho.

Mas mesmo nos meios onde estes dois erros crassos não são aceitos, a introdução de ricas vestimentas para o clero, um altar, velas, sinos, incensos, cruzes, e um ritual elaborado transformaram a simples festa de recordação numa cerimónia nula de qualquer significado.

As assembleias rejeitam tudo isso. Sobre uma simples mesa, com ou sem toalha, é colocado um pão e um copo (ou copos) com vinho. Ao seu redor, reivindicando a promessa da presença do Senhor (Mt 18:20), a família sacerdotal de crentes reúne-se para louvar, adorar, e partir o pão em amorável recordação de seu Senhor crucificado, ressurreto e que, breve, voltará novamente. Entre os hinos espirituais então cantados talvez esteja o deleitoso hino de Horatius Bonar, com as palavras:

Somente pão e somente vinho,

No entanto, à fé solenes emblemas

Do celeste e divinal,

Damos-te graças, Ó Senhor.

A doce simplicidade desta “festa de amor” a tem feito querida a milhares de pessoas do povo de Deus por todo o mundo. A ênfase dada à simplicidade em conexão com a Ceia do Senhor tem sido transportada da sua prática para a maneira pela qual é, costumariamente, designada. Nas assembleias, certamente, não é denominada missa; nem tão pouco Eucaristia; nem Santa Comunhão; nem Sacramento. Invariavelmente, será designada como a Ceia do Senhor, o Partir do pão, a Festa de recordação. E isso tem alguma consequência? Possivelmente, aos olhos de muitos, não. Mas é um esforço adicional de preservar aquela ausência de embelezamento artificial que caracteriza o registo bíblico. E isto nos traz a outra característica única na prática das assembleias nesta Festa.

2. O PONTO DE VISTA BÍBLICO

Como em todos os outros assuntos relativos à ordem na igreja, as assembleias buscam direção sobre a prática da Ceia do Senhor somente na Bíblia aberta, e, particularmente, do Novo Testamento, já que a igreja começou no Dia de Pentecostes (At 2). De maneira contrastante, vemos que o mundo religioso busca em outras fontes as instruções e a autoridade para suas práticas.

2.1. Para a transubstanciação e a missa, a igreja católica romana recorre aos escritos dos pais da igreja (assim chamados), e particularmente, à declaração do Concílio de Trento (1563 d.C.). Lá, no capítulo IV, lemos: “Como aquele Cristo, nosso Redentor, declarou que aquilo que Ele ofereceu sob a espécie de pão era verdadeiramente o Seu próprio corpo, portanto, sempre tem sido uma firme crença na igreja de Deus, e este santo Sínodo agora reitera, que pela consagração do pão e do vinho, uma conversão é feita da totalidade da substância do pão na substância do corpo de Cristo nosso Senhor, e da totalidade da substância do vinho na substância de Seu sangue; tal conversão é, pela santa igreja católica, adequada e apropriadamente designada de transubstanciação (Creeds of Christendom, Schaff, vol. II, pág. 130).

2.2. Para o ensino sobre a consubstanciação, os luteranos devem recorrer, não às Escrituras, mas sim aos escritos de Lutero, que ensinou que o corpo e sangue de Cristo estavam dentro, com, e sob os elementos naturais do pão e do vinho. Isto está contido em vários credos luteranos. A Fórmula de Concórdia (1576 d.C.) lê: “Cremos, ensinamos, e confessamos que na Ceia do Senhor o corpo e sangue de Cristo estão verdadeiramente e substancialmente presentes, e que são verdadeiramente distribuídos e tomados juntamente com o pão e o vinho (Creeds of Christendom, Schaff, vol. III, pág. 137).

O Pequeno Catecismo de Lutero afirma, na parte V: “O que é o sacramento do Altar? É o sangue e o corpo verdadeiros de nosso Senhor Jesus Cristo, sob o pão e o vinho, dado a nós cristãos para comermos e bebermos, como foi instituído pelo próprio Cristo”. (Creeds of Christendom, Schaff, Vol III, pág. 90).A Confissão de Augsburg (1530 d.C.) declara no artigo X: “Sobre a Ceia do Senhor ensinam que o (verdadeiro) corpo e sangue de Cristo estão realmente presentes (sob a forma de pão e vinho) e são (por eles) comunicados àqueles que participam na Ceia do Senhor…”. (Creeds of Christendom), Schaff, Vol. ifi, pág. 13).

2.3. Para as vestimentas sagradas, um altar sem sangue, incenso, sinos, e um sacerdote oficiante, a ordem levítica típica (e agora abolida) do Antigo Testamento é a fonte a ser seguida.

2.4. Para as cruzes, velas, e cerimónias ritualistas deve-se depender, não das Escrituras, mas das tradições eclesiásticas, cuja única reivindicação possível de autoridade baseia-se numa antiguidade encanecida.

2.5. As assembleias rejeitam toda esta parafernália criada pelo homem com a qual a festa de recordação foi distorcida e voltam-se às Escrituras da verdade, onde encontramos as declarações simples, diretas e satisfatórias do Espírito da verdade referentes à instituição, prática e significado da Ceia do Senhor. Todos os Evangelhos sinópticos registram a instituição da Ceia por nosso Senhor no Cenáculo (Mt 26:26-30 / Mc 14:22-26 / Lc 22:19-20). O relato de Mateus diz:

“Enquanto comiam, tomou Jesus um pão e, abençoando-o, o partiu e o deu aos discípulos, dizendo: Tomai, comei; isto é o meu corpo. A seguir tomou um cálice e, tendo dado graças, o deu aos discípulos, dizendo: Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados”.

Os registos paralelos de Marcos e Lucas são, essencialmente, os mesmos. Nos Atos dos Apóstolos encontramos a observação da Ceia pela igreja primitiva. Escrevendo cerca de trinta anos após o nascimento da Igreja no Dia de Pentecostes, conforme registrado em At 2, Lucas, o historiador inspirado, registra três aspectos importantes referentes à atitude da igreja apostólica em relação ao partir do pão:

  • Partiam o pão em vários lares nos primeiros dias da igreja (At 2:46).
  • Era seu costume partir o pão a cada primeiro dia da semana (At 20:7).
  • Perseveraram no partir do pão (At 2:42).

Em sua epístola “corretiva”, o apóstolo Paulo repreende os crentes em Corinto por certas desordens que haviam entrado furtivamente na assembleia no tocante à sua prática da Ceia do Senhor. Ele declara que uma revelação lhe fora dada pelo próprio Senhor referente à instituição inicial da festa (I Cor 11:23-25), faz-lhes recordar o propósito da Ceia, e sua duração até a volta do Senhor (26), e adverte quanto às sérias consequências de negligência em sua observação (27-34).

No capítulo dez de sua primeira epístola aos coríntios, Paulo trata da Mesa do Senhor, onde o pensamento principal é a comunhão; no capítulo onze trata da Ceia do Senhor, com a ênfase sobre a recordação. Estas duas – a Mesa e a Ceia – sempre deveriam ser distinguidas, mas jamais separadas; estão intimamente associadas. As palavras do apóstolo inspirado são:

  • “Porventura o cálice da benção que abençoamos, não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos, não é a comunhão do corpo de Cristo? Porque nós, embora muitos, somos unicamente um pão, um só corpo; porque todos participamos do único pão.. Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demónios: não podeis ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos demónios” (I Cor 10:16-21);
  • “Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim. Por semelhante modo, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em memória de mim. Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha. Por isso, aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor” (I Cor 11:23-27).

Por terem tomado estas passagens das Escrituras como as diretrizes para sua observação da Ceia do Senhor, as assembleias reivindicam autenticidade bíblica em sua Festa de recordação. Ela se caracteriza pelo seguinte:

  • O partir do pão e o beber do cálice (Mt 26:26-30).
  • Recordação do Senhor (I Cor 11:24).
  • Destaque de Sua morte (I Cor 11:26).
  • Praticada pelo povo de Deus, e não feita por eles por um sacerdote oficiante (veja em LIBERDADE).
  • Observada continuamente até que o Senhor volte para Sua Igreja (At 2:42 e I Cor 11:26).
  • Observada no primeiro dia da semana (At 20:7).

Isto nos conduz a uma terceira característica distintiva:

3. A SUA FREQUÊNCIA

Em muitas igrejas, a Ceia do Senhor é observada anualmente, em outras semestralmente, trimestralmente ou mensalmente. Na maior parte das assembleias, ou mais provavelmente em todas elas, a Ceia é uma característica semanal das atividades espirituais do Dia do Senhor.

Cremos que existe pelo menos uma passagem nas Escrituras que dá suporte para esta prática semanal (At 20:7), enquanto que para as outras periodicidades não existe nenhuma passagem que as substanciem. Esta observação frequente da Ceia do Senhor parece preencher mais adequadamente o padrão expresso nas palavras “perseveravam” (At 2:42) e “todas as vezes” (I Cor 11:25-26).

3.1. Esta prática é frequentemente desafiada, principalmente, em dois termos:

Primeiro, levanta-se a pergunta: “Somos obrigados a observá-la semanalmente?” A resposta é: “Não. Não somos”. Aqueles que estão apaixonados não precisam aguardar uma ordem expressa para fazer algo que agrade e gratifique o ser amado; uma simples oportunidade já é o suficiente. Deus nos dá a oportunidade de obedecer ao pedido de nosso Senhor: “Fazei isto em memória de mim”. Nós, prazerosa e agradecidamente, aproveitamos a oportunidade;

Segundo, outra questão é levantada: “A Ceia não será vulgarizada se a observarmos uma vez por semana?”.

3.2. Novamente a resposta é um “Não” enfático. Acaso a leitura da Bíblia e a oração tornam-se vulgares se as praticamos diariamente? Uma certa relutância em observá-la semanalmente seria compreensível se a encarássemos supersticiosamente como uma cerimónia na qual nós, literalmente, participássemos do corpo e do sangue de Cristo (se aceitássemos o ensino erróneo da transubstanciação ou da consubstanciação). Ou, se ela estiver incrustada com rituais cerimoniosos que obscurecem completamente seu propósito inicial, será, então, melhor observá-la, no máximo, anualmente. Mas se a Ceia está despida de qualquer embelezamento artificial e realizada dentro de sua simplicidade original e observada simples, sincera e espiritualmente como uma recordação carinhosa de nosso bendito Redentor, uma vez por semana, certamente, não será frequente demais para um crente que ama o seu Senhor.

3.3. Talvez um testemunho pessoal não fique fora de lugar aqui. Por mais de meio século, tem sido o privilégio deste escritor reunir-se semanalmente com o povo de Deus para relembrar o Senhor no partir do pão. Raras foram as ocasiões em que foi impossível participar da Ceia. Alguns grupos de crentes eram bem pequenos, outros grandes. Os locais foram variadíssimos, desde uma cabana ao pé de uma montanha em West Virginia (EUA) ao Massey Music Hail em Toronto, Canadá, incluindo também o jardim no Calvário de Gordon e durante um cruzeiro pelo Mar do Caribe. Mas, o Centro sempre foi a Pessoa, não o lugar. E a festa de recordação cresce em doçura na medida em que os anos se passam.

3.4. Mas, outros também têm observado a Ceia do Senhor semanalmente. Ao menos uma denominação assim o fez. E A.P. Gibbs, em seu livro The Lord’s Supper (A Ceia do Senhor), página 186, cita as palavras de C.H. Spurgeon sobre este assunto: “Meu testemunho é, e penso estar falando por muitos do povo de Deus aqui presentes, que por vir, como alguns de nós fazemos, semanalmente, à Mesa do Senhor, não achamos que com isso o partir do pão tenha perdido seu significado é sempre renovado para nós.

Frequentemente tenho ressaltado nos domingos à noite, qualquer que seja o assunto da pregação, quer o Sinai tenha trovejado sobre nossas cabeças, ou as notas lamentosas do Calvário tenham rasgado nossos corações, sempre parece apropriado comparecer à Ceia do Senhor. E uma vergonha para a igreja cristã ter permitido que a Ceia passasse a ser observada uma vez por mês, manchando assim o primeiro dia da semana por privá-lo de sua glória em reunirmo-nos juntos para comunhão e partir do pão, demonstrando a morte do Senhor até que Ele venha. Aqueles que conhecem a doçura de se celebrar a Sua Ceia a cada Dia do Senhor nunca se contentarão, tenho certeza, em aceitar sua observação em períodos menos frequentes”.

Uma quarta característica, que, juntamente com as três anteriores, torna a festa de recordação semanal um distintivo das assembleias é:

4. A SUA LIBERDADE

O que queremos dizer é que existe liberdade para o funcionamento do sacerdócio santo de todos os crentes na adoração e no partir do pão. Nenhum padre católico romano nem um clérigo protestante está presente (como tal) para oficiar a cerimónia. Nenhum irmão, não importa o quão piedoso ou capacitado ele seja, está encarregado do serviço. Nenhum programa previamente preparado ou ordem ritualística de culto é seguida. É um culto no qual o Espirito de Deus é perfeitamente livre para liderar e controlar. A verdade de que todo o povo de Deus constitui um sacerdócio santo (I Pe 2:5), qualificado a oferecer sacrifícios espirituais a Deus é reconhecido.

A todos estes o sangue de Cristo abre o caminho para o Lugar Santíssimo no céu (o verdadeiro santuário e lugar de adoração), e a presença de nosso Grande Sumo-Sacerdote, concede a ousadia necessária para nos aproximarmos (Hb 10:19-22). Através d’Ele o sacrifício de louvor é oferecido (Hb 13:15). As mulheres cristãs permanecerão silenciosas, conforme as instruções da Palavra (I Cor 14:34), mas participarão totalmente em adoração silenciosa, e no partilhar do pão e do vinho. Embora seja um irmão, ou dois, quem, audivelmente, conduzirá a congregação no dar graças pelos elementos, são os santos reunidos que partem o pão e abençoam o cálice. “O cálice da benção que abençoamos… O pão que partimos..” (I Cor 10:16).

Naquela noite das noites a mais solene,

Jesus chamou os Seus

Ao redor da mesa da recordação

Completamente só.

Então esta festa das festas Ele ordenou,

Festa da graça divina,

Sagrados símbolos Ele apontou,

Pão e vinho.

Deste modo singelo,

Olhando para trás, apontando para a frente,

Para aquele dia.

Harold G. Mackay – “Distintivos das Assembleias” – Everyday Publications, Canada.